NEGACIONAISMO SEM MÁSCARAS
Entre a gripe espanhola do início do século XX e a pandemia de coronavírus, o Brasil experimentou um retrocesso civilizatório

“Tráfego rareado, cidade vazia e meio morta, casas de diversão pouco cheias, […]. E que no meio da população[…] insinuara-se […] a Morte Cinzenta da pandemia que ia vexar a capital e soltar como cães a Fome e o Pânico que trabalhariam tão bem quanto a pestilência…”. Num de seus livros de memórias, Chão de Ferro, Pedro Nava descreveu a então capital da República, na época da sua juventude, como se estivesse em 2020. Mas a “Morte Cinzenta”, que fez parar o Rio de Janeiro, em outubro de 1918, varreu o mundo com o nome de “gripe espanhola”.
Considerada uma das piores pandemias já enfrentadas pela humanidade, é provável que a gripe espanhola tenha sido causada por uma cepa agressiva do vírus Influenza A – o vírus da gripe. Chegou ao Brasil pelo mar. Desembarcou no Recife, no dia 9 de setembro, a bordo do navio inglês Demerara, que atracou no cais do porto com alguns passageiros e tripulantes contaminados e outros tantos doentes. O vírus aportava e propagava-se feroz pelas cidades, provocando uma multidão de mortos. Em seguida, embarcava em outro navio ou num terminal ferroviário e desenhava a rota do contágio: do Recife para o Rio de Janeiro, do litoral para o interior. Desceu até Porto Alegre, contaminou Belém e Manaus. Resultado: esparramou-se pelo País inteiro.
Pandemias em geral vêm em ondas. O Brasil foi atingido pelo segundo vagalhão da gripe espanhola, entre agosto e novembro de 1918, o mais forte, virulento e mortífero. Nenhuma capital ou vilarejo previu ou se preparou para o desastre e a doença tornou-se calamidade no meio de outubro. Era assustadora a rapidez com que a gripe ia da invasão ao apogeu em algumas horas. A vítima sentia uma dor de cabeça lancinante, seguida de sufocações. A morte sobrevinha em poucos dias. Faltam estatísticas confiáveis sobre o número de vítimas no Brasil, mas os dados variam entre 35 mil e 50 mil mortes.
E então, passados 102 anos, um vírus mostrou novamente como somos vulneráveis. Não que deixássemos de ter conhecimento de outras epidemias, mas essas, a exemplo do ebola e do zika vírus, ficaram restritas a certas regiões ou pessoas particularmente sensíveis a elas e por isso não chamaram tanta atenção ou provocaram comoção. Já a gripe espanhola, como a Covid-19, contamina todos, a despeito de não ser nada democrática. Ontem como hoje, as populações pobres são as maiores vítimas.
Entender a pandemia de 1918 revelou que indagar o que aconteceu no Brasil daquele tempo ajuda, e muito, a compreender o país de agora. A gripe espanhola suscitou perguntas naqueles que viveram a epidemia, e essas questões dizem respeito também a nós, no tempo presente. A razão é simples: nelas existe um aprendizado. A experiência da gripe espanhola nos diz respeito porque exige reconsiderar o valor da vida, o lugar do luto e da morte.
A vida de cada brasileiro tem valor idêntico. Portanto, é forçoso refletir por qual motivo, tanto na pandemia de 1918, quanto na de agora, a de Covid-19, continuam escancaradas as nossas desigualdades, que atingiram e atingem de forma ainda mais brutal os povos indígenas, a população pobre e as periferias, e, sobretudo, a população negra, que aparece sempre como a maior vítima dessas epidemias. Não há nada de biológico nessa constatação. O que persiste é uma história de invisibilidade e de exclusão social. Um vírus expõe todo mundo ao contágio, mas não nos torna iguais. A doença e as mortes têm cor, classe, escolaridade e local de moradia, seja no Brasil dos tempos da gripe espanhola, seja no país de 2020.
O aprendizado com a pandemia de 1918 revela que poderíamos ter criado um plano de enfrentamento para a Covid-19 e, talvez, reduzido de maneira significativa os danos causados pela epidemia. Em 1918, não existia um Ministério da Saúde ou um órgão equivalente ao Sistema Único de Saúde, capaz de exercer o papel de articulação e coordenação nacional. O SUS é obra da Constituição de 1988. Mesmo assim, as autoridades – os presidentes de Estado – procuraram lidar com a gripe espanhola da melhor maneira que podiam, aplicando os ensinamentos com relação à profilaxia empregada em outros locais.
Contudo, a Covid-19 expôs algo inédito na nossa história. Alguma coisa se perdeu e se degradou entre nós. No dia 28 de novembro de 2020, o Brasil chegou a 172.561 mortos e é espantosa a impassibilidade e a frieza do presidente da República e de seu governo. “Negação” diante de uma epidemia desse porte sempre existe, até porque somos uma sociedade preparada para a vida e não para a morte, ademais, coletiva. “Negacionismo” é outra história: trata-se de prática política deliberada de quem prefere encobrir a doença em vez de enfrentá-la. Em 1918, a primeira reação foi negar, mas logo depois se partiu para o ataque, numa tentativa quase quixotesca de conter o desconhecido que mais se parecia com um moinho de vento vivo. Naquele ano, a população também recorreu ao sal de quinino e à cloroquinina, um remédio usado para a malária. Mas, diferentemente de hoje, não existiu autoridade estadual ou federal que fizesse propaganda da cloroquina.
Ainda mais assustadoras são a displicência e a indiferença ao luto coletivo, exibidas por uma larga fatia da sociedade. A experiência da gripe espanhola traz um aprendizado sobre o funcionamento da nossa sociedade. Em 1918, os brasileiros empenharam-se no cuidado deles mesmos e dos que estavam por perto: vizinhos, amigos e desconhecidos. Hoje, cenas de desrespeito rotineiro às normas sanitárias de combate à pandemia indicam que o retrocesso civilizatório no Brasil, em 2020, está enraizado à sombra do anticidadão. A parte da população que despreza o uso de máscaras e considera “antipatrióticas” as medidas de isolamento degrada a prática da cidadania num ato de egoísmo individualista. Talvez esse seja um dos impactos da pandemia atual: expor aos brasileiros a versão aviltada do próprio país.
O rapper Emicida, um grande intérprete do Brasil, disse que “a gente precisa chegar primeiro”. Sim, pois precisamos chegar antes do racismo, da misoginia, do machismo e das pandemias também. Senão estaremos sempre e para sempre à mercê do obscurantismo antidemocrático. E correndo atrás do atraso.
HELOISA MURGEL STARLING – é historiadora, cientista política e professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais.
LILIA MORITZ SCHWARCZ – é professora titular no Departamento de Antropologia da USP e global scholar na Universidade de Princeton. Juntas, escreveram as obras Brasil: Urna Biografia e A Bailarina da Morte: A Gripe Espanhola no Brasil.
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