EM CONTATO COM O QUE?
Não estivemos isolados na pandemia. A rede nos liga, molda e monitora

Sim, foi o ano da pandemia. Ou será que foi o do combate à pandemia? É difícil decidir, os dois foram extraordinários. O vírus e o combate ao vírus. Do primeiro chegou-nos em janeiro a notícia de que qualquer coisa estava a acontecer numa cidade desconhecida da China. Dois meses depois era uma pandemia, com doentes e mortos por todos os lados e em todo o mundo. Nada escapou. Do segundo, do combate ao vírus, vem a notícia, ao que tudo indica, de que teremos a vacina aprovada neste ano e os primeiros grupos vacinados no início do ano.
Nunca na história da humanidade nada de parecido havia acontecido. O mais singular não foi a pandemia, mas a resposta humana à pandemia. De qualquer forma, num caso como no outro, a humanidade esteve ligada. Em contato.
Não é a primeira vez que os germes são protagonistas da história. O perigo nem sempre está no infinitamente grande e poderoso, mas existe também no infinitamente pequeno. A desorientação vem exatamente daí, de nada ser visível, a não ser ao microscópio. Só aparece quando a doença se manifesta, e às vezes tarde demais. Ainda assim, um pouco por todo o mundo, fomos capazes de fazer um combate respeitando o mínimo moral. Parar de trabalhar, parar de produzir, para poupar vidas ou, talvez melhor, para que nenhuma vida se perdesse sem assistência (gostaria de dizer o mesmo do Brasil, mas não tenho certeza). A economia se recuperará, as vidas não. Também por aqui não podemos dizer que a humanidade não esteve ligada. Em contato.
A pandemia também excitou as redes, o contato virtual, o zoom, o webinar. As redes. As redes sociais mostraram o seu poder. Estávamos ligados, é verdade, o fenômeno não é de agora, mas talvez só agora tenhamos realmente dado conta de como estamos dependentes dela, da rede. Agora todos nós temos consciência – estamos ligados, em contato. A rede. A quantidade de dados que voluntariamente entregamos à rede é absolutamente fascinante. A todo segundo geramos informação sobre nós, sobre a nossa saúde, o nosso estado de alma, os nossos projetos, os nossos interesses. E o fazemos depois de sabermos – sim, agora sabemos de fonte segura – que esses dados serão coletados, tratados, relacionados, classificados e, finalmente, usados para ganhar dinheiro e para ganhar poder. A coleta universal de dados não deixará nada à interpretação estatística, como antigamente. A verdade digital não trabalha com amostras, mas com todo o universo, todos os dados de 95% de nós, todos aqueles que aceitam se conectar e, nesses momentos, aceitam também ceder a informação sobre si próprios. Todo o contato será utilizado, tudo será organizado, tudo será classificado e tudo será vendido. Em breve será possível fazer um check-up de cada um, disponível para todos. Para todos os que tiverem dinheiro, evidentemente. Assim saberemos com quem vamos nos encontrar, com quem nos casaremos e com quem negociaremos – a genética, os hábitos de consumo, as preferências sexuais. A vida será mais segura, menos acaso.
Tudo isso será devidamente envolto num delicado e suave manto de inocência. A segurança é uma das promessas. O terrorismo constituiu, logo no início do século, a grande oportunidade para a colaboração entre a indústria digital e a indústria da inteligência. Numa guerra contra o inimigo escondido e misturado com a população, a primeira prioridade é a informação. Saber quem ele é, onde está, para extraí-lo da massa humana que o rodeia e, então, eliminá-lo. Tudo isso exige conhecimento e informação, isto é, acesso a dados pessoais. Como é próprio do poder, este vai sempre até onde pode ir, ou até onde o deixam ir. Por estes dias, como alguém disse, a agência nacional de segurança dos EUA sabe mais sobre os cidadãos alemães do que a Stasi, a polícia secreta do regime da antiga República Democrática Alemã. A agência conhece as deslocações, os contatos, os amigos, as preferências políticas. Em 2013, ficamos a saber que a espionagem norte-americana ouviu Ângela Merkel e por motivos que nada tinham a ver com terrorismo, mas com a economia europeia em tempos de crise. O mesmo aconteceu com Francois Hollande, com Sarkozy, com Dilma Rousseff. A aliança entre a inteligência e o digital encontra novos espaços de utilidade – o interesse econômico disfarçado de segurança nacional. A aliança também se aprofundou em nome do combate ao crime. Londres é a capital do vídeo-vigilância com cerca de 3 mil câmeras espalhadas pela cidade. O cálculo da polícia é que um cidadão é filmado cerca de 300 vezes por dia. E cada vez de forma mais sofisticada. Agora as câmeras sabem reconhecer uma cara no meio da multidão e identificar sua silhueta de costas. O sistema aperfeiçoa-se. No momento em que escrevo, o governo francês acaba de propor uma lei vergonhosa, segundo a qual a vídeo-vigilância deve constituir um monopólio das forças de segurança – as filmagens da ação policial serão proibidas, elas atrapalham. A promessa de tudo desvendar parece assim caminhar para o sítio adequado – sim, tudo se saberá, menos o que o Estado faz. Por detrás da promessa de liberdade individual que a rede oferecia, surge agora o seu verdadeiro rosto, o seu verdadeiro mestre, o Estado, o Leviatã.
Não demorou muito para que tudo isso chegasse às eleições e às disputas políticas. Em fevereiro de 2011, o presidente Barack Obama convidou para jantar na Casa Branca as 14 empresas mais poderosas da internet. A imprensa chamou o evento de o “jantar de reis”. Pouco depois, em 2012, numa sala da sua campanha eleitoral, denominada “a caverna”, vários informáticos trataram os metadados de comentários de internautas espalhados pela rede de forma a identificar os indecisos e a fabricar para eles as mensagens políticas mais apropriadas. Uma verdadeira campanha de massa personalizada. O mecanismo evoluiu na campanha do Brexit, depois com Trump e, mais tarde, também o Brasil descobriria esses métodos, a que se somariam os requintes de imbecilidade, malvadeza e brutalidade, tão próprios do temperamento do candidato. Eis ao que nos ligamos – ao mundo do Big Data, Amazon, Facebook, Google e Microsoft. A disputa comercial pelo 5G nada tem de livre-comércio, de regras de concorrência ou de preços. Ela assume agora a importância de uma questão estratégica. Este é o mundo a que nos ligamos. Sim, a rede mundial de investigadores foi capaz da façanha de conseguir uma vacina em apenas um ano. Isso tem muito a ver com o trabalho em rede. Este mundo novo não conhece, porém, direitos individuais nem a intimidade. A privacidade morrerá, portanto, em nome de uma vida melhor, mais segura e menos contingente. Fizemos contato? Sim, mas não sei com quê. Na verdade, tudo neste mundo me desagrada.
*** JOSÉ SÓCRATES – ex-primeiro-ministro de Portugal.
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