A FESTA

“Tudo certo para a festa de fim de ano? Precisa de alguma ajuda?”, pergunta o irmão à anfitriã. “Tudo certo”, ela diz. “Não, não vai precisar de mais nada. Já encomendei as bebidas e eles devem trazer tudo entre hoje e amanhã – preferi a entrega mesmo, para não ter de ir à loja. Sabe como é, todo mundo lotando loja no fim do ano para abastecer as festas, gente que não usa máscara direito e ignora o vidro de álcool em gel na porta. Ah, eu pedi para a empregada passar a noite aqui, ajudar a servir o jantar, lavar a louça, essas coisas. Cada um vai contribuir um pouco para que ela depois possa fazer uma bela ceia com os filhos e a mãe. Desse modo, vou te pedir também uma contribuição, tudo bem?” O irmão hesita, mas responde: “Tá, tudo bem. Só não posso dar muito porque ando apertado”.
Os dias se passaram, a anfitriã satisfeita que todos os convidados poderiam comparecer, inclusive as amigas da mãe, as três. As três mais idosas. Seriam umas 20 e poucas pessoas no total, mas o apartamento era arejado e, se estivesse muito quente, o ar condicionado daria conta. Com o ar condicionado, há ventilação, de modo que estaria seguindo todas as orientações de saúde.
Máscaras? Não, não era necessário. Tudo em família. E 20 e poucas pessoas não é, exatamente uma aglomeração, não é mesmo?
Dia desses a fulana contava que o jantar que fez para o marido tinha mais de 50. Isso, sim, é irresponsabilidade. Onde já se viu? Cinquenta pessoas no meio de uma pandemia? Sorte dela que não virou um covidário. Ou, como é mesmo que falam? Evento de superdisseminação? Não, estava tudo bem arranjando no caso da festa de fim de ano. Como seria bom estar com todos, rever os sobrinhos.
Ah! Mas teve aquele dia em que o sobrinho adolescente encontrou com o amigo no calçadão, o amigo que testou positivo logo depois. Ah, mas tudo bem, foi rapidinho, o encontro foi ao ar livre, os dois estavam de máscara. É verdade que a máscara estava debaixo do queixo, como a garotada faz; mas, imagina! O vírus não passa assim. Passa mesmo é pelos objetos tocados pelos outros, mãos sujas, mãos contaminadas, mãos pegajosas, mãos suadas, mãos de desconhecidos. É preciso esfregar, lavar, entornar todo o vidro de detergente, de álcool. As luvas! Onde estão as luvas?
É claro que o sobrinho foi ao jantar da família. Jantar de Natal? Ceia de Ano-Novo? Faz diferença? E, no momento em que os vemos, lá estão todos, extasiados com a exuberância da liberdade de celebrar juntos, embevecidos com o elixir da ignorância. Ignorância, pois o sobrinho se expôs, o sobrinho trocou ar com o amigo: deu a ele o seu, recebeu dele o dele. Contaminado. Naquele exato momento em que todos se reúnem – precisa dizer que estão sem máscara? – em torno da mesa com farta comilança, está o sobrinho exalando partículas virais para cima dos avós, dos pais, dos irmãos, dos tios, dos primos, das amigas da avó e, é claro, da empregada hipertensa, que naquela noite não está com a família. Ela, que mora apertada, que cuida dos filhos. Ela, que cuida da mãe idosa, mãe também hipertensa e que já sofreu AVC. A mãe que mora na mesma casa com os netos e a filha.
As partículas que o sobrinho exala são invisíveis e aquilo que os olhos não veem o coração não sente e a mente não registra. Não registra. Não registra a febre do avô, que aparecerá alguns dias depois. Não registra a tosse da tia, que aparecerá alguns dias depois. Não registra a contaminação do irmão mais novo, que não terá sintomas, mas que passará a noite na casa da outra avó dali a alguns dias. Não registra o susto dos meninos da empregada hipertensa ao chegarem em casa: a mãe estirada na cama, o suor lhe escorrendo pelo rosto, o esforço para respirar. Dali a alguns dias.
Essa não é uma história real, mas poderia ser. Outras, muito parecidas com ela, estão acontecendo todos os dias ao redor de todo o país e há várias semanas. As pessoas julgam-se irracionalmente invencíveis mesmo quando as mortes se amontoam e amigos e conhecidos padecem. Há até quem torça para ter logo Covid e assim se ver livre, livre. Livre a ponto de se gabar. Veja! Sou imune, não pego mais essa doença. Claro que ignoram os riscos de reinfecção. Pensar nessa possibilidade é demasiado inconveniente.
E assim vamos. Assim seguimos. Até o dia em que recebemos de nosso pai, mãe, avô, avó, o terrível telefonema.
“Oi. Vi agora na internet. Deu positivo.”
*** MONICA DE BOLLE – é pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins