A JUSTIÇA TARDA E AINDA FALHA
Com a morte de João Alberto Silveira Freitas, o debate sobre a punição dos crimes de racismo ganha atenção inédita

Juarez Tadeu de Paula Xavier, de 61 anos, disse ter ouvido gritos de “macaco” quando caminhava pelo centro do município paulista de Bauru em 20 de novembro do ano passado, feriado de Consciência Negra. Quando foi tirar satisfações com o autor dos insultos, Xavier, professor de comunicação da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), teria recebido duas facadas. Uma no ombro e a outra nas costas. Apesar da prisão em flagrante, o agressor, Vitor dos Santos Munhoz, de 30 anos, não responde pelos crimes de racismo e tentativa de homicídio. No decorrer do processo judicial, prevaleceu a informação que consta do boletim de ocorrência elaborado na delegacia. A conduta do acusado foi tipificada como injúria racial e lesão corporal, práticas criminosas com repercussões legais mais brandas. Munhoz pagou R$ 1.000 de fiança, deixou a delegacia cerca de uma hora depois do professor Xavier e responde ao processo em liberdade.
O tema do crime de racismo veio à tona na segunda metade de novembro com o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, espancado até a morte por dois seguranças de uma loja do Carrefour em Porto Alegre, na véspera do dia da Consciência Negra. O homicídio levou a uma série de protestos em várias capitais. Nos depoimentos à polícia, os funcionários do supermercado negaram que a motivação do crime tenha sido a cor da pele de Freitas, algo que ainda precisa ser investigado. Para o professor da Unesp, o noticiário trouxe algumas lembranças. “Eu não fui xingado no ano passado porque sou o Juarez, morador de Bauru professor de comunicação. Eu fui atacado pela minha condição étnico-racial. Não fosse esse fator, ele (Munhoz) teria passado batido por mim”, afirmou. O advogado Orlando Zanetta Junior, representante do agressor, afirmou que seu cliente sofre de esquizofrenia.
A faca rendeu ferimentos leves a Xavier. Depois de ser atendido em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), ele compareceu à delegacia acompanhado pelo advogado Maurício Augusto de Souza Ruiz. Na ocasião, Ruiz argumentou que se tratava de crime de racismo e tentativa de homicídio. Não obteve sucesso. O processo ainda tramita na 1ª Vara Criminal de Bauru. O advogado não desistiu. Ainda tenta retificar a tipificação criminal.
Quase um ano depois das agressões sofridas pelo professor, foi a vez de a faxineira Roberta de Cássia Silva, de 48 anos, não se sentir protegida dentro do sistema judicial brasileiro. Ela disse ter sido ofendida em 17 de julho, quando uma vizinha a chamou de “macaca” e afirmou que não queria uma negra na calçada em frente à sua casa, em Marília, no interior de São Paulo. Ainda em julho, ela tentou fazer um boletim de ocorrência eletrônico com a acusação de racismo, mas o documento voltou com a informação de que estava com a tipificação errada. A faxineira procurou, então, a delegacia pessoalmente e, mais urna vez, seu pedido foi negado. “Não é por ser de cor que eu tenho de aceitar isso. Isso me atingiu bastante. A palavra fere muito, me magoou demais. Ele (o vizinho) ainda veio me pedir desculpa, com cara de pau, mas, para mim, não dá”, disse.
Representada pela advogada Bruna Carla Simeão Oliveira, membro da Associação Nacional da Advocacia Negra (Anan), Silva optou por processar o vizinho por injúria racial, torcer por uma condenação e, em caso positivo, pedir uma indenização. “São vários os problemas que um negro ou um coletivo de negros encontram ao sofrerem ataques racistas”, disse Oliveira. Procurada para opinar sobre os casos do professor Xavier e da faxineira Silva, a assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo não respondeu até o fechamento desta matéria.
O advogado Estevão Silva, presidente da Anan, explicou que crimes de injúria racial podem ser punidos com reclusão de um a três anos e multa. Já os crimes de racismo são inafiançáveis e imprescritíveis. Nesses casos, a pena varia de dois a cinco anos de detenção. “Nossa legislação não enfrenta o racismo. Além disso, temos delegados e promotores que se acovardam. Precisamos não só aperfeiçoar a lei, mas também ter um Judiciário não conivente com os crimes raciais que ocorrem no Brasil. Um Supremo Tribunal Federal (STF) com coragem de punir os agressores”, opinou Silva.
Para Joel Luiz, advogado do Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), a aplicação do Direito Penal não é a resposta para todas as demandas raciais. “Não acho que é simplesmente criminalizando o racismo a torto e a direito que vamos resolver o problema. A gente tem de enfrentar o racismo, a injúria, a LGBTfobia, o feminicídio com políticas públicas para a sociedade. Não é prendendo mais racistas que vamos impedir que o menino que está entrando no colégio agora seja preconceituoso”, afirmou. Para ele, a sociedade entende o racismo como problema individual, moral, personalista. “Como entendemos que o fulano é racista, mas não que vivemos numa sociedade racista, o Judiciário acaba tendo dificuldade de se posicionar contra isso. De encarar o problema de forma efetiva”, disse Luiz.
Independentemente da cor da pele da vítima, se a investigação de um assassinato apresenta falhas, a justiça não é feita por falta de provas. E essa, infelizmente, é a regra no Brasil. Um levantamento recente do Instituto Sou da Paz, uma organização não governamental voltada para a área da segurança pública, analisou a taxa de elucidação de crimes violentos no Brasil e chegou a um resultado alarmante. Em 11 estados brasileiros, 70% dos homicídios não são solucionados e os culpados seguem impunes. No caso de negros e pardos, essa ineficiência da polícia tem um peso maior.
Entre 2008 e 2018, o número de homicídios de negros e pardos cresceu 11,5% – enquanto o de não negros e pardos caiu 12%, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. No ano passado, 74,4% das 39.561 vítimas de homicídio no Brasil eram negros e pardos, percentual desproporcional quando se leva em conta a fatia desse grupo na população como um todo, que é de 56%. Quando o autor é um policial, o índice sobe para 79,1%. Isso significa que oito em cada dez mortos pela polícia em 2019 eram negros ou pardos. Quantas dessas mortes foram motivadas pelo racismo? Ninguém sabe dizer. Essa é uma das respostas que as forças de segurança e a Justiça devem aos brasileiros de todos os tons de pele.
