FELICIDADE COMO VITALIDADE

Não é à toa que o homem celebra desde tempos imemoriais a noite mais curta do ano, o solstício de verão, e a noite mais longa do ano, o solstício de inverno. Apreciamos a noite mais longa por ela nos dar a sensação de finitude, que nos apavora e nos alerta para a importância do dia. E aproveitamos a noite mais curta – geralmente 23 de dezembro no hemisfério norte – “porque o sol há de brilhar mais uma vez, a luz há de chegar aos corações. Do mal será queimada a semente, o amor será eterno novamente”, como cantou Nelson Cavaquinho.
Desse ponto de vista, não é casual que os latinos tenham criado uma festa chamada Sol Invictus, ou Sol Invencível. Também não por acaso, a partir do século 3, os cristãos deglutiram antropofagicamente essa festa e assumiram que Jesus nasceu naquele dia. Historicamente, isso não faz sentido. Aliás, mais do que isso: seria uma impossibilidade no inverno do hemisfério norte, na Palestina, ele ser adorado numa manjedoura – mesmo que as vaquinhas ficassem bafejando sobre ele, teria morrido imediatamente de pneumonia ou hipotermia.
Assim, não há evidências para o fato de Jesus ter nascido em 25 de dezembro, mas religião, mais do que um sistema de ideias, é um sistema de forças. As pessoas não abraçam uma religião para se sentirem mais sábias, e sim para se sentirem mais fortes. Por isso, é inútil discutir religião. Não porque não se possa – pode, pois ela é também um sistema de ideias – mas porque ela é, sobretudo, um sistema de crenças e forças. Por isso, discutir religião nunca é um debate teórico, seja sobre ideologia ou princípios. Discutir religião é tentar afrontar o que dá sentido à vida do outro. E aí tanto faz se é verdade ou não – o simples fato de alguém acreditar já basta. E isso pode nos deixar felizes.
Se felicidade é um episódio, resta saber: é um episódio de quê? De vibração da vida. De quando alguém sente a vida vibrar, quando uma centelha ou uma fagulha se acende em você de forma expressiva, quando você mesmo se sente brilhante, irradiando energia.
Em latim, a palavra felix tem um duplo sentido. Ela significa feliz, mas também significa fértil. Assim, felicidade é fertilidade – não apenas no sentido de reprodução, mas como sentimento de que a vida não cessa, de que não há esterilização dos sonhos nem desertificação do futuro. Quando me sinto vivo, me sinto impregnado de sonhos e futuro, ou de paraíso (a propósito, um parênteses: a ideia de paraíso, palavra persa que foi popularizada pelos hebreus, é uma ideia de quem vive no deserto, onde a valorização do oásis só pode existir para quem caminha em meio à areia escaldante. O oásis, ou o paraíso, é aquele lugar em que você não sofre mais, onde você descansa depois da longa travessia, onde você sente mais prazer por estar vivo, onde vibra por estar vivo).
Num exemplo banal de felicidade, algo parecido acontece comigo de manhã quando estou ouvindo música clássica no escritório e o gato vem e pula no meu colo e se esfrega em mim. Esse pequeno episódio me dá prazer – e me dá prazer também por ser um pequeno episódio, pois, se ele fizesse isso o tempo inteiro, o gato se tornaria chato e desagradável. Mas, ao fazer isso de maneira eventual – uma vida encostando em outra –, ele oferece a mim um carinho que faz minha vida vibrar e minha vibração funciona como um carinho para ele.
Outro momento de felicidade banal é quando começo a olhar e a mexer em algum dos meus 6.000 livros.
Cada um dos livros que mexo é um pedaço da minha história. Eu olho para um deles e me lembro de quando e do por que de tê-lo comprado, se li ou não – pois há livros que a gente compra mas não lê, ou só lê um pedaço, mas que a gente compra porque não quer não tê-lo. Isso não é só uma questão de posse material. Está mais para um viciado que não convive com a ideia de que o estoque acabou. É como o fumante que, mesmo morando ao lado da padaria, precisa deixar um pacote guardado em casa “para uma emergência”. Eu tenho muitos livros “para uma emergência” – para o caso de eu, que tenho amizade forte por livros, ficar sem uma alternativa de leitura. Às vezes vira paixão e isso me leva a ter um estoque irracional de livros que não li e, a julgar pelo tempo que estimo ter de vida, também não lerei.
Por outro lado, mesmo que não tenha lido, os livros têm cheiro – quem gosta de livros gosta de seu aroma, assim como quem gosta de carro gosta do cheiro de combustível ou de carro zero quilômetro (que, aliás, é um aroma fabricado, cientificamente estudado). Não gosto de carro, sequer tenho carteira de motorista. Gosto de livro e, portanto, gosto do cheiro de livro novo, do livro ao ser aberto, despaginado, violado, profanado, ao ser manchado pela água que derrubei, ou a comida ou a gota de azeite que caiu ali, ou os riscos, grifos e comentários que acrescentei – tudo isso realça o gosto de contemplar a biblioteca e me sentir feliz, revivendo a história de cada marca que deixei nos livros.
Isso é felicidade: sentir-se vivo. Há pessoas que se sentem felizes ao acumular riquezas. Outras, ao zelar pela família. Outras ainda ao curtir seus livros e suas plantas. Tenho um filodendro que está comigo há mais de 40 anos. Eu tinha 10 anos quando o ganhei e ele já foi comigo para todos os lugares em que vivi. De manhã, quando vejo o sol bater nele, quando vejo que ele está bem por estar ali, eu me sinto feliz. Quando já estou dormindo e Janete, a mulher com quem sou casado há mais de 25 anos, chega em casa e me dá um beijo, ou passa a mão no meu rosto, tenho uma sensação imensa de felicidade. Com esses exemplos, quero dizer que a felicidade está no simples, e não no complexo. Quer algo mais simples do que uma criança rasgar o papel que embrulha o presente?
Isso é o caminho mais curto para felicidade, sem nenhum tipo de meticulosidade. Abrir um presente de maneira meticulosa é a negação da felicidade, puxando a ponta de um durex aqui, tirando o nozinho do barbante acolá, puxando o papel com cuidado para não amassar. Isso é coisa de neurótico, de gente que não vive a alegria do momento, que não vive certas seduções.
Adão e Eva desobedeceram Deus e comeram o fruto proibido para serem felizes. Se não tivessem caído em tentação, permaneceriam imortais. E a imortalidade é insuportável, ainda mais quando se vive num mundo perfeito – como não há ausência de felicidade do paraíso, ninguém poderia se sentir feliz ali.
Insisto na ideia: Adão e Eva desobedecem Deus para poderem ser mortais. Para poderem sentir seus corpos. Para sentirem dor e depois alívio. Cansaço e depois o descanso. O paraíso devia ser tedioso. A serpente cumpre uma grande função, ainda que de natureza simbólica: ela nos permite a felicidade.
A felicidade é um momento. A possibilidade de não ter ausência impede a felicidade. O erótico só é erótico porque na maioria do tempo vivemos cercados de coisas sem nenhum erotismo. Se o erótico fosse permanente, não haveria revistas eróticas – que só são compradas todo mês porque os momentos eróticos se esgotam. Ou as revistas de decoração e suas casas maravilhosas que a maioria das pessoas nunca terá – e nem precisam ter, pois não se compram revistas assim para possuir imóveis, e sim para fruir a sensação de como seria ter uma casa dessas, numa espécie de posse virtual. Ou se compra uma revista de gastronomia para se deliciar com os olhos e não necessariamente com o estômago. O fato é que as pessoas compram essas revistas para se sentirem bem, para se sentirem mais felizes.
Só a carência permite momentos felizes. E esse é o nosso grande desafio aos deuses: não só o desejo de sermos felizes, como a possibilidade efetiva de sermos – ao contrário dos deuses, que em todas as mitologias são representados como entidades atormentadas.
Felizes são os humanos, pois não são felizes sempre – mas, quando são, podem fruir a felicidade com grande intensidade.