EVOLUÇÃO NEM SEMPRE É PARA MELHOR

O autoconhecimento é um processo necessário e fundamental para a melhoria de si mesmo – um processo interminável, pois tudo o que acontece a nossa volta nos afeta e nos transforma. Mas, quando pensam em autoconhecimento, geralmente as pessoas cometem um equívoco, pois associam autoconhecimento à evolução – e encaram evolução, necessariamente, como aperfeiçoamento.
Não é assim. Nem toda evolução significa uma mudança para melhor. Na cabeça da maioria das pessoas, a palavra evolução também está associada ao Darwinismo. Mas o fato é que Darwin tinha vergonha de usar o termo evolução. Em seu diário, ele prefere usar a palavra transformação, e só usava evolução no sentido de mudança. Ele fala apenas que as espécies se transformam – algumas inclusive para pior, pois desapareceram. O câncer evolui, as encrencas, os problemas, os confrontos evoluem, e ninguém pode dizer que isso é uma coisa boa.
O século 20 no Ocidente foi marcado por essa ideia equivocada da evolução como melhoria. Esse equívoco começa a nascer no Renascimento, que introduz o antropocentrismo. Antes disso, no mundo medieval, prevalecia o teocentrismo, que colocava Deus como o centro do Universo. Na Renascença, o humano substitui o divino como figura central. Essa passagem é representada, sobretudo, por duas imagens. Uma é o Homem vitruviano, de Leonardo da Vinci, rascunhado em 1490, o célebre desenho de um homem nu no meio de um círculo. O segundo é a representação da Criação, por mim citada em outro trecho, pintada por Michelangelo no teto da Capela Sistina, a famosa cena do dedo de Deus encontrando o dedo de Adão – uma cena em que não fica claro se é Deus que está criando o Humano para não ficar sozinho no Universo ou se é o Humano que está criando Deus para não ficar sozinho no Universo.
Mais do que uma antroposofia, o que a Renascença propõe é uma antropolatria, ou uma adoração do Humano, num movimento que culminará, no século 18, no Iluminismo e, no 19, no Historicismo e no Positivismo. E é aqui que um dos maiores representantes do Positivismo, o filósofo inglês Herbert Spencer, vai criar a ideia da sobrevivência do mais forte – algo que Darwin nunca comungou, pois sua tese gira em torno da sobrevivência do mais apto, sem que isso esteja vinculado à força.
Pelo ponto de vista de Darwin, quais seres são os grandes vencedores na batalha pela vida? As bactérias, que são os seres com maior poder de adaptação. O paleontólogo americano Stephen Jay Gold provou isso em números. Ele somou a massa de todas as bactérias que estão entre nós e constatou que o resultado é muito maior do que o peso dos mais de 6 bilhões de humanos que habitam a Terra. A antropolatria nos leva a cair numa armadilha que foi decantada por Shakespeare quando escreveu “que grande maravilha é o humano!”.
O nosso romantismo, quando desvairado, nos faz olhar as estrelas e nos embevecer com a ideia de que somos os únicos capazes de admirá-las. Não haveria nada de errado se a questão se resumisse a admirá-las. Mas o ponto é que o Humano se sente proprietário das estrelas, ou mesmo a razão de ser das estrelas – e o Humano não é o centro do Universo nem o proprietário de nada além de suas posses terrenas.
O curioso é que a palavra evolução se vale de um radical usado no grego e no latim – o radical vol (formador de palavras como “envolver” e “vulva”), que mais tarde será utilizado como “rol”, de “rolar”, que dá a ideia de desenvolvimento. Por isso, desenvolvimento, em espanhol, é desarollo. O inglês não chegou até o “rol”. Ficou no “vol”, de envelope, de algo fechado em si mesmo. Assim, desenvolvimento, em inglês, é development – ou seja, algo que se tira do envelope, da redoma, e faz crescer.
Na antiguidade, havia a percepção de que o homem segue um roteiro que já estava escrito antes de ele nascer, como se apenas representasse um papel numa peça de teatro. Mas, na antropolatria, o homem se imagina dominador, proprietário da vida e da existência.
E aqui voltamos ao começo: supor que evolução sempre significa uma melhoria é um equívoco, inclusive de natureza etimológica, uma vez que o radical “vol” indica somente mudança, desenvolvimento – e não aperfeiçoamento.
O “homem moderno” fala em evolução sempre acreditando que todos nós estamos avançando e rumando para um ponto ideal, aquele que o teólogo francês Pierre de Chardin chamou de Ponto Ômega, que seria o ápice da Vida e da Criação. E, quando o homem passa a enxergar a evolução como uma caminhada rumo à perfeição, acaba mergulhando no território da obsessão evolucionista e derrapando no raciocínio equivocado de que, se nós evoluímos, estamos indo todos em direção a um futuro melhor.
A grande encrenca é que isso dificulta a compreensão de muitos problemas, inclusive a questão ecológica.
Se nós acreditamos que a humanidade sempre evoluirá para melhor, a tendência é esquecer a natureza deletéria do homem, esquecer que ele é um animal destrutivo. Assim, até a própria noção de ecologia fica prejudicada, uma vez que as pessoas cultivam uma esperança vã de que a humanidade só vai melhorar e que, portanto, todos os transtornos causados pelo homem – efeito estufa, mudanças climáticas, poluição, o desequilíbrio da vida – são ritos de passagem para um mundo melhor. É como se a humanidade acreditasse que em algum momento da existência haverá uma purificação natural e incontestável do homem.
Bem, no mínimo, isso é uma postura arrogante e, certamente, errada. É preciso ter esperança, mas não tem cabimento não fazer nada para mudar a situação e achar que, por pior que seja, vai melhorar no final.
Essa postura ameaça não só a ecologia mas toda a convivência de maneira geral, pois desliga um item imprescindível à sobrevivência e à civilização, que é o alarme.
De maneira geral, nossas medidas de prevenção existem para nos fazer prestar atenção em um perigo.
Mas há uma enorme diferença entre a pura espera e ter realmente esperança, ir atrás das coisas, fazê-las acontecer. No fundo, de certa maneira, o século 20 atormentou o mundo com a ideia de que tudo dará certo para o homem, uma ideia levada à alma popular pelo escritor Fernando Sabino quando disse que “no fim tudo dá certo; se ainda não deu certo, é porque ainda não chegou no fim”.
Esse otimismo, porém, não muda o fato de que, assim como houve um começo, haverá um fim – não necessariamente da vida em si, mas talvez da nossa espécie, dizimada por catástrofe natural, meteoro, bomba, ignorância, vírus ou coisa parecida
É por tal razão que evolução não necessariamente é melhoria – e nem autoconhecimento. Muita gente acha que se conhece bem e que é a melhor companhia para si mesmo, sem perceber que pode estar sozinho e mal acompanhado.
Isso acontece quando as pessoas se alienam, quando não têm clareza daquilo que fazem, quando produzem aquilo que o escritor Eduardo Giannetti da Fonseca usou como matéria-prima em um ótimo livro, Auto Engano. Autoengano é o escondimento e a dissimulação de si mesmo.
Distraídos, perguntam alguns, alarme? Já soou?

***MÁRIO SÉRGIO CORTELLA