A CRIAÇÃO DE DIFERENCIAIS

Henry Kissinger, ex-secretário de Estado dos Estados Unidos da América, disse que “sexo é para principiantes; os experientes gostam é de poder”. A questão central do poder é ser visto para não ser esquecido. Kissinger está certo. O que mais levaria certos políticos brasileiros que já tiveram tudo a continuar na vida pública até a degradação? O que leva alguém que poderia conviver mais com os netos, ter um hobby, desfrutar melhor a vida, o que leva esse alguém a se ver em situações constrangedoras? Para que continuar? Porque eles precisam continuar visíveis.
Por essa mesma razão, pessoas que têm certa exposição gostam de fazer um arquivo com tudo o que mencione seu nome. Eu, por exemplo, às vezes dou entrevistas para jornais e revistas. Eu dei a entrevista, sei o que falei, não preciso dela para me lembrar de nada mas mesmo assim quero recortá-la e guardá-la. Também por isso eu mando enquadrar a capa da revista com uma fotografia minha. Para quê? Ora, eu quero me ver vendo e sendo visto. Nem os serial killers fogem disso. Eles matam para ter exposição. Não é só o policial que recorta tudo o que saiu sobre o assassino nos jornais. O serial killer também guarda todos os recortes para se ver sendo visto. Assim, o maior castigo para um assassino desses seria não ter uma linha publicada nos jornais, seria ser ignorado.
O desejo de não ser esquecido assumiu muitas formas no mundo moderno. Até a desfiguração é uma forma de exposição – haja vista a trajetória de Michael Jackson, que se desfigurou a ponto de comprovar o filósofo Friedrich Nietzsche quando ele disse que “alguns homens nascem póstumos”. A desfiguração contínua fez com que Michael Jackson perdesse sua identidade até ganhar uma outra identidade pública.
Note que “identidade pública” é uma contradição em termos, pois a noção de identidade só faz sentido para um indivíduo. Mesmo assim, a “identidade pública” é um dos maiores desejos da modernidade. Por isso, tantas garotas pagam a agências e fotógrafos para fazer um book. Se uma mãe já não tem idade para desfilar nas passarelas, tenta a todo custo que sua filha tenha a exposição que ela não teve. Se alguém foi viajar, faz questão de postar as fotos num blog ou numa comunidade virtual.
No fundo, tudo isso é o mesmo grito: “Olha eu aqui”. Tudo é a personificação daquilo que Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro escreveram na música Pesadelo: “Você corta um verso, eu escrevo outro. Você me prende vivo, eu escapo morto. De repente olha eu de novo”.
Numa época em que todo mundo tem as mesmas condições e a mesma facilidade de se expor, seja no Facebook, no Orkut, no Twitter, o excesso de exposição devolve as pessoas ao anonimato.
No desespero para se destacar na multidão, a única chance que resta é criar um diferencial – e, nesse jogo, parece que agora vale tudo. Um exemplo disso está no livro Zonas úmidas, da jornalista inglesa Charlotte Roche. É um livro escatológico sobre uma garota de 18 anos que já experimentou de tudo sobre sexo. Essa moça não usa perfume convencional – ela passa a mão no próprio sexo e depois espalha o cheiro pelo corpo, numa forma extremada de demarcar o diferencial do seu desejo de exposição.
Pergunto: depois disso, que outro tipo de registro, de diário, faltaria ser escrito por uma garota? Temos o diário de Anne Frank, que narra todo o desespero por ter ficado trancada num gueto durante o Holocausto. O diário de Anne Sulivan, que trata da capacidade de alguém enxergar sem enxergar. O diário de Bridget Jones, uma mulher que se sente desconfortável consigo mesma e que pensa em homens e calorias durante 95% do seu tempo. Diários de adolescentes, de felizes e infelizes, de perdidos e achados, diários de todo jeito. Como alguém faz para se diferenciar se quase tudo já foi feito?
Um coloca piercing, o outro também. Um expande a orelha, outro imita. Uma transa com quem quer, a outra também. Uma faz tatuagem, a outra vai atrás. Faço mais uma, duas, três tatuagens, o outro faz quatro, cinco, seis, até só sobrarem os olhos. E aí voltamos à desfiguração, que leva à perda de identidade. Se todos têm tatuagem no corpo todo, o que virá agora? Tirar toda a pele certamente seria um diferencial, assim como se perfumar com os próprios cheiros ou descobrir uma outra coisa que ninguém fez para se distinguir na multidão.
Hoje, a diferenciação está ligada à exposição hiperbólica, ao exagero pleno, ao grotesco. Nos nossos tempos, o grotesco se tornou altamente sedutor. É a mulher com a bunda do tamanho de melancia, o seio explodindo de silicone, o lábio inflado como uma boia de sinalização. É o homem com os músculos estourando, com o cabelo hiperproduzido, com a vaidade desvairada de uma diva ou uma violência desmedida a troco de nada.
A hipérbole é mais necessária para quem está por baixo. Veja o exemplo dos Estados Unidos da América da década de 1970, quando a nação mais militarizada do Ocidente foi humilhada pelos vietnamitas. Para resgatar sua autoestima, hiperbolizou a figura do herói de guerra, do Rambo. Antes disso, era um país que cresceu dizimando os índios e, por isso, precisou hiperbolizar a figura do “mocinho” e do cowboy. Essa compulsão ao exagero faz com que a penumbra e o anonimato sejam ainda mais desesperadores.
Essa, de verdade, é a divina comédia humana.

***MÁRIO SÉRGIO CORTELLA
Extraído do Livro “O QUE A VIDA ME ENSINOU”