EXPERIÊNCIA E IMPREVISTOS

No livro Minha vida até agora, uma autobiografia de Jane Fonda que achei que não ia gostar mas adorei, há uma frase marcante – na verdade um lema – de um dos ex-maridos da atriz, o magnata Ted Turner, criador da rede de notícias americana CNN: “Deseje o melhor e prepare-se para o pior”. Esse é um daqueles princípios inteligentes que tornam as coisas mais fáceis: almeje o que há de bom, mas esteja preparado para imprevistos, pois eles acontecem em todos os lugares, mesmo naqueles ambientes que você supostamente domina. Sou professor, faço palestras, vivo da fala, presumivelmente estou preparado para contornar adversidades nessas situações. Mas às vezes, inevitavelmente, o imprevisto supera a experiência.
Certa vez, no Centro Cultural São Paulo, na capital paulista, dei uma palestra sobre Dignidade Humana para a Associação dos Amigos da Biblioteca Braile. Havia 400 cegos na plateia. Sim, cegos, pois eles não gostam de ser chamados de deficientes visuais – uma alcunha dada por aqueles que não perguntam aos interessados como desejam ser chamados. E às vezes é muito diferente o modo de como você gostaria de ser chamado de como as pessoas te chamam. Se você chama alguém do jeito que ela gosta, está criando uma ponte. Se chama como acha que deve chamar, pode estar criando uma barreira. Durante uma parte da minha palestra, eu me referi a eles como deficientes visuais. Até que, em dado momento, um deles, com muita educação, disse que eles não eram deficientes visuais, e sim cegos. Mudei na hora e passei a chamá-los do modo que lhes agradava. Derrubei a barreira e ergui a ponte.
Esse, no entanto, estava longe de ser o principal aprendizado do dia. Houve outros, um deles óbvio mas muito útil: o de que há muitas maneiras de enxergar a mesma coisa. O segundo: como palestrante diante de uma plateia de cegos, eu, sem perceber, estava sendo condescendente. Em vez de acolhê-los, tinha um pouco de piedade, um erro crucial, uma vez que os diminuía como pessoas. Eu tomava mais cuidado com a fala, pronunciava de modo mais enfático e pausado, parecia que eu temia que eles não pudessem me entender. Mas não eram eles que não sabiam ouvir. Eu é que não sabia falar com eles.
Em certo momento, perguntei se eles se lembravam de uma cena do filme ET, dirigido por Steven Spielberg, aquela em que o dedo do garoto encontra o dedo do ET, do mesmo modo que o dedo de Deus encontra o dedo de Adão na pintura que Michelangelo fez no teto da Capela Sistina. “Não, professor”, me disse uma das pessoas da plateia, “nós não podemos nos lembrar, pois nunca vimos a cena”. Pedi desculpas e o mesmo homem me disse: “Professor, não peça desculpas. Explique-nos a cena. Nós não enxergamos mas temos imaginação”. Foi um jeito elegante de dizer “professor, não vemos mas não somos tontos”. Mesmo assim, eu ainda cometia deslizes de linguagem. Dizia coisas como “vejam bem…”. E eles riam. Não um riso nervoso ou encabulado, e sim um riso piedoso – com piedade de mim –, como se quisessem dizer “ah, pobre moço, ah, se ele soubesse o que eu sei”.
Nas quase duas horas em que durou o evento, eu ainda aprenderia mais. Quando se dá, por exemplo, uma aula ou uma palestra, você olha para as pessoas e as pessoas olham para você, como ocorre em qualquer diálogo. Um péssimo sinal – de desinteresse, fastio, desatenção – é quando você fala e o interlocutor olha para outro lado. E ali, naquela palestra para cegos, eu olhava para eles enquanto metade da plateia olhava – na verdade, não olhava (eis outro vício de linguagem), e sim virava a cabeça – para o lado direito e a outra metade para o esquerdo. Aquilo me incomodava. No intervalo, perguntei a um dos responsáveis por que não mantinham a cabeça em minha direção. A resposta: “Ora, para eles, é absolutamente inútil apontar o rosto para você. Eles precisam ouvir. Por isso, estão voltados em direção às caixas de som”.
Eis uma belíssima lição: ver com os ouvidos. Para quem enxerga bem, a lição inclui enxergar com os olhos, não apenas olhar. É o que se poderia chamar de audiência ativa, um conceito que vale para aula, palestra, concerto, partida de futebol, apresentação, reunião ou boa conversa. Uma aula produtiva não é aquela em que as pessoas falam o tempo todo. É aquela em que as pessoas participam mentalmente, raciocinam, refletem, se emocionam, eventualmente têm algo a dizer.
Da mesma forma, ir a um concerto de João Carlos Martins ou a um show do Paulinho da Viola não significa que você vai tocar com eles. Ir a um estádio para assistir a um São Paulo e Santos não quer dizer que você vai entrar em campo para jogar. Só quer dizer que alguém vai lá para deixar fruir as emoções. Isso é que eu chamo de audiência ativa.
No caso da palestra para a associação de cegos, havia também uma via de mão dupla. Eles imaginavam enquanto eu falava. E eu imaginava o que eles estariam imaginando ao ouvir minhas palavras. Aquilo se configurava um desafio intelectual e, portanto, um prazer muito grande. Mas isso só ocorreu porque mudei minha postura.

*** MÁRIO SÉRGIO CORTELLA
Extraído do livro “O QUE A VIDA ME ENSINOU”