POR TRÁS DAS PALAVRAS
O cérebro lida com um fluxo constante de sinais. Expressões, gestos e palavras revelam o que desejamos e pensamos
Nenhum pensamento desagradável passa pela mente do sr. K. enquanto ele caminha para o supermercado, pouco antes do horário de o comércio fechar. Mas ao entrar no estabelecimento registra o olhar fulminante da moça do caixa, ansiosa pelo final do expediente. No momento em que pega o cartão de crédito para pagar pelas mercadorias, a funcionária é incapaz de conter a explosão: “Chega tarde e, ainda por cima, sem dinheiro! Adoro quando isso acontece…”.
Nesse momento, uma torrente de informações o atinge. O rosto vermelho da moça, sua careta de desgosto e tom de voz grosseiro. Não resta dúvida: ela está mesmo furiosa! Os sinais explosivos que o sr. K. recebe são decifrados e avaliados e m diversas regiões do cérebro com a rapidez de um raio. Logo, também ele está irritado: “Quem ela pensa que é, essa idiota?”.
Há mais de um século, psicólogos e neurocientistas investigam a natureza das emoções e a forma como nossa mente as processa. Descobriram que a comunicação emocional desempenha papel importante no convívio social. Charles Darwin já suspeitava do sentido e do propósito da exteriorização dos sentimentos. A expressão facial típica que acompanha emoções básicas como alegria, raiva ou repugnância foi descrita por ele como um código herdado, capaz de incrementar a cooperação dentro de um grupo e aumentar as chances de sobrevivência.
Um grupo de jovens pesquisadores alemães tem investigado a fundo a linguagem de nossos sentimentos. São psicólogos, médicos e físicos que procuram resposta para a seguinte pergunta: como, afinal, o cérebro processa os sinais emocionais recebidos pelos diversos órgãos dos sentidos?
Nossa vida emocional é governada de forma decisiva pelo chamado sistema límbico, conjunto de estruturas localizadas nas profundezas do cérebro. Ali, os estímulos sensoriais recebidos ganham coloração emocional particular. Como comprovam diversos estudos, trata-se de atribuição a cargo sobretudo da amígdala. Essa componente do sistema límbico em forma de amêndoa atua como o sinal de alarme, respondendo com mobilização total a estímulos sinalizadores de perigo: o corpo se arma para fugir ou atacar.
É diante dessa escolha que K. se vê no supermercado. A expressão facial da moça do caixa, seu tom de voz malcriado, o significado de suas palavras – todos esses sinais – são interpretados como ameaça. A consequência disso é que ele começa a suar, o coração bate mais forte e ele se prepara mentalmente para o contra ataque. Mas, antes mesmo que possa tomar consciência dos sentimentos sinalizados, outras regiões cerebrais devem entrar em ação – em particular áreas sensoriais mais externas do córtex. Elas se distribuem por todo o córtex cerebral, separadas de acordo com o sentido em questão: visão, audição e assim por diante.
A perda de certas funções em pacientes com lesões no cérebro sugere que os hemisférios cerebrais reagem de forma diversa às emoções. Pacientes com lesões do lado direito – resultantes, por exemplo, de derrame – podem perder a capacidade de reconhecer as emoções transmitidas por expressões faciais. Descobertas como essa conduziram à formulação da chamada “hipótese dos hemisférios”. Segundo ela, o hemisfério direito seria responsável pelos sentimentos, ao passo que o esquerdo responderia pela linguagem e pela lógica.
O psicólogo Richard Davidson, da Universidade Harvard, contesta a suposição. Com o auxílio de medições efetuadas com eletroencefalografia (EEC), ele descobriu que em pessoas tristes ou deprimidas o hemisfério direito é o mais ativo, enquanto nas mais alegres e felizes, o esquerdo revela maior atividade. É possível, portanto, que o hemisfério cerebral direito processe apenas emoções chamadas negativas, como o luto, o medo ou a repugnância, cabendo ao esquerdo a parte agradável de nossa vida emocional. Essa suposição ficou conhecida como “hipótese das valências”.
Qual teoria estaria correta, então? “Para responder a perguntas dessa natureza, é necessário um amplo esforço de pesquisa”, afirma a psicolinguista Johanna Kissler, da Universidade de Constança, Alemanha. “Por isso, submetemos pessoas a diversos estímulos – imagens ou palavras portadoras de carga emocional, por exemplo e, paralelamente, medimos a atividade cerebral.” Para tanto, os pesquisadores se valem de diferentes procedimentos: além do tradicional EEC, empregam o magneto encefalograma (MEC) ou a tomografia funcional por ressonância magnética (fMRI). A combinação desses métodos permite compreender com mais exatidão o processamento dos sentimentos no cérebro.
ATENÇÃO DIRECIONADA
Seu colega Markus Junghõfer lançou-se à investigação de como percebemos imagens de conteúdo emocional. Ele mostrou a pessoas saudáveis fotos contendo cenas neutras, repugnantes e estimulantes. O detalhe da apresentação foi o fato de as cenas cintilarem às centenas numa tela, sucedendo-se à razão de até cinco por segundo. A sequência veloz permitiu ao pesquisador medir até mesmo respostas brevíssimas do cérebro ao conteúdo emocional apresentado.
Os resultados mostraram que, 200 milissegundos após terem piscado na tela, as imagens com carga emocional deflagraram um pronunciado sinal elétrico no córtex visual, tão mais forte quanto mais provocativa a imagem em questão, fosse ela uma cena de sexo ou de perigo. Portanto, o conteúdo emocional dos estímulos sensoriais influencia rapidamente o processamento cerebral em regiões sensoriais mais externas.
“É plausível supor que o sistema límbico responde a estímulos-chave antes mesmo de a informação contida na imagem chegar ao córtex visual”, acredita Junghõfer. “A amígdala, por exemplo, poderia, em frações de segundo, dirigir nossa atenção visual para estímulos importantes.” A ativação do sistema límbico, verificada em medições com fMRI, favorece essa interpretação. Do ponto de vista evolutivo, tal reação relâmpago da “atenção direcionada” faz sentido: quem se afasta a toda velocidade de potenciais fontes de perigo ou se aproxima rapidamente de estímulos atraentes – de uma presa, por exemplo – aumenta suas chances de sobrevivência.
A sequência de fotos revelou ainda mais. O sinal cerebral mostrou-se nitidamente mais forte do lado direito, provavelmente porque as redes neuronais responsáveis por atenção e orientação espacial se situam no hemisfério direito. Mas o que acontece quando submetemos as pessoas a palavras ou frases de conteúdo emocional? Na maioria de nós, as áreas responsáveis pelo processamento da linguagem situam- se no hemisfério esquerdo. Nesse caso, será esse lado o mais ativo ou prevalece rá ainda assim o hemisfério direito?
Os pesquisadores de Constança examinaram também essa questão. Para tanto, em vez de imagens, apresentaram aos participantes adjetivos de cargas neutra, positiva e negativa. Mais uma vez, constataram a presença do já mencionado sinal elétrico imediato no córtex visual, em resposta a estímulos emocionais – agora, porém, com predominância do lado esquerdo do cérebro. Evidencia-se, pois, que a rápida ativação do sistema límbico faz com que os sinais recebidos sejam processados com mais precisão pelas regiões cerebrais correspondentes.
Outro integrante do grupo, o neurologista Dirk Wildgruber, baseou seus experimentos na entonação das palavras. Com frequência, o modo como dizemos as coisas transmite mais informação emocional do que o que estamos dizendo. Isso se verifica quando conteúdo e entonação se apartam um do outro, como no caso da ironia. “Adoro quando isso acontece…”, diz a caixa, mas K. compreende muito bem a crítica, porque percebe mais autenticidade no tom do que no enunciado. Aos participantes de sua experiência, Wildgruber apresentou frases como “Tenho visitado a Agnes todo fim de semana”, ditas por um ator ora com alegria, ora com frustração e ora de forma neutra. Elas foram gravadas e editadas em computador de forma a diferir apenas em altura e na duração das vogais. Isso bastou para que os ouvintes percebessem a força da expressão emocional.
SECREÇÃO REDUZIDA
No entanto, para percebê-la, precisam não apenas ouvir e compreender as frases, mas também dirigir sua atenção para a qualidade sonora de cada uma, armazenando-a na memória operacional. Tudo isso pode ser constatado na leitura dos padrões de atividade registrados pelas imagens de tomografia funcional. Além disso, a coloração emocional estimulou duas áreas do córtex – uma na porção frontal do cérebro, outra no lobo parietal – e, aliás, de modo mais pronunciado do lado direito.
“O êxito na diferenciação das entonações baseia-se, no entanto, em numerosas contribuições parciais dos dois hemisférios”, salienta o pesquisador, incitando à reflexão. Está claro, portanto, que não se pode afirmar de forma cabal se cabe de fato ao hemisfério direito a primazia no trato das emoções. Isso parece depender, antes, da modalidade sensorial em questão e de como se dá a estimulação.
No futuro, os pesquisadores pretendem investigar as perturbações no processamento dos sentimentos nas pessoas que sofrem de distúrbios psíquicos. Na Universidade de Mannheim, na Alemanha, a psiquiatra Gabriele Ende estuda pacientes deprimidos. Eles têm mais dificuldade de reconhecer os sentimentos dos outros, assim como de comunicar os seus próprios, supostamente em virtude da secreção reduzida de certos neurotransmissores no cérebro. Com o auxílio da espectroscopia por ressonância magnética (ERM), a pesquisadora mede os produtos do metabolismo no tecido nervoso dos pacientes. No hipocampo – região cerebral importante para a memória de longo prazo -, os depressivos exibem uma quantidade menor de metabólitos do neurotransmissor acetilcolina do que as pessoas saudáveis. Cabe agora descobrir se as mesmas disfunções na central de sentimentos do sistema límbico poderiam explicar a perturbação no processamento de emoções.
Embora ainda haja muito por pesquisar, uma coisa é certa: a noção popular de um hemisfério direito “emocional” oposto a um hemisfério esquerdo “racional” nada mais é que uma simplificação grosseira. É fato que muitos estudos mostram um processamento mais intenso de sinais emocionais do lado direito do cérebro, mas a comunicação emocional demanda tantos canais e processos parciais diferentes que a “hipótese dos hemisférios” pode, no máximo, almejar um grau restrito de acerto.
A comunicação emocional ainda é uma equação com muitas variáveis. Por experiência própria, sabemos que também nosso estado de espírito influencia a maneira como acolhemos os sentimentos alheios. Se K. tivesse sido promovido naquele dia, talvez pouco tivesse se importado com o mau humor da moça do caixa. Mas deixou-se contagiar pelo rancor da funcionária – ainda que tenha se arrependido logo em seguida.
EMOÇÕES INSTANTÂNEAS:
O cérebro reage de forma distinta diante de cada uma das imagens menos de 200 milissegundos depois de observá-las. A intensidade das reações registradas por encefalografia variada menos intensa à mais forte.
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