COMO SEREMOS JULGADOS PELOS BISNETOS DE NOSSOS BISNETOS?

O ajuste de contas com o racismo e outros legados da escravidão está acelerando nos Estados Unidos, e isso tem implicações profundas na maneira como os brasileiros interpretam sua própria história. As manifestações nas ruas americanas estão diminuindo, sim, mas o combate tem novas frentes, e uma delas é a campanha para renomear bases militares, faculdades, times, estados e até a capital, cujo nome oficial é Washington, Distrito de Columbia.
Para alguns, tanto Washington como Colombo (Columbus em inglês) são grandes vilões. O primeiro tinha dezenas de escravos, e a “descoberta” das Américas pelo segundo levou a um genocídio dos povos indígenas, crimes que merecem não apenas a derrubada de estátuas mas também a retirada de outras honras. Mas para mim a campanha levanta duas perguntas ainda mais complexas: E, se ousamos julgá-lo, quais os critérios mais justos?
Quando estava escrevendo a biografia do Marechal Rondon, fiz uma descoberta que me deixou estremecido: Rondon de vez em quando açoitava suas tropas mais desobedientes, e numa dessas ocasiões um soldado faleceu, e o então capitão foi julgado num tribunal militar. O fato não combinava com minha imagem de Rondon, mas tinha de registrá-lo. Diminuiu a estatura de Rondon? Talvez, embora as regras do Exército permitissem o uso do chicote. Mas tira toda a grandeza do homem? Acho que não. Agora estou escrevendo um livro em que Maurício de Nassau é um dos personagens principais. Nassau foi, sem dúvida, um dos precursores do Iluminismo europeu: abraçou a revolução científica, o pluralismo religioso e o fim do mercantilismo. Mas as pesquisas que fiz nos arquivos do Brasil Holandês no Recife no ano passado também mostram que ele sabia que o sucesso da colônia dependia do emprego maciço de escravos africanos nos engenhos, e não se opôs a isso. Sim, tentou suavizar o sofrimento dos escravizados e até cogitou uma aliança com Palmares. Mas nada fez para acabar com o escravismo. Ou seja, Nassau foi um produto de seu tempo, atipicamente esclarecido e até clarividente em alguns aspectos, mas com os olhos vendados em outros. Foi, então, parecido com Washington, Jefferson e outros fundadores da república norte-americana: dos cinco primeiros presidentes, apenas um, John Adams, não era proprietário de escravos. E mais uma vez enfrento o dilema de como retratar um preclaro da história. O fato de Nassau ter sido indiferente à escravidão deve suplantar ou prevalecer sobre suas grandes façanhas nas ciências, cultura e governança? Não tenho resposta. Mas sei de uma certeza: não é justo julgar o passado pelos padrões e valores de hoje. Entre os antropólogos brasileiros, por exemplo, existe uma corrente forte que quer condenar Rondon como agente de um projeto oficial genocida. Mas em 1910 Rondon não tinha ideia do que ia acontecer em 1970, nem podia. Fundou o Serviço de Proteção aos índios para evitar um genocídio, não para fomentá-lo, e não tinha o luxo de poder olhar para trás da gávea privilegiada do século XXI.
No caso do escravismo, é importante lembrar que até o século XIX essa prática desumana e cruel foi quase universal. Os muçulmanos escravizaram os europeus, os europeus escravizaram os africanos, os próprios africanos escravizaram e venderam outros africanos, os chineses escravizaram seus vizinhos asiáticos, os indígenas escravizaram aldeias rivais etc. A humanidade ainda não tinha progredido para acabar com esse flagelo. Para fazer justiça, vamos condenar todo mundo ou apenas os europeus? Nos anos 1980, quando era correspondente no México, abordei em Veracruz réplicas dos três navios em que Colombo navegou em 1492. Fiquei impressionado com a fragilidade deles – e com a coragem de Colombo e sua tripulação, amontoados naquelas embarcações sem instrumentos modernos de navegação. Colombo (como Cabral) virou um símbolo do extermínio que seguia suas jornadas inéditas. Mas são eles os principais responsáveis? E os méritos de nossa civilização, não são da mesma forma parte do legado deles?
Além disso, me pergunto: se a raça humana conseguir sobreviver à atual pandemia (e às outras que virão) e ao aquecimento global (que também virá), como seremos julgados pelos bisnetos de nossos bisnetos? Não estou falando só de nossos líderes míopes, mas de todos nós. Como dizia Shakespeare, “o mal que os homens fazem sobrevive, o bem é muitas vezes enterrado com seus ossos”.
Tomara que o futuro seja mais generoso conosco do que nós com nosso passado.
LARRY ROHTER – é jornalista e escritor, é ex correspondente do New York Times no Brasil e autor de Rondon, uma biografia
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