MINHA LUTA POR UM REMÉDIO DE 12 MILHÕES
A odisseia de uma mãe para conseguir comprar para a filha, que sofre de uma doença rara, o medicamento mais caro do mundo
A bebê Marina Moraes de Souza Roda, de 1 ano e 11 meses, diagnosticada com AME (atrofia muscular espinhal) – uma doença genética rara, neurodegenerativa e que pode levar à morte antes dos 2 anos de idade – será a primeira criança a receber no Brasil o medicamento mais caro do mundo: US$ 2,125 milhões (cerca de R$ 12 milhões). Marina arrecadou o dinheiro em dez meses por meio de uma campanha nas redes sociais. Além dela, pelo menos outras 24 crianças brasileiras estão em busca de ajuda na internet para angariar fundos para comprar a medicação.
O remédio inacessível é o Zolgensma, do laboratório Novartis. Trata-se da primeira terapia genica do mundo indicada para o tratamento da AME. Os pacientes com a doença nascem sem o gene SMN1, responsável pela produção de uma proteína que alimenta os neurônios motores, que enviam os impulsos elétricos do cérebro para os músculos. Sem essa proteína, ocorre a perda progressiva da função muscular e as consequentes atrofia e paralisação dos músculos, afetando a respiração, a deglutição, a fala e a capacidade de andar. O ineditismo do medicamento, que é aplicado em uma única infusão venosa, é que ele fornece ao paciente uma cópia sintética do gene SMN1, fazendo com que o corpo da criança passe a produzir essa proteína. Ele é indicado para pacientes com até 2 anos de idade – quanto menores as perdas, melhores os resultados.
O Zolgensma foi aprovado nos Estados Unidos em maio do ano passado e aguarda aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para ser comercializado no país. O remédio não promete curar a doença, mas estabilizar a progressão dos sintomas. É visto por muitos pais como de grande potencial de cura, por oferecer ao paciente uma cópia do gene ausente. O desafio do fabricante é convencer a classe médica de que os benefícios decorrentes de uma única dose são permanentes.
Uma outra bebê brasileira, Laura Ferreira Albuquerque de Carvalho, hoje com 1 ano e 7 meses, participou dos estudos clínicos da droga. Ela foi a primeira criança do país a receber o remédio, nos Estados Unidos, em março do ano passado, ainda na fase de testes. Um ano e cinco meses depois, Laura não desenvolveu nenhum sintoma da doença e cresce como uma criança normal, sem AME. “Ela conquistou todos os marcos motores de desenvolvimento, como qualquer criança de sua idade. Laura anda, come sozinha, tem força, coisas que uma criança com AME não conseguiria fazer. Oficialmente não posso afirmar, mas tenho certeza de que minha filha está curada”, disse Estefânia Miguel Ferreira, de 40 anos.
Hoje em dia, o único medicamento aprovado para tratamento da AME no Brasil é o Spinraza, da Biogen, também de alto custo e incorporado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no ano passado. Ele é ministrado por meio da aplicação de seis doses no primeiro ano e três doses por ano pelo resto da vida do paciente ao custo aproximado de R$ 145 mil cada dose. O Spinraza atua no gene SMN2, fazendo com que ele aumente a produção da proteína responsável por alimentar os neurônios motores. Também não promete a cura da doença. Há uma terceira medicação, o Risdiplam, da Roche, que é oral e de uso contínuo para o tratamento, mas ainda aguarda aprovação das agências reguladoras nos Estados Unidos e no Brasil.
O mês de agosto é internacionalmente reconhecido pelo combate e pela conscientização da AME, concentrando ações em torno da divulgação, informação e capacitação de profissionais. Por isso, a comunidade de familiares de pacientes com a doença luta para que o dia 8 de agosto seja instituído como Dia Nacional da Pessoa com AME. O projeto de lei já foi aprovado pela Câmara dos Deputados e precisa ainda passar pelo plenário do Senado, antes de ir para sanção presidencial. Os familiares também brigam para que o Ministério da Saúde inclua o exame de diagnóstico da AME no teste do pezinho, a triagem neonatal que existe desde a década de 1970 para diagnosticar precocemente doenças metabólicas, genéticas ou infecciosas.
O exame, fornecido pelo SUS, avalia diagnósticos de fenilcetonúria, hipotireoidismo congênito, anemia falciforme, fibrose cística, hiperplasia adrenal congênita e deficiência de biotinidase. O exame feito por laboratórios particulares chega a pesquisar 20 doenças. Nos Estados Unidos, alguns estados já incluíram a AME no rastreio neonatal. “A AME é uma doença rara e sem cura. A gente trabalha com a ideia de uma triagem neonatal ampliada para que a criança seja diagnosticada antes de os sintomas aparecerem. Quanto mais cedo for feito o diagnóstico e iniciado o tratamento, maiores as chances de a doença nunca se manifestar”, explicou Suhellen Oliveira da Silva, mãe de dois meninos com AME e presidente da Associação de Familiares e Amigos dos Portadores de Doenças Neuromusculares.
No relato das páginas a seguir, Talita Roda, mãe de Marina, conta o caminho percorrido até conseguir comprar a medicação mais cara do mundo e fala sobre a esperança de ver a filha curada depois da aplicação, que aconteceu na sexta-feira 7 de agosto.
Minha filha, Marina, nasceu com AME (Atrofia Muscular Espinhal), uma doença genética rara, neurodegenerativa e que pode levar à morte ou dependência total de aparelhos antes dos 2 anos de idade.
Nossa história começou em setembro de 2017, quando eu e o Renato nos casamos. Já morávamos juntos havia dois anos e queríamos muito ser pais. No dia 31 de dezembro do mesmo ano descobri que estava grávida. A alegria foi tanta que eu e ele imediatamente escolhemos os nomes: Marina se fosse menina, Miguel se fosse menino. Minha gravidez foi maravilhosa, absolutamente normal, sem nenhuma intercorrência. No dia 1º de setembro de 2018, Marina nasceu pesando 4 quilos e medindo 51 centímetros. Uma bebê linda e saudável.
Fomos vivendo nossa vida completamente normal como pais de primeira viagem. Marina estava se desenvolvendo bem e dentro dos padrões esperados. Até então, eu nunca tinha ouvido falar da AME. Meu primeiro contato com a doença foi no dia 11 de dezembro, quando vi uma publicação com a foto de um bebê traqueostomizado que havia sido diagnosticado com AME. Os pais estavam com uma campanha para conseguir dinheiro para comprar a medicação necessária para estacionar a doença [Spinraza, que na época ainda não era fornecido pelo SUS e custava R$2 milhões]. Aquilo mexeu muito comigo, fiquei muito abalada, fui pesquisar sobre a doença e fiz então minha primeira doação em campanhas de internet.
A partir dali passei a observar mais a Marina, mas ela estava se desenvolvendo bem. Em fevereiro, fui visitar o bebê de uma amiga, que estava com 2 meses. Quando peguei ele no colo imediatamente senti diferença. Ele já tinha o corpo durinho, já mantinha os ombrinhos alinhados. Marina tinha 5 meses e era toda molinha, não conseguia sentar sem apoio nem rolar com a barriga para baixo. Nitidamente havia uma diferença de tônus muscular entre os dois e fiquei com aquilo na cabeça.
Aos 6 meses dela voltei a trabalhar, e Marina começou a ir a uma escolinha. Ela era a bebê mais quietinha, mas achava que era por ser a mais nova do berçário. Pouco tempo depois, com 7 meses, ela teve um resfriado, com febre e muita secreção. Fiquei desesperada, fomos para o hospital e ela estava com pneumonia. Tivemos alta e fomos tratar em casa. Mas eu percebi que a respiração dela estava mais ofegante. Filmei e mandei para a pediatra, que recomendou que voltássemos ao hospital. A saturação dela estava em 89% e ficamos internadas. Até então, nem passava pela minha cabeça que poderia ser AME.
Durante a internação, comecei a reparar que os movimentos da Marina estavam regredindo. Quando faziam manobras para aspirar secreção, ela não reagia, não tinha força para tossir. De novo, fiquei com aquilo na cabeça. Algo não estava normal. No dia em que o hospital pretendia dar alta, pedi para fazerem um exame físico e clínico nela. A fisioterapeuta começou a fazer uns testes, e Marina não respondia. Não conseguia apoiar os bracinhos no cotovelo, não segurava a cabeça, não rolava e só chorava. Ali eu pensei: Marina tem AME.
Pedi para a médica solicitar um exame de AME, mas ela não queria, alegando que essa doença não era a primeira opção de diagnóstico. Trata-se de um exame de DNA que mostra se a criança tem ou não o gene SMN1, que é o responsável por produzir as proteínas que alimentam os neurônios motores. São esses neurônios que levam os sinais do cérebro até os músculos. A criança com AME nasce sem esse gene e, por causa disso, os neurônios vão morrendo progressivamente. Depois de eu muito insistir, no dia seguinte decidiram fazer o exame, mas o resultado demoraria 30 dias. Foi angustiante esperar, pois cada dia a mais é um dia a menos.
Mesmo sem diagnóstico formal, iniciamos fisioterapia motora e respiratória na Marina. O resultado saiu no dia 5 de maio de 2019. Eu estava no trabalho, meu marido estava na rua e entrou em uma igreja quando liguei avisando que leria o resultado. Quando abri, fiquei desesperada: o laudo indicava que Marina não tinha o gene SMN1 e possuía apenas duas cópias do gene SMN2 – uma espécie de gene backup, que na ausência do SMN1 produz cerca de 10 a 25% da proteína necessária para manter os neurônios motores vivos. Fiquei com raiva, revoltada. Joguei tudo no chão, comecei a chorar. Me levaram para o ambulatório da empresa, tomei alguns calmantes até meu marido chegar para me buscar. Quando cheguei em casa não conseguia pegar a Marina no colo, não conseguia ficar em lugar nenhum. Era como se tivessem me tirado do mundo. Só conseguia pensar que, sem tratamento, o prognóstico era 2 anos de idade e que a AME é a doença genética que mais mata bebês no mundo. Meu foco naquele momento era como conseguir o Spinraza, que era a única medicação aprovada no Brasil para tratamento da doença. Ele é um medicamento que tem de ser aplicado pelo resto da vida da criança e atua no gene SMN2, fazendo com que ele produza mais proteínas para alimentar os neurônios motores. Um mês depois do diagnóstico, Marina recebeu a primeira dose do Spinraza. Nesse meio-tempo, soubemos da aprovação do Zolgensma nos Estados Unidos e ficamos doidos. Essa é uma medicação revolucionária, uma terapia gênica, que devolve para o corpo uma cópia sintética do gene SMN1. Mas ele custa US$ 2,125 milhões, na época cerca de R$ 9 milhões. Como conseguir esse dinheiro em tão pouco tempo?
Ficamos num dilema: abrir ou não abrir uma campanha? Tínhamos medo da exposição de nossa filha e de sermos julgados o tempo todo, mas decidimos ir à luta, pois quedamos o melhor para ela. Criamos o perfil @cureamarina e no dia 4 de agosto abrimos oficialmente nossa campanha no estádio do Corinthians. Era uma partida entre Corinthians e Palmeiras, entramos em campo com a Marina e com os jogadores, com faixas e camisetas da campanha. Ali começamos a ganhar mais seguidores, mas fechamos o ano com cerca de R$ 800 mil, um valor muito aquém do que precisaríamos.
Eu postava fotos da Marina feliz, bem vestida, sorrindo, comendo. Por isso eu era frequentemente atacada, com seguidores dizendo que havia crianças que precisavam mais, que Marina nem tinha a doença, me perguntavam por que eu não vendia o carro e o apartamento. Por várias vezes pensei em desistir da campanha. Mas na madrugada do dia 25 de dezembro eu sonhei que a Marina estava recebendo o Zolgensma. Dali em diante eu tive a certeza de que ia dar certo e que eu precisava continuar lutando.
Mudamos a estratégia das publicações e mostramos a realidade do dia a dia da Marina com a doença. Fizemos várias ações, pedágios, rifas, sorteios. E assim os seguidores foram aumentando e as doações também. De repente a campanha ganhou proporções muito grandes e conquistamos nosso primeiro R$ 1 milhão no dia 9 de janeiro. Vários artistas começaram a compartilhar a campanha, mas a grande virada aconteceu quando o DJ Alok publicou um vídeo da Marina nas redes sociais e disse ”Força, guerreira”. Foi impressionante, conquistamos mais de 20 mil seguidores e R$ 89 mil em um único dia.
Fizemos nosso segundo milhão em fevereiro, quando alcançamos 70 mil seguidores. Em março, conseguimos chegar aos R$ 4 milhões. Aí veio a pandemia do coronavírus, o dólar disparou, e o remédio que custava RS 9 milhões passou a custar R$ 12 milhões. Estávamos correndo contra o tempo, mas eu não podia desanimar. No dia 25 de junho alcançamos R$ 12,3 milhões, a quantidade necessária para a compra do remédio e encerramos oficialmente a campanha. Eu chorei muito, queria agradecer a cada pessoa que nos ajudou.
Mas nem tudo estava resolvido, ainda havia a questão dos impostos de importação – 4% de imposto federal e 18% estadual, que juntos somavam quase R$ 2,5 milhões. O Hospital Albert Einstein assumiu o caso da Marina e iniciou os trâmites para a compra. No dia 8 de julho, conseguimos a isenção do imposto federal. Pagamos a medicação no dia 28 de julho. O remédio saiu dos Estados Unidos no sábado, dia 1º de agosto, e chegou ao Brasil no dia 3 – um ano depois de tornarmos a história da Marina pública. Na noite do dia 5, quarta-feira, foi autorizada a isenção do imposto estadual. Nós internamos a Marina na quinta-feira 6. A infusão estava prevista para sexta-feira e demoraria cerca de 60 minutos.
Embora o Zolgensma não prometa a cura da doença, eu, como mãe, acredito na cura de minha filha. Eu sonho que um dia Marina possa viver sem nenhuma limitação, que ela possa ter o que quiser, que cresça e tenha as mesmas oportunidades de toda criança da idade dela. Sonho em ver Marina dando seus primeiros passos, andando sozinha. Estamos muito felizes e sou eternamente grata por cada doação recebida de amigos e desconhecidos. Faríamos tudo de novo.
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