UM PROBLEMA DE GENTE GRANDE
A aprovação no Brasil do uso de um remédio emagrecedor para jovens estimula a discussão sobre o aumento estrondoso da obesidade em crianças e adolescentes, condição que foi reforçada com o prolongado confinamento obrigatório da quarentena

Em uma decisão pioneira no mundo, o Brasil autorizou o uso de um medicamento emagrecedor para adolescentes. O aval, concedido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no início do mês, liberou a liraglutida, do laboratório dinamarquês Novo Nordisk, para meninas e meninos a partir de 12 anos. Até então, a permissão era dada apenas a adultos. Nos Estados Unidos, a aprovação está prevista para sair até o fim deste ano. O remédio, com pouquíssimos efeitos colaterais, age no sistema da saciedade e da fome do organismo, reduzindo em especial o desejo por alimentos gordurosos e ultracalóricos. O estudo que embasou a autorização, publicado na prestigiosa revista científica New England Journal of Medicine, mostrou que a droga diminui em até 10% o peso ao longo de um ano. É taxa aparentemente baixa a olhos leigos, mas foi motivo de celebração pela comunidade médica. “É a notícia mais impactante no tratamento de jovens obesos dos últimos anos”, diz Eduardo Rauen, professor de nutrologia da pós-graduação do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, e médico do esporte. Os profissionais de saúde dispunham apenas de uma outra substância para essa faixa etária, o orlistate, que atua no intestino, mas com um efeito adverso que restringe a administração sobretudo entre a garotada: diarreia.
A possibilidade de atacar a obesidade infanto juvenil com um fármaco restrito a pais e avós é realmente um marco. Poucas condições de saúde se tornaram tão dramáticas recentemente. Levantamento da Imperial College, em Londres, em parceria com a Organização Mundial da Saúde, revelou que nos últimos cinquenta anos o índice de crescimento do problema em crianças e adolescentes saltou globalmente em 1.027% – o dobro em relação aos adultos.
No Brasil, hoje 15% das crianças e adolescentes acima de 5 anos de idade estão obesos. Na década de 70 eram apenas 3%.
A liraglutida tem uma história marcante na farmacologia. Ela nasceu em 2009, para o controle de diabetes do tipo 2. Com o tempo, porém, notou-se que os doentes emagreciam, com poucos danos colaterais. O efeito provocou uma corrida mundial às farmácias. No entanto, a ala mais conservadora da medicina rechaçou o excessivo uso (utilização não oficial) da droga. Em 2012, porém, um artigo na British Medical Journal comprovou a ação tão desejada dos consumidores. Quatro anos depois, ela foi finalmente aprovada para a perda de quilos entre adultos. O composto imita uma substância natural do organismo, o GLP-1, o principal hormônio associado à sensação de saciedade e ao mecanismo de produção de insulina. O GLP-1 é sintetizado toda vez que o alimento chega à porção final do intestino delgado. Nesse momento, o hormônio ativa as células cerebrais de fastio e da fome e reduz os movimentos intestinais de contração, prolongando a satisfação alimentar. Mas, como o GLP-1 da liraglutida não depende da chegada de comida ao intestino, ele atinge concentrações na corrente sanguínea muito maiores do que a do hormônio natural – e dura mais no organismo, provendo o emagrecimento. O remédio é injetável e deve ser administrado diariamente. Por agir de maneira muito semelhante ao comportamento natural do organismo, a liraglutida também muda a forma como os pacientes se relacionam com a comida. A diferença surge já no segundo dia de tratamento. O apetite é reduzido no mínimo dois terços. Diz a endocrinologista Claudia Cozer Kalil, coordenadora do Núcleo de Obesidade e Transtornos Alimentares do Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo: ”A obesidade se tornou uma epidemia entre os jovens”. O claro vilão: a má alimentação. E por má alimentação entende-se não necessariamente grandes porções, mas excesso de produtos processados. Os meses de quarentena parecem ter piorado a situação. No início, as famílias se entusiasmaram com a oportunidade da convivência doméstica, despendendo horas a fio em torno da elaboração de pratos gostosos, naturais. Não durou muito, e a facilidade da comida industrializada entrou nos lares, naturalmente. Estima-se que 50% dos adolescentes que ficaram em confinamento ao longo de quatro meses ganharam peso, não só pela redução na atividade física, mas principalmente por se alimentar mal.
No final da infância e na adolescência vive-se um paradoxo metabólico em relação ao emagrecimento. Em tese, fazer com que um corpo em pleno vigor da puberdade perca peso seria como ir contra a natureza. “O apetite do jovem, que tem o crescimento acelerado, é maior que o do adulto e o de uma criança”, diz o endocrinologista Antônio Carlos Nascimento, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. A título de comparação, um menino de 1,70 metro aos 16 anos de idade tem de consumir de 40% a 50% mais calorias do que um homem de 40 anos com a mesma altura. Come-se por vontade, para sustentar o corpo e as atividades diárias, mas também por necessidade. Nesse desenho, a facilidade de acesso a determinados tipos de alimentos engrossou o caldo do descontrole, e o que pedia apenas atenção agora exige muito cuidado – especialmente, insista-se, com a meninada.
Parte da indústria começou a trilhar um novo caminho para se livrar do papel de algoz. Pesquisa mundial conduzida pela Deloitte, empresa especializada em consultorias e auditorias, mostrou que nove em cada dez companhias de alimentação introduziram em 2017 ao menos um produto formulado ou reformulado para se tornar mais saudável – com menos sal, gordura ou açúcar. Outro levantamento, do instituto Euromonitor, identificou globalmente uma expansão anual de 1,8% do mercado de comida industrializada saudável, ante 1,5% do lote tradicional, banhado de conservantes e similares. No Brasil o naco não para de crescer – chegou, em 2018, a 10,7% do total de vendas do setor, segundo a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos. Mas há muito a ser feito ainda. As vendas de alimentos industrializados cresceram 25% no mundo entre 2017 e 2019. A tendência se reflete nos fast-foods, com alta mundial de 30%.
É impossível, no entanto, excluir da balança os responsáveis pela escolha (ou no mínimo pelo pagamento) da comida da criança e do adolescente: os pais. Cerca de 70% da ingestão calórica de um garoto ou uma garota de até 12 anos acontece sob os domínios da família. O mesmo ocorre com metade dos que estão mais próximo dos 18 anos. O ritual de reunir a família em torno de uma mesa na hora das refeições seria, por si só, saudável. Pesquisadores da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, comprovaram que crianças e adolescentes que se sentam à mesa com os adultos têm uma alimentação mais equilibrada e menos risco de travar guerras contra a balança. O trabalho, conduzido com 183.000 garotas e garotos de até 17 anos, constatou que três refeições por semana em família reduzem os índices de obesidade – houve diminuição de 12% no sobrepeso. Mas esse mundo ideal inexiste em grande parte das residências. Pais ocupados ou exaustos inúmeras vezes oferecem aos filhos macarrão instantâneo, nuggets de frango congelados e sucos de caixinha. Houve o breve interregno dos primeiros dias de quarentena, mas já passou. E, agora, retoma-se a linha evolutiva da história contada pelo que vai à boca – e que a propaganda alimentou.

Nos anos 1950, as diversas formas de empacotamento, revolução recém-nascida, permitiram o planejamento de um cardápio inteiro à base de produtos – enlatados, desidratados, congelados. Naquele tempo de inovações aceleradas, era comum a ode ao consumo de calorias nos lares. Criança robusta era sinônimo de criança saudável. Acreditava-se que, com um estoque generoso de gordura, ela dispunha também de uma grande reserva de energia, o que a protegeria contra as doenças. As empresas anunciavam seus produtos repletos de açúcar como se fossem um néctar. Bebês apareciam tomando refrigerante. Na década de 60, a associação da indústria do açúcar dos EUA lançou campanhas exibindo o produto como regulador de apetite. Não é mais assim, mas a cultura da comida, digamos, fácil, é atávica e pressupõe esforço enorme para ser vencida.
A obesidade infantil, filha dessa postura desregrada, se não for tratada, é um gatilho para doenças crônicas e graves. Adultos com obesidade desde a infância vivem até dez anos menos em relação aos que mantiveram a linha. “Sob o ponto de vista fisiológico, se fosse escolher a pior fase da vida para ser obeso eu diria que é na adolescência”, diz o nutrólogo Rauen. Um dos principais motivos: o número de células adiposas, que retêm gordura, conhecidas como adipócitos, é geralmente definido até os 20 anos. Depois dessa idade, nada é capaz de diminuir a quantidade de adipócitos, nem o mais drástico regime alimentar. Vale o sábio conselho que virou mantra entre os bons endocrinologistas: “A melhor forma de emagrecer é nunca engordar”. Cuidemos das crianças e adolescentes.


Excellent coverage on the issue of child obesity and health! 😊🙏💛👊🎉
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