INTRIGAS E AGRESSÕES
Reações impulsivas podem variar de um gênero para outro. Mulheres em geral, são mais dissimuladas. Homens, mais descontrolados
Os homens são mais violentos que as mulheres? A raiz da violência está nos genes ou nos fatores socioculturais? No intuito de responder a essas e outras questões, nos últimos anos pesquisadores realizaram vários estudos longitudinais – nos quais psicólogos, psiquiatras e neurologistas acompanharam voluntários durante um longo período, desde a infância ou início da adolescência até a idade adulta. Como comprovam estatísticas criminais no mundo inteiro, adolescentes e adultos jovens do sexo masculino são responsáveis pela maioria dos assassinatos, lesões corporais graves ou casos de violência sexual.
Esse dado, entretanto, não significa que mulheres sejam menos agressivas. Homens tendem à violência física direta, enquanto elas recorrem à agressão dissimulada, superando de longe os garotos ao engendrar intrigas e realizar pressões psicológicas. No caso das meninas, os distúrbios de comportamento social surgem principalmente na puberdade. Aos 17 ou 18 anos, em geral eles desaparecem, provavelmente em razão das alterações hormonais típicas dessa fase.
As causas das diferenças entre homens e mulheres são variadas. Papéis sociais aprendidos por cada sexo têm sua importância. Ainda é comum ouvir, por exemplo: “Meninas não batem!”, mas: “Meninos têm de saber se defender!”. Além disso, estratégias de agressão indireta exigem “inteligência social” relativamente alta, que se desenvolve antes e mais rapidamente nas meninas. Diferenças neuropsicológicas também exercem influência nas manifestações de agressividade de ambos os sexos.
Em um trabalho publicado por nosso grupo em 2005, apresentamos mais detalhadamente as raízes psicobiológicas da violência física e avaliamos resultados colhidos em vários países. Foram analisados desde brigas com socos ou pontapés, mas sem maiores consequências, até embates que provocaram lesões corporais graves e homicídios.
Um dos maiores estudos longitudinais teve início em 1972, na Nova Zelândia. Uma equipe de psicólogos de vários países acompanha há 34 anos o destino de aproximadamente mil pessoas nascidas naquele ano na cidade de Dunedin. Os pesquisadores Terrie Moffitt e Avshalom Caspi, do King’s College de Londres, concentraram seus estudos principalmente em formas de comportamento anti social acompanhadas de violência física.
O pequeno grupo de violentos crônicos do sexo masculino que se revelam logo cedo apresenta características como baixa tolerância à frustração, dificuldade em aprender regras sociais, problemas de concentração, capacidade reduzida de compreensão dos sentimentos das outras pessoas e inteligência defasada.
Entretanto, o que mais se destaca é a falta de contenção psíquica, que os faz passar do sentimento ao ato quase imediatamente. Os impulsos agressivos são deflagrados pelas emoções; ao menor sinal de provocação ficam furiosos e não conseguem medir as consequências de seus atos. Alguns relatam, por exemplo, que se sentiram ameaçados ao ser encarados por alguém – e por isso tiveram de se defender. Posteriormente, muitas vezes se arrependem. Esses delinquentes crônicos costumam assumir posição de liderança em seu grupo – e sentem-se valorizados com isso, o que alimenta um círculo vicioso.
Segundo as observações, dois grupos podem ser diferenciados: no maior deles, a incidência de atitudes agressivas aumenta em ritmo acelerado quando os jovens têm entre 13 e 15 anos. Nos adolescentes em geral essas tendências regridem. Uma pequena parte dos voluntários, porém, logo na infância – às vezes já por volta dos 5 anos – apresenta comportamento anti social que permanece até a idade adulta. Esse grupo é formado quase exclusivamente por meninos. De fato, as pesquisas revelam que o sexo masculino é o mais importante “fator de risco” para a violência.
Criminosos com diversas passagens pela polícia em geral são pessoas com dificuldades para controlar impulsos agressivos. A análise de questionários preparados por uma equipe coordenada pelo psicólogo e neurologista Ernest S. Barrat respondidos em 1999 por presidiários no estado americano do Texas, mostrou que os detentos frequentemente provocavam briga com outros presos – apesar de terem de pagar por isso com condições de prisão muito mais severas. Quando os pesquisadores lhes perguntavam porque mantinham comportamentos que os prejudicavam, eles não encontravam explicação. Muitos reconheciam as desvantagens e já tinham tomado a decisão de agir com maior controle em situações semelhantes, mas nem eles mesmos acreditavam que conseguiriam se controlar.
TRAUMA E CONFLITO
A impulsividade de criminosos violentos crônicos parece ter como base uma predisposição cerebral. Neurologistas compararam a anatomia do cérebro desses homens à de cidadãos comuns e descobriram nos primeiros alterações fisiológicas na região frontal, mais exatamente no córtex pré-frontal e no sistema límbico.
Essas áreas estão ligadas ao surgimento, decodificação e controle das emoções. Efeitos inibidores sobre partes do sistema límbico, principalmente o hipotálamo e a amígdala, de onde vêm os impulsos agressivos, são atribuídos a áreas do córtex pré-frontal. Esse pressuposto é base da “hipótese do cérebro frontal”, segundo a qual as raízes psicobiológicas do comportamento anti social podem ser compreendidas como um “defeito” na regulação do córtex e do sistema límbico.
Vários estudos apoiam essa interpretação. O pesquisador Jordan Grafman e seus colegas do Instituto Nacional de Saúde em Bethesda, Estados Unidos, examinaram veteranos da guerra do Vietnã que sofreram ferimentos na região do córtex pré-frontal: os ex-soldados tinham clara tendência à agressividade. É preciso considerar, porém, que esses ex-combatentes viveram situações traumáticas durante o conflito, o que provavelmente também influi no funcionamento psíquico. No entanto, pacientes adultos com lesões frontais que não viveram experiências especialmente perturbadoras também costumam se comportar de forma inadequada e impulsiva, apresentando sintomas de distúrbio de personalidade anti social. Em ambos os casos, porém, não houve nenhum indício direto de violência física fora do comum.
FUNCÃO CORTICAL
A situação é diferente quando o cérebro frontal já é afetado na infância. Pesquisadores coordenados pelo neurologista Antônio Damásio, do Centro Médico da Universidade de Iowa, observaram consequências dramáticas nesse tipo de caso. Num deles, cirurgiões retiraram um tumor do cérebro frontal direito de um bebê de aproximadamente 3 meses. Quando o menino tinha 9 anos começaram a surgir problemas: era muito difícil motivá-lo na escola; ele permanecia isolado e passava o seu tempo livre exclusivamente diante da televisão ou ouvindo música. Em algumas ocasiões, ficava inexplicavelmente furioso, ameaçava e chegava a agredir fisicamente as pessoas. Interessante notar que ele cresceu em ambiente acolhedor, com pais amorosos e irmãos cujo desenvolvimento foi considerado normal.
Não se sabe se a hipótese sobre a anatomia cerebral também vale para o sexo feminino. Mulheres violentas são mais raras e, portanto, menos estudadas. De maneira geral, entre elas parece não haver conexão entre um volume reduzido da área pré-frontal e tendências patológicas, como comprovadamente existe na população masculina.
Ao que tudo indica, as mulheres possuem, por natureza, controle mais efetivo dos impulsos, que falha apenas quando a função cortical é lesionada de forma prematura e maciça. Damásio descreve o caso de uma menina atropelada aos 15 meses que sofreu grave traumatismo neurológico. Até os 3 anos ela se desenvolveu normalmente. Nessa fase surgiram as primeiras demonstrações de comportamento anômalo.
A SANGUE FRIO
Os pais perceberam que a filha não tinha reação alguma a eventuais repreensões e até a punições. Mais tarde, ela passou a não respeitar nenhuma regra, na escola brigava frequentemente com professores e colegas, mentia e cometia delitos como roubo. A jovem chamava a atenção principalmente por atacar os outros. Nenhum de seus irmãos apresentava diagnóstico de problemas de comportamento.
Outras observações que corroboram a hipótese do cérebro frontal foram feitas pelo neurologista Adrian Rainer, da Universidade do Sul da Califórnia em Los Angeles. Ele coordenou um estudo com assassinos condenados. Recorrendo a procedimentos de imageamento como a tomografia por emissão de pósitrons (PET), os pesquisadores constataram em muitos voluntários uma atividade metabólica nas regiões frontais do cérebro mais baixa do que a encontrada na população em geral. A segunda etapa da análise, porém, demonstrou que isso só era válido para criminosos que haviam matado por afeto, ou seja, por impulso e com forte motivação emocional. Em de tentos que haviam planejado o assassinato longamente, a sangue frio, o cérebro frontal parecia funcionar normalmente.
Esse resultado é plausível: por consequência de déficits no controle das emoções, criminosos impulsivos agem sem premeditação, ignorando até mesmo o risco de serem descobertos. Já o homicida detalhista e frio precisa de um cérebro frontal intacto, pois arquitetar o crime a longo prazo demanda complexos processos de decisão. Criminosos que agem sem piedade raramente demonstram arrependimento. Para o criminoso que planeja o ato, a prioridade é não ser apanhado – o sujeito impulsivo nem pensa nisso.
O estudo neurológico de criminosos violentos não descobertos é uma nova e polêmica área de pesquisa – e não apenas pela dificuldade metodológica de encontrar psicopatas em liberdade. Para obter informações confiáveis sobre seus delitos, os pesquisadores tiveram de lhes assegurar sigilo absoluto. Sendo assim, depois de passarem pelos exames tomográficos, os homicidas voltaram para casa, em liberdade.
Há pouco tempo, Adrian Rainer comparou dois grupos de pessoas com distúrbio de personalidade anti social que haviam cometido crimes graves. Integrantes de apenas um dos grupos tinham sido condenados. O pesquisador denominou os que não haviam sido descobertos como “psicopatas bem-sucedidos”, os condenados, “psicopatas malsucedidos”.
Os estudos de Rainer levaram a resultados interessantes: ao comparar a anatomia cerebral de ambos os grupos, apenas nos “malsucedidos” foi encontrada, de fato, redução significativa do volume da substância cinzenta no córtex pré-frontal. Entre os criminosos em liberdade, ela estava dentro dos padrões de normalidade.
A agressividade crônica grave, portanto, não está automaticamente relacionada a defeito no córtex pré frontal. Parece haver pessoas que cometem atos de grande violência regularmente, apesar de seu cérebro frontal estar completamente intacto. Sendo assim, distúrbios no córtex pré-frontal estão mais relacionados ao risco de o indivíduo ser preso do que propriamente à violência potencial.
EQUILÍBRIO DAS EMOÇÕES
O córtex pré-frontal é apenas um dos vários centros neurológicos que compõem uma complexa rede de regulação do equilíbrio das emoções, inclusive os impulsos agressivos. Outros estudos feitos por Rainer com o mesmo grupo de criminosos indicam a participação de estruturas límbicas, como o hipocampo, na conduta psicótica: nos “criminosos mal -sucedidos”, o hipocampo de ambos os hemisférios cerebrais tinha tamanho diferente – assimetria que os pesquisadores associam a distúrbios surgidos no estágio inicial do desenvolvimento.
Possivelmente, essas alterações enfraqueceram a interação entre o hipocampo e a amígdala, de forma que informações relativas à emoção são processadas de maneira irregular. Se o córtex pré-frontal também falha como instância controladora, parece compreensível que surjam comportamentos verbais e físicos inadequados.
No caso dos “psicopatas bem sucedidos ” há fundamentos completamente diferentes envolvidos nas ações violentas, pois as pessoas que têm o controle de impulsos intacto cometem delitos conscientemente, de maneira calculada. Isso não comprova que esses criminosos não sofram de outras alterações cerebrais. Para tanto seria necessário examinar, por exemplo, o papel da amígdala, assim como da parte do sistema límbico que funciona como “sistema de recompensa”. As falhas no funcionamento dessas estruturas podem ser responsáveis pelo comportamento psicopata (isento de culpa e compaixão pelo sofrimento alheio), segundo outros pesquisadores, como Richard Blair, do Instituto Nacional de Saúde Mental em Bethesda.
As alterações no cérebro de criminosos podem ocorrer no nível neuroquímico. Atualmente, diversos estudos comprovam que um baixo nível de serotonina, que funciona como calmante e redutor do medo, está vinculado a comportamentos anti sociais e impulsivos. Tal associação não ocorre apenas em criminosos, mas na população de maneira geral. Porém, mais uma vez, apenas nos homens.
O hormônio sexual masculino também tem sua importância: diversos estudos do psicólogo James Dabbs, da Universidade do Estado da Geórgia, indicam a presença de níveis bastante altos de testosterona em criminosos impulsivos. Tais desvios do nível de hormônios ou das substâncias transmissoras podem ser hereditários ou surgir por influência do ambiente. Há, por exemplo, indícios de que experiências de negligência e maus-tratos na infância reduzem permanentemente os níveis de serotonina. Pesquisadores que estudam a plasticidade do cérebro, entretanto, cogitam a possibilidade de reparações, ainda que parciais, desse comprometimento.
Pelo menos entre os homens, fatores biológicos, como disposição genética e déficits orgânicos e neuroquímicos, aumentam comprovadamente o risco de comportamento violento. No entanto – com exceção de lesões graves ocorridas na infância -, eles não levam obrigatoriamente a tal atitude. A combinação entre fatores de risco psicossociais de gravidade semelhante é que costuma ser perigosa. Isso pôde ser percebido por pesquisadores em diversos estudos. Entre esses fatores incluem-se a qualidade do relacionamento inicial entre mãe e bebê, eventuais maus tratos e abusos sofridos na infância, negligência dos pais, rupturas e conflitos constantes na família, criminalidade de adultos próximos e pobreza extrema. O estudo de todos esses fatores é complexo, pois a maioria deles não pode ser considerada independentemente das alterações anátomo-fisiológicas.
Logo após o nascimento, já ocorre comunicação emocional íntima entre o bebê e a pessoa que desempenha a função materna (não necessariamente a mãe), conforme demonstraram vários especialistas, como o psicanalista inglês Donald Winnicott. Dificuldades no processo de interação, principalmente nos dois primeiros anos de vida, podem contribuir para a configuração de distúrbios de desenvolvimento – inclusive dificuldade de controlar os próprios impulsos, falta de empatia e capacidade reduzida de solução de conflitos.
Além disso, experiências vividas pelos pais em sua infância exercem influência sobre sua competência educativa. Enquanto alguns se apegam às próprias dores e reproduzem modelos de abandono e agressividade que viveram quando crianças, outros se permitem reelaborar as próprias carências com generosidade, oferecendo aos filhos acolhimento amoroso e continente – assim, interrompem o ciclo vicioso de violência física e psicológica. Por outro lado, parece que, se a criança tem uma constituição cognitiva e emocional sólida, as influências negativas do ambiente em que vive podem ser parcialmente compensadas.
Atualmente não se sabe por que muitos conseguem compensar até mesmo as piores experiências da infância ou lesões cerebrais, como se “consertassem” a si mesmos, enquanto tantos outros simplesmente não conseguem fazê-lo. Essa situação leva a reflexões, pois até que ponto se pode responsabilizar um ser humano por sua constituição genética, seu desenvolvimento cerebral, sua infância traumática ou seu ambiente social com poucas oportunidades? Não teríamos de pensar assim também em relação à tendência à violência resultante de tais fatores?
Com isso, surge a pergunta: a responsabilidade sobre os próprios atos pode ser totalmente imputada a uma pessoa? Faz sentido conjecturar que um criminoso poderia ter optado contra a violência se de fato quisesse ou se tivesse tido oportunidades diferentes? A suposição de que ele seria capaz de tal escolha, apesar de todos os condicionamentos psicobiológicos e sociais, causa grande polêmica entre psicanalistas, psicólogos, médicos, criminalistas e filósofos. Ao mesmo tempo, não é tolerável assistir a atos criminosos impassivelmente. Afinal, se tomarmos o homem como refém de sua própria história, de sua anatomia e de seu funcionamento cerebral, correremos o risco de adotar uma postura permissiva diante da violência. Talvez, para protegermos o coletivo seja necessário perseverarmos na prevenção – que consiste em dissuasão, acompanhamento psicoterapêutico e, em muitos casos, em reclusão.
Eticamente não se pode apoiar a ideia de simplesmente afastar do convívio social as pessoas com comportamento anormal – pois, estatisticamente, a maioria delas não se torna delinquente. Adotando essa postura, corre-se ainda o risco de disseminar a intolerância diante da diversidade.
Há, porém, a possibilidade de investigação precoce dos fatores de risco – psíquicos, físicos e sociais. Nesse terreno ainda há muito a fazer nos próximos anos, pois hoje, com todo o conhecimento e tecnologia disponíveis nem sempre é possível diferenciar com precisão as brigas comuns de crianças pequenas de comportamentos que prenunciam tendência à violência.
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