ABERRAÇÕES

Sempre escolhi acreditar que a preferência pela ignorância fosse um traço de baixa expressividade, ainda que de penetração elevada. Explico: a expressividade é a capacidade de expressão de um fenótipo associado a determinado genótipo, enquanto a penetração é a fração da população com determinado genótipo que exibe o fenótipo a ele associado. Fosse a preferência pela ignorância um traço de baixa expressividade, ainda que de penetração elevada, teríamos uma grande variabilidade da preferência pela ignorância na população. Nessas circunstâncias, teríamos de conviver com alguma preferência pela ignorância, mas ao menos teríamos o alento de que, enquanto alguns com o genótipo associado expressariam o fenótipo em sua plenitude, outros o fariam de forma quase imperceptível. Em outras palavras, seriam, mas pouco pareceriam.
Não sei bem por que escolhi acreditar nessa tese. Talvez porque o Brasil de outros tempos me parecesse mais pensante; quiçá porque algumas das pessoas mais interessantes com as quais convivi não me permitissem enxergá-lo de outro modo. Uma delas, a mais importante, foi-se há quase exatos 30 anos.
O que terá sido? Um erro de reparo no DNA? Uma deleção do gene que regulava a expressividade do fenótipo? Um rearranjo que removeu determinada sequência genética e a reacoplou de modo invertido? Difícil saber. Afinal, as aberrações genéticas não são tão facilmente mapeáveis apesar dos avanços da medicina diagnóstica.
O fato é que a vemos todos os dias. Desde comentários nas redes sociais de que a língua portuguesa é binária – só há, então, a forma certa e a errada, para o desespero de Guimarães Rosa – até a negação da gravidade da crise de saúde pública e da crise econômica. A preferência pela ignorância está nas receitas médicas para hidroxicloroquina e prednisona nos pacientes assintomáticos ou com apresentação leve de Covid-19. Está nos textos anônimos e infundados, sem referência a qualquer literatura científica, que circulam no WhatsApp e são lidos como inquestionáveis qualquer que seja o assunto. Está todos os dias na boca do presidente da República. Aparece ao menos uma vez por semana nas declarações do ministro da Economia. Está no hábito mental de repetir clichês sem parar para refletir sobre o que significam. Cito alguns deles: “a Constituição não cabe no Orçamento”, “é preciso retomar a agenda de reformas para a volta da confiança”, “a renda básica é impagável” e, “se mexermos no teto de gastos a inflação volta”.
Houve tempo em que clichês eram menos recorrentes na economia. Falo sério, e sei que é difícil acreditar. Houve tempo em que economistas questionavam. “Tem sentido?” “Por que é assim?” “Será que dá para pensar melhor nessa tese se a olharmos de outro modo?” Falo porque tive o privilégio de conviver com dois grandes economistas que não aceitavam nada acriticamente, tampouco se contentavam em sacar um volume da prateleira em que se escorar, ainda que ambos houvessem lido muito mais do que oito livros. Com um deles aprendi a ser “do contra” para além das relações pessoais. Pensar, afinal, passa pela elaboração de contrapontos. “É assim mesmo? Então vou testar se realmente é.” Com o outro aprendi a sempre confiar em outras abordagens. “E se tentasse entender esse problema a partir das ciências naturais?” Essas posturas são complementares, e, não à toa, as pessoas sobre as quais escrevo eram grandes amigos. Como já disse, um deles se foi há 30 anos. O outro se foi há 10. Um sucumbiu a uma doença no dia 5 de julho de 1990. O outro foi operado da mesma doença 20 anos mais tarde, no dia 5 de julho de 2010, falecendo pouco depois.
Se estivessem aqui, hoje, estariam assustados com o estado de aberração permanente que se tornou o Brasil. Mas também desconfiariam que clichês escondem a falta de pensamento e saberiam se divertir com a elevadíssima expressividade da preferência pela ignorância. O humor e a ironia são não apenas formas saudáveis de extravasar frustrações. São, sobretudo, um modo de resgatar formas de genes perdidos que modulam aberrações.
MONICA DE BOLLE – é pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
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