POR QUE TANTA GENTE BOA INSISTE EM NEGAR OS FATOS

A comunidade científica ficou perplexa com a reabertura prematura das atividades econômicas em pleno avanço da pandemia. Não deveria. Asteorias estapafúrdias em torno do novo coronavírus, os poderes milagrosos da cloroquina, a defesa de uma certa “estratégia sueca” – cujos próprios autores reconhecem ter dado errado – seduzem não apenas Jair Bolsonaro, Donald Trump e acólitos, mas também prefeitos, governadores, empresários, banqueiros e gente de perfil intelectual bem mais sofisticado.
Do papel humano no aquecimento global às vacinas, da pandemia à economia, da política à religião, o negacionismo se espraia como uma praga a minar o conhecimento e a política. Entender suas raízes e mecanismos é um desafio essencial para preservar o planeta, a vida e a civilização.
Não se trata de problema novo. Em 1927, a revista médica britânica The Lancet já publicava editorial contra a crença de que “a vacinação é uma fraude gigantesca perpetuada apenas para garantir lucros”. Absurdos como o terraplanismo ou o criacionismo têm mais chance de prosperar em sociedades ignorantes. Caso do Brasil ou dos Estados Unidos, onde mais da metade da população ignora que a Terra leva um ano para orbitar o Sol e quase três quartos contestam a evolução das espécies pela seleção natural. Mas não é um problema restrito aos pouco cultivados. Os mais empedernidos negacionistas de que a atividade humana seja responsável pelas mudanças no clima são cientificamente letrados, têm acesso a informação de qualidade, entendem os mecanismos climáticos e defendem suas teses por meio de raciocínios embasados em gráficos precisos e conhecimentos avançados de astrofísica ou geofísica. São tudo, menos ignorantes. “A negação é um problema humano, não apenas um problema dos pouco instruídos ou pouco sofisticados”, escreve o filósofo Adrian Bardon em The truth about denial (A verdade sobre a negação). Trata-se, nas palavras dele, de uma “resolução emocionalmente satisfatória da dissonância entre como gostaríamos que o mundo fosse e a forma como ele de fato se apresenta”.
Bardon inventaria os debates contemporâneos sobre o tema não só na ciência. Navega pela política e pela economia (onde por vezes derrapa). Não se furta a explorar (com rara competência) o terreno minado da religião. Apresenta o significado preciso do negacionismo e ensina sua relação com parentes próximos, como dissonância cognitiva, raciocínio motivado, pensamento desiderativo, viés de confirmação ou ideologia. Negação não é mentira. É uma mentira com sabor de verdade, uma falsidade que satisfaz aos instintos – aquilo que o comediante Stephen Colbert definiu como “verdadice” (“truthiness”). “A negação envolve a rejeição (ou adoção) motivada emocionalmente de uma afirmação factual, mesmo diante de fortes evidências contrárias”, diz Bardon. “O negacionismo é um a expansão, uma intensificação da negação. Na raiz, ambos são apenas um subconjunto das formas como os humanos desenvolveram a linguagem para enganar os outros ou a si mesmos.” E pratos cheios para manipulação política e campanhas de desinformação.
Nem o conhecimento dos fatos nem a capacidade intelectual nos vacinam contra o negacionismo. “Nossa capacidade de raciocínio motivado diante de evidência contrária é impressionante”, diz Bardon. “É conveniente, reconfortante e ocasionalmente até útil, mas também solapa nossa capacidade de enfrentar questões urgentes de política pública, portanto obstrui o caminho de mudanças sociais, políticas e econômicas.” É o que vemos no enfrentamento do aquecimento global ou da pandemia. Nem as calotas polares nem o coronavírus dão a mínima para nós. Bardon tenta, no final, levantar estratégias para enfrentar o negacionismo científico. Discutíveis, é verdade, mas até por isso cientistas fariam bem em ouvi-lo.
**HELIO GUROVITZ
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