BARIÁTRICA – CIRURGIA ALTERA CÉREBRO, MAS NÃO APLACA ANGÚSTIA
Relação com o alimento pode sofrer mudanças no nível neurológico, mas, se conflito que leva à compulsão não for tratado, sintomas aparecem de outras maneiras. Muitas vezes, surgem ou se agravam quadros psiquiátricos como ansiedade, compulsão e depressão – apesar do corpo magro tão almejado

Muita gente deve ter se olhado no espelho hoje e pensado que emagrecer (ainda que à custa de uma cirurgia bariátrica) seria uma excelente solução para terminar de vez com a luta contra a balança – e, talvez, ajudasse a resolver problemas emocionais e de autoestima. De fato, existe uma cultura forte que associa padrões físicos de magreza considerados “ideais” a felicidade e sucesso. Em junho de 2016, várias organizações internacionais voltadas para o estudo da diabetes ratificaram novas orientações, bastante provocativas, sugerindo que os clínicos deveriam considerar a cirurgia bariátrica para um leque mais amplo de diabéticos, passando a incluir aqueles com índice de massa corporal (IMC) igual ou superior a 30 – e não somente aqueles com IMC igual ou superior a 40. A base para essa argumentação está em pesquisas: estudos mostram que a cirurgia para perda de peso ajuda os pacientes a alcançar níveis de glicose no sangue melhores do que daqueles que emagrecem com mudança de dieta e exercícios físicos. Um estudo recente realizado com ratos sugere que a eficácia da cirurgia bariátrica pode estar associada, pelo menos em parte, às mudanças que provoca no cérebro.
Segundo artigo publicado no International Journal of Obesity, a cirurgia bariátrica deflagra a hiperativação de uma rota neural que parte dos neurônios sensitivos do estômago no tronco encefálico, passa pelo núcleo parabraquial lateral (uma área no mesencéfalo que recebe informações sensoriais do corpo) e então chega à amígdala, que funciona como o centro cerebral do processamento da emoção e medo. Os ratos obesos foram submetidos a um processo chamado derivação gástrica em Y-de-Roux, em que os cirurgiões removem a maior parte do estômago, deixando somente uma pequena bolsa conectada ao intestino delgado. Pouco depois da cirurgia, quando os ratos passaram a ingerir porções mais reduzidas, mostrando preferência por alimentos menos gordurosos, os cientistas detectaram uma ativação crescente nessa rota neural. Foi detectado também que os animais começaram a secretar níveis mais elevados de hormônios de saciedade. Padrões comportamentais e hormonais semelhantes são encontrados em seres humanos após a cirurgia bariátrica, sugerindo que as alterações no cérebro possam ser semelhantes. Os autores do estudo reconhecem, porém, que observar esse circuito por meio de imageamento cerebral é difícil e podem ocorrer distorções por causa da falta de resolução. Segundo o neurocientista Hans-Rudolf Berthoud, do Centro Pennington de Pesquisas Biomédicas da Universidade do Estado da Louisiana (LSU), principal autor do estudo, a alteração da atividade cerebral é provavelmente causada pelo contato inédito e repentino do alimento não digerido (em vez da mistura pré-digerida que costuma vir do estômago) ao atingir o intestino delgado. “Basicamente, esses pacientes têm de reaprender a se alimentar; estavam acostumados a ingerir grandes porções de alimento e isso proporcionava sensação que lhes parecia agradável, mas, se o fizerem após a cirurgia, isso vai causar desconforto”, diz Berthoud. As áreas cerebrais que se o tornaram hiperativas pela cirurgia provavelmente refletem esse feedback negativo, que é uma ferramenta poderosa de aprendizado.
“Em poucas semanas, a rota pela qual passava o alimento não era mais hiperativa nos ratos, talvez indicando que o cérebro havia recrutado outros processos para sustentar a ingestão reduzida”, diz Berthoud. Segundo ele, essa constatação provavelmente constitui somente uma peça do quebra-cabeça. Estudos passados sugerem que a cirurgia bariátrica afeta também o sistema de recompensas do cérebro, tornando os alimentos gordurosos menos agradáveis. Uma questão que permanece é por que pessoas que passaram pela cirurgia bariátrica têm o metabolismo mais acelerado, em comparação com as que fizeram mudança de hábitos e do estilo de vida com o objetivo de perder peso. Em um estudo divulgado no começo do ano passado, pesquisadores constataram que os competidores de um programa de televisão americano, The Biggest Loser, ainda apresentavam um metabolismo letárgico seis anos após a enorme perda de peso. Estudos semelhantes mostram que grande parte dos pacientes bariátricos alcança um metabolismo estável e normalizado no prazo de um ano – mas não todos. Além disso, especialistas alertam para os riscos e efeitos colaterais da cirurgia bariátrica.
Psicólogos e psiquiatras chamam atenção para uma questão complexa: mais que um quadro em si, muitas vezes a alimentação desregrada ou compulsiva – bem como a obesidade decorrente desses comportamentos – na realidade é um sintoma que pode estar vinculado a transtornos como depressão e ansiedade. O problema é que, quando se vê o excesso de peso como um fenômeno que se esgota em si mesmo, se deixa de lado o fato de que essa situação está intimamente associada a processos psíquicos que envolvem relações consigo mesmo e com os outros, afetos, experiências e até traumas. E o tratamento, obviamente, não pode se restringir a uma cirurgia tão delicada. E talvez o mais importante: se a angústia que está por trás do sintoma não for resolvida, ele tende a reaparecer, ainda que se manifeste de outra forma.
Várias pesquisas realizadas nos últimos dez anos revelam que grande parte dos pacientes que se submetem à cirurgia bariátrica apresenta comportamentos compulsivos, depressão e chegam mesmo a cometer suicídio, ainda que tenham alcançado o corpo magro que tanto almejaram.
Uma pesquisa desenvolvida com esses pacientes do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) mostrou que grande parte das pessoas apresentou melhora efetiva das condições clínicas e funcionais, como menos risco de morrer por doenças cardiovasculares (em 56% dos casos), câncer (60%) e diabetes (até 92%). Considerando que, segundo estimativas da literatura científica internacional, em 2030, de cada três pessoas de países ocidentais, uma será obesa, a importância da cirurgia bariátrica não pode ser desprezada. Apesar disso, as complicações psicológicas devem ser levadas em conta.
Hoje, médicos reconhecem que há grande risco de que quadros psiquiátricos que já existiam se agravem ou até mesmo apareçam novas patologias após a cirurgia. “Sabemos que muitas pessoas utilizam o alimento como forma de aliviar a tensão e quando não podem fazer isso recorrem a outros comportamentos de forma patológica, como sexo, consumo de álcool e drogas, jogo e compras”, diz o psiquiatra Paulo Sallet, do Hospital das Clínicas de São Paulo. Segundo ele, em muitos casos, esses novos sintomas resultam de fatores como necessidade de adaptação psicossocial à nova condição e de alterações psíquicas decorrentes de déficit nutricional. Ele explica que alguns são mais susceptíveis a processos específicos deflagrados pela cirurgia, como a produção de neuropeptídios, que efeitos anoréxicos, por exemplo, e ao invés de comer de forma compulsiva, o paciente passa a evitar o alimento.
“Estimamos com base na literatura médica que mais de 90% das pessoas que se submetem à cirurgia bariátrica se beneficiem do procedimento, mas há um percentual de indivíduos, em geral pessoas que já apresentavam algum quadro psiquiátrico, que enfrentam problemas mais graves após a operação”, afirma Sallet. Segundo ele, nesse grupo o índice de suicídio pode ser de quatro a oito vezes maior que o da população em geral. A Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM) orienta que as pessoas que desejam se submeter a cirurgia não apenas façam os exames pré-operatórios, que incluem avaliação nutricional, cardiológica e endocrinológica, mas também sejam submetidas a uma avaliação psicológica. Embora não seja obrigatório, o acompanhamento psicológico anterior e posterior é de grande importância.

ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO NO TRATAMENTO BARIÁTRICO*
Do ponto de vista orgânico, a obesidade pode ser definida como alteração de processos biológicos (envolvendo basicamente genética e metabolismo) em interação com fatores psíquicos e ambientais, cujo resultado é o aumento do peso sob a forma de acúmulo de gordura. A maioria dos pacientes obesos tem uma longa história de tratamentos anteriores, com reduções de peso seguidas de reaquisição. Tais resultados parecem decorrer do enfoque excessivo na consequência (o peso), em detrimento do tratamento e modificação de suas causas.
Outro aspecto característico é a interrupção precoce dos tratamentos. Em diversos países, as técnicas bariátricas e cirúrgicas têm apresentado bons resultados em termos de redução de peso, melhora da qualidade de vida e satisfação global dos pacientes.
Isso se deve não somente a que tais procedimentos reduzem a ingestão calórica sem o desconforto de uma privação alimentar excessiva por parte do paciente, mas também ao fato de que a maioria dos centros aborda o tratamento de uma forma multidisciplinar.
Grande parte dos pacientes obesos apresenta transtornos alimentares caracterizados pela compulsão alimentar relacionada à ansiedade e estados de humor depressivo. Sabe-se que tais pessoas tendem a “adaptar” seu padrão de alimentação compulsivo após os tratamentos bariátricos (por exemplo, “beliscando” carboidratos continuamente, ingerindo grandes quantidades de alimentos líquidos hipercalóricos etc.), o que acaba comprometendo os resultados. Sabe-se também que a (em geral drástica) mudança na forma e imagem corporais que se segue a tais procedimentos traz consigo a emergência de conflitos psicológicos e necessidades de adaptação à nova condição. Em linhas gerais, esses são os motivos pelos quais a avaliação e o acompanhamento psiquiátricos são importantes no tratamento da obesidade.
Na prática, o acompanhamento psiquiátrico ou psicológico do paciente obeso que se submete ao tratamento bariátrico segue uma abordagem multidisciplinar, um modelo que envolve profissionais de diferentes áreas e tem sido empregado nos diversos centros de referência para tratamento da obesidade em todo o mundo. A função do psiquiatra começa com uma avaliação inicial do paciente com indicações clínicas para o tratamento cirúrgico da obesidade. Nessa avaliação são explorados não só os aspectos relacionados com a história de vida (história da obesidade, o sofrimento físico e psíquico a ela relacionado, história de problemas psíquicos prévios etc.), como também uma série de aspectos pertinentes ao tratamento proposto, tais como:
1. Grau de motivação para cumprir os cuidados necessários
2. Tomada de consciência de estar se engajando em um projeto em longo prazo
3. Riscos envolvidos
4. Adesão do paciente a atividades físicas regulares e ao programa adequado de alimentação
5. Expectativas do paciente em termos de resultado estético e controle do peso etc.
São fundamentais a identificação e o tratamento de problemas que possam interferir de modo negativo no resultado do tratamento. Condições psiquiátricas como abuso de álcool ou outras drogas, transtornos psicóticos (doenças em que podem ocorrer crises que causem prejuízo grave na apreciação realista dos fatos), transtornos de humor (depressões e/ou euforia) ou ansiedade e, sobretudo, alterações do comportamento alimentar são particularmente importantes e necessitam de uma avaliação criteriosa, que por vezes pode até contraindicar a intervenção cirúrgica naquele momento. A ideia não é “selecionar” pacientes que possam ou não ser operados, mas identificar e tratar problemas com potencial interferência negativa no processo.
É importante não passar a ideia de que o paciente tenha algum perfil psicológico ou clínico típico da obesidade e deva ser tratado de modo homogêneo. Entretanto, as pesquisas e a experiência clínica demonstram que as pessoas com obesidade apresentam diferentes graus de sofrimento psíquico decorrente do seu padecimento.
Em geral, sofrem discriminação e preconceito de diversos matizes, que por sua vez podem ser introjetados ao longo da vida, deixando marcas profundas.
Para uma avaliação mais objetiva e economia de tempo, podem ser utilizados questionários a que o paciente pode responder em casa. Esse material é um instrumento de avaliação diagnóstica, de grande ajuda no planejamento terapêutico para cada paciente, como de resto também fornece informações importantes para o tratamento desses problemas com base científica. O acompanhamento psiquiátrico ao longo do tratamento depende, em parte, dessa avaliação inicial. É compreensível que a presença de condições psiquiátricas que possam comprometer aspectos de ordem prática (atividade física e adequação à dieta) ou o bem-estar psicossocial requeiram acompanhamento com consultas mais constantes, eventualmente com o uso concomitante de medicamentos e de psicoterapia para o aprofundamento das questões psíquicas e comportamentais.
(*) Informações fornecidas pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica

REAPRENDENDO A VIVER
A psicóloga Marlene Monteiro da Silva, coordenadora do curso de transtornos alimentares e obesidade do Hospital das Clínicas (HC), compara o período pós-operatório dos pacientes às fases de desenvolvimento psicossexual na infância, segundo o modelo proposto por Sigmund Freud. “Nos três primeiros meses podemos fazer um paralelo com a fase oral: assim como acontece com o bebê, a maior preocupação da pessoa nesse momento é com a comida; o paciente só pode alimentar-se de sopas e papinhas, em geral fica emocionalmente regredido, alguns choram com muita frequência, e sente-se dependente.”
A partir do quarto mês há uma espécie de “retorno” à fase anal, a pessoa começa a descobrir novas maneiras de encarar o próprio corpo e se relacionar com ele. Nesse momento, alguns chegam a ter 20 quilos a menos e sentem-se mais expostos. O paciente depara-se com uma agressividade da qual nem sempre se dá conta, tem medo da mudança de identidade e já não há a possibilidade de recorrer à comida para aliviar as angústias.
“Por volta do sétimo mês, começa o que pode ser visto como um paralelo com a fase pré-genital, uma espécie de adolescência emocional”, compara. Com o corpo bastante modificado, 50 ou 70 quilos a menos, muitos desses pacientes passam a querer aproveitar tudo, muitas vezes de forma inconsequente. É nesse momento que correm o risco de se tornar alcoólatras, dependentes de drogas, viver relações promíscuas e se colocar em situações de risco. Em geral, os casos de bulimia e anorexia costumam aparecer depois de dez meses, segundo a psicóloga.
“Algo que agrava a situação é tentar ‘esquecer’ que ainda é preciso fazer cirurgias plásticas, negam cortes e cicatrizes tanto físicas quanto emocionais. Se as pessoas não derem atenção à “feridas emocionais” que precisam ser cuidadas, é possível que depois de dois ou três anos após a intervenção, estejam sujeitas ao aumento das compulsões, depressão ou ao risco de voltar a engordar, mesmo com o estômago reduzido. “Não se pode ignorar que, muitas vezes, é um desafio assumir o papel de adulto, retornar ao trabalho, se haver com os desejos (tanto os próprios quanto os dos outros) e mudanças na vida sexual e afetiva”, diz Silva. “Aí as pessoas se dão conta de que o problema não era só o excesso de peso, de que há sempre faltas e que é preciso conviver com elas.” Justamente pela complexidade dos fenômenos psíquicos envolvidos são tão importantes a avaliação psicológica antes da cirurgia e o acompanhamento depois dela.
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