QUANDO A PANDEMIA NOS DEIXA SOZINHOS, ANSIOSOS E DEPRIMIDOS
Estamos em uma crise dupla, de saúde física e mental. Mas existem formas de evitar o colapso

Por quase 30 anos – a maior parte da minha vida adulta – eu lutei contra a depressão e a ansiedade. Apesar de nunca me sentir sozinho em tais aflições cotidianas – o segredo de família que todos compartilham -, agora eu descubro que tenho mais colegas de sofrimento do que jamais pude imaginar.
Em uma questão de semanas, os sintomas familiares da doença mental se tornaram uma realidade universal. Uma nova pesquisa da Kaiser Family Foundation observou que quase metade dos entrevistados disse que sua sanidade está sendo afetada pela pandemia do novo coronavírus. Praticamente todo mundo que eu conheço foi catapultado para diferentes graus de angústia, pânico, desesperança e medo paralisante. Se você disser “Estou tão aterrorizado que mal consigo dormir”, as pessoas podem responder “Quem, em sã consciência, não está?”.
Mas essa resposta pode nos levar a perder a dimensão da perigosa crise secundária que se desdobra ao lado daquela mais óbvia: uma escalada de doenças mentais, no curto e no longo prazo, que pode durar décadas depois do fim da pandemia. Enquanto todo mundo relata estar sentindo depressão e ansiedade, problemas mentais raros, de ordem médica, podem passar despercebidos.
Enquanto governos nacionais e locais (alguns preocupantemente mais lentos do que outros) reagiram à propagação do coronavírus de formas objetivas, o reconhecimento dos riscos à saúde mental tem sido superficial. O governador de Nova York, Andrew Cuomo, que até agora recrutou mais de 8 mil profissionais de saúde mental para ajudar os nova-iorquinos em apuros, é uma honrosa exceção.
O governo da China mandou psicólogos e psiquiatras para a cidade de Wuhan, durante o primeiro estágio de quarentena. Nenhuma medida comparável foi tomada até agora pelo governo americano.
A diferença de postura em relação aos dois tipos de saúde – física e mental – é coerente com a atual falta de consideração da nossa sociedade com a estabilidade psicológica. Os convênios não oferecem a real paridade de cobertura, e o tratamento para desordens de comportamento é geralmente considerado um luxo. Mas estamos em uma dupla crise de saúde física e mental, e aqueles enfrentando desafios psiquiátricos merecem tanto reconhecimento quanto tratamento.
As ramificações da pandemia na saúde mental foram identificadas há muito tempo, mas sistematicamente ignoradas pelo governo. Um estudo após o surto de H1N1 em 2013 disse: “Porque as pandemias são tragédias singulares e não incluem locais de congregação para suporte e recuperação prolongados, elas exigem estratégias de resposta especificas para garantir as necessidades comportamentais de saúde de crianças e famílias. Os planos de combate a pandemias devem contemplar essas necessidades”. Outro estudo afirmou: “Embora as informações para os aspectos médicos das epidemias estejam cada vez mais disponíveis, há pouca orientação para os centros de saúde sobre como gerenciar os aspectos psicológicos de desastres em larga escala, que podem envolver um surto de vítimas psicológicas”.
Existem mais ou menos quatro respostas à crise do coronavírus e ao seu consequente isolamento social. Algumas pessoas aceitam tudo com tranquilidade e contam com uma base de inabalável estabilidade psíquica. Outros são os preocupados, que precisam apenas de um pouco de primeiros socorros psicológicos. Um terceiro grupo, que ainda não experimentou esses distúrbios, está sendo catapultado para eles. Por fim, muitos que já saíram de um transtorno depressivo maior tiveram sua condição exacerbada, desenvolvendo o que os médicos chamam de “depressão dupla”, na qual um transtorno depressivo persistente é sobreposto por um episódio de dor insuportável.
O isolamento social gera pelo menos tanto aumento de casos de doença mental quanto o medo do próprio vírus. Julianne Holt-Lunstad, psicóloga, descobriu que o isolamento social é duas vezes mais prejudicial à saúde física de uma pessoa do que a obesidade. O confinamento solitário nos sistemas prisionais causa ataques de pânico e alucinações, entre outros sintomas. O isolamento pode até tornar as pessoas mais vulneráveis à doença que se tenta prevenir: os pesquisadores determinaram que “o sistema imunológico de uma pessoa solitária responde diferentemente ao combate aos vírus, aumentando a probabilidade de desenvolver uma doença”.
A crença de que as coisas não estão bem é razoável; a crença de que nada voltará a ficar bem parece indicar uma condição clínica. Um ajuste gradual à nossa circunstância incomum é a trajetória apropriada; a sensação de que a cada dia isso se torna mais insuportável é patológica. Existe a mais fina das membranas entre a ansiedade sensível e a irracional, em uma espiral. Eu sei que tenho as duas, mas tentar separá-las é como desfazer o nó górdio.
Temos dois gatilhos para a doença mental na crise atual: tristeza, quando tememos por nossas vidas, e estresse, quando nossos apegos emocionais diminuem como resultado do isolamento social. Como país, não tomamos as medidas adequadas para lidar com nenhuma dessas crises, e falhamos especialmente na segunda.
A propagação do vírus não pode ser atenuada por enquanto, mas o medo antecipado que ele instiga pode ser atenuado pelas tradicionais formas de intensificar os medicamentos e o contato com os terapeutas. Buscar tais apoios não é uma fraqueza ou um fracasso. Faça o que for preciso para não ter um colapso. É muito mais fácil prevenir do que reparar, e temos boas ferramentas para evitar a sobrecarga psíquica.
O isolamento também tem remédios. As confraternizações com Zoom e FaceTime não servem adequadamente para muitas pessoas. Devemos observar caso a caso quando os benefícios para a saúde mental de ver alguém que você ama (mesmo fora e a um metro e meio de distância) são maiores que os perigos que um encontro pessoal pode trazer para a saúde.
O medo do contágio levou as pessoas a um comportamento que agrava a depressão e a ansiedade e, portanto, pode levar ao suicídio – aumentando a mortalidade da covid-19 entre as pessoas que nem a têm. Pessoas solitárias podem sucumbir à “privação de contato” e precisam ser abraçadas. Tiffany Field, diretora do Instituto de Pesquisa de Toque da Miller School of Medicine da Universidade de Miami, afirma que a privação de toque exacerba a depressão e enfraquece o sistema imunológico; o toque positivo estimula o nervo vago e reduz o cortisol, um hormônio do estresse que pode prejudicar a resposta imune. Deveríamos descobrir quando e como as pessoas privadas de contato podem obter o contato físico necessário, com a maior segurança possível. Não será completamente seguro – mas a privação também não o é. Se a pessoa está morrendo de vontade de tocar, toque, por mais regulamentado que seja. Torna-se um remédio necessário. Não é caro nem complicado.
Essas são as maneiras de transcender a patologia. Como alguém que já tinha depressão e ansiedade, eu não queria encarar um curso intensivo de empatia, mas já tive um. Sinto-me singularmente bem posicionado para confortar aqueles que estão em seu primeiro mergulho na depressão, e diariamente alcanço aqueles que precisam de contato, psicológico ou físico. Tornou-se um chamado para mim.
Eu posso ajudá-los a avaliar o que é patológico e remediável. Conheço esses becos indesejáveis – e os caminhos de saída deles – como a palma da minha mão. Não é que um antidepressivo vai deixar as pessoas sem medo desse vírus misterioso e terrível, nem que um único abraço vai atenuar a profunda solidão. Mas podem ajudar.
Outro dia, nosso filho, em idade de quinta série, disse trêmulo: “Quanto tempo vai levar para eu ver meus amigos novamente? O que vamos fazer se eles cancelarem o acampamento?”. E então ele perguntou, mais trêmulo: “E se você e papai morrerem? 0 que vai acontecer comigo?”. Ele estava mostrando algumas das minhas tendências depressivas ou estava apenas assustado e triste? Ele saiu rapidamente e não voltou ao assunto, embora eu tenha deixado claro que ele pode. É meu projeto de galvanização manter uma cara boa diante dele. Ser forçado a negar a depressão pode ser uma tirania social perigosa, mas a escolha de derrotar os sinais externos em alguém mais vulnerável me motiva. Em parte, por causa dele, ajustei meus remédios e estou em contato com meu terapeuta, e me empenho em abraçá-lo e abraçar meu marido, sabendo que nós três salvamos um ao outro.
Faço uma caminhada diária na natureza com meu filho e nosso cachorro. Às vezes, ele e eu pulamos num trampolim, que, apesar de dar um tranco nas costas, é imensamente reconfortante. Meu marido, meu filho e eu nos juntamos para assistir a um filme todas as noites; meu marido também está lendo obsessivamente livros sobre epidemias, da peste negra à pandemia de gripe espanhola, e aprendendo português pela internet. Todos nós encontramos conforto de maneira curiosa.
As autoridades continuam dizendo que a covid-19 passará como a gripe para a maioria das pessoas que a contraem, mas é mais provável que seja fatal para as pessoas mais velhas e para as pessoas com complicações prévias. O grupo de risco deve, no entanto, incluir a depressão gerada por medo, solidão ou tristeza. Devemos reconhecer que, para uma grande parte das pessoas, a medicação não é uma indulgência e o contato físico não é um luxo. Para muitos de nós, o protocolo de álcool em gel e máscaras inadequadas não é nada, comparados à tarefa diária de desinfetar a própria mente.
*Este artigo foi publicado originalmente no Jornal americano The New York Times

***ANDREW SOLOMON – Professor de psicologia clínica na Columbia University Medical Center e autor de Longe da Árvore, O Demônio do Meio-Dia e Lugares Distantes.
Você precisa fazer login para comentar.