UMA NARRATIVA ASSUSTADORAMENTE REAL – E IRRESISTÍVEL

Daniel Defoe (Um diário do ano da peste), Albert Camus (A peste) e Philip Roth (Nêmesis) são exceções no panteão das letras. Além dos três, pouquíssimos escritores se aventuraram a transformar epidemias em literatura. Basta lembrar que a maior pandemia da história, a Gripe Espanhola de 1918, exerceu um efeito amortecedor na criatividade da geração que passou por ela. Com raras exceções – como a novela Pale horse, pale rider, de Katherine Anne Porter, ou as memórias de Pedro Nava -, quase ninguém se inspirou no morticínio para produzir obras literárias.
Via best-sellers como Zona quente, de Richard Preston, ou filmes como Epidemia e Contágio. Histórias nanadas em ritmo veloz, cujos heróis são cientistas combatendo uma nova ameaça letal à humanidade. Ainda que não venha a engrandecer a literatura, o novo coronavírus já traz um novo ímpeto a esse gênero literário-cinematográfico. O primeiro a se aproveitar da onda é o americano Lawrence Wright, no recém-lançado The end of october (O final de outubro).
Literariamente, não dá para comparar Wright a Defoe, Camus, Roth, Porter ou Nava. Mas ele tem algo que o distingue dos demais: faro jornalístico e senso de oportunidade. Seu livro ficou pronto no final do ano passado, quando ninguém imaginava que uma pandemia devastaria o planeta. Ninguém? Não. Só aqueles que, ao contrário dele, não estivessem mergulhados no assunto. Qualquer um que leia seu livro ficará surpreso com a semelhança entre a ficção e os fatos dos últimos meses. Wright soube usar informações públicas para transformar a angústia que antes afetava poucos numa narrativa que se tornou assustadoramente real – e num thriller irresistível.
A história começa (onde mais?) na Organização Mundial da Saúde em Genebra. O virologista americano Henry Parsons sai correndo de uma reunião para inspecionar o campo de Kongoli, abrigo de homossexuais muçulmanos na Indonésia, atingido por um vírus que provoca uma febre hemorrágica. Chegando lá, a devastação é absoluta. Até os médicos que cuidavam do surto estão mortos. Parsons comete o erro de deixar entrar o taxista no campo contaminado. Faz uma autópsia que o obrigará a perder o aniversário do filho. Absorto na investigação, nem pensa em isolamento. Quando se dá conta, o vírus já está em peregrinação a Meca no corpo do taxista. É a senha para a misteriosa doença, que mata 70% dos infectados, se espalhar de Kongoli pelo planeta. Parsons parte à caça do vírus na Arábia Saudita. A tentativa frustrada de isolar Meca resultará na pandemia. Parsons foge num submarino, onde improvisa um soro imunizador em pássaros. O Oriente Médio entra em guerra. Os Estados Unidos, devastados por saques e protestos, enfrentam a Rússia, misteriosamente poupada pelo vírus.
O livro segue em velocidade cinematográfica (a ideia nasceu como roteiro de filme, por sugestão do cineasta Ridley Scott). Programas secretos de armas biológicas na Amazônia. Ecoterrorismo. Um vilão de cabelo platinado com pinta de nazista vaticina: “Na guerra do homem contra a natureza, não estou do nosso lado”. Pesquisas genéticas com vírus de mamutes. Um culto diabólico que mata fiéis. Uma tentativa de estupro contra uma menina de 12 anos. Crianças que enterram os pais. Gangues de órfãos. Um menino da etnia cinta-larga, com presença de espírito incrível para empunhar uma arma. Parsons resume assim sua filosofia: “Ficamos arrogantes depois de todas as vitórias sobre infecções no século XX. Mas a natureza não é uma força estável. Evolui, muda, nunca se torna complacente. Não temos tempo ou recursos agora para fazer outra coisa além de lutar contra essa doença. Cada nação na face da Terra precisa estar envolvida, quer você pense nela como amiga ou inimiga. Se vamos salvar a civilização, devemos lutar juntos, não uns contra os outros”. Quem quer saber de alta literatura numa hora dessas?
**HELIO GUROVITZ
Você precisa fazer login para comentar.