MASCULINO E FEMININO NA PERVERSÃO
O perverso reconhece as normas sociais e a lei, mas, as burla: origens das estruturas de personalidade estão na infância
Pensar sobre possíveis diferenças entre o homem e a mulher, para além dos estereótipos ou das generalidades difundidas pelo senso comum é um exercício arriscado. Especialmente porque é bastante comum considerarmos a questão de maneira antagônica ou de maneira hierarquizada, estabelecendo gradação de valores que vai do ruim ao bom, do negativo ao positivo, do pior ao melhor – ou, ainda, do perigoso ao inofensivo.
Condicionados a essas percepções e contaminados por esse imaginário que parece esgotar o assunto, seria razoável deduzir que necessitamos alterar significativamente essa lógica, evitando reproduzir hipóteses, suposições e opiniões que conduzem a um olhar questionável sobre alteridade e sobre distinções e possam ser aprendidas quando falamos de homens e mulheres.
Contribuindo para esse esforço de resignificação, a psicanálise aponta a existência de sutilezas e nuances que dizem muito do que seja um homem e uma mulher, para além da anatomia, do corpo definido pela biologia. É nesse terreno movediço que adentramos, partindo da obra de Sigmund Freud e chegando a um de seus mais interessantes representantes, o psicanalista francês Jacques Lacan, responsável pelo avanço dessa teoria de maneira bastante original.
No texto Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre sexos, de 1925, Freud envereda por caminhos que se iniciam, fundamentalmente, por um conceito muito específico da psicanálise: o complexo de Édipo. É nesse momento mítico que o bebê (e não importa se tenha nascido com pênis ou vagina) fará uma “escolha” – visceral, poderíamos dizer – acerca de um dos genitores, que será alvo de toda sua afeição e investimento de energia, ou da libido, para sermos mais rigorosos. Freud levanta a hipótese de que o menino, ao ser cuidado pela mãe, amamentado e tornado como algo muito especial, invariavelmente a elege como seu objeto do desejo. Assim, rivaliza com o pai, considerando-o como um adversário que atrapalha seus planos de conjunção definitiva, sua fantasia de habitar um paraíso no qual viveriam somente ele e sua mãe e nada faltaria, pois um completaria o outro, sem grandes tensões.
OUTRA MULHER
Esse drama mobiliza o menino de forma muito intensa, tornando-se para ele praticamente uma razão de viver e estabelecendo condições para a irrupção de uma outra questão, radicalmente importante: a castração, que impulsiona o sujeito a se posicionar subjetivamente. Há três possibilidades de estruturação psíquica: pela neurose, pela psicose e pela perversão.
Na neurose, o menino é confrontado com a autoridade do pai (que, na visão da criança, toma para si o lugar da lei, impedindo o filho de manter com a mãe uma ligação simbiótica, uma célula narcísica). O garoto sente-se, assim, impedido de desfrutar do corpo materno e é “incentivado” a escolher outra mulher, que não sua mãe.
Outra possibilidade é a psicose, na qual a ligação entre mãe e filho é extremamente intensa na fantasia inconsciente da criança e não na interdição paterna. Nessa estruturação distinta da neurose, o menino permanece para sempre preso na relação com a mãe, afastando-se das outras pessoas, desenvolvendo laços sociais com alguma dificuldade e, sobretudo, de formas muito particulares – especialmente se levarmos em consideração que vivemos num mundo que favorece certos tipos de vínculo mais característicos da neurose, aproximando-se de um modelo de pretensa “normalidade”.
Na terceira possibilidade temos a perversão, uma estrutura na qual se destaca, essencialmente, a relação do menino com a lei simbólica imposta pelo pai, que aponta para qualquer outra mulher. Grosso modo, poderíamos dizer que o perverso se interessa por burlar a lei, ou ainda, em termos mais contundentes, é como se a lei o atraísse mais que a mulher, de fato.
E no caso das meninas? Os fenômenos se processam exatamente da mesma forma no psiquismo feminino? Naquele mesmo texto, Freud dizia que não. Segundo ele, o menino demonstra, especialmente nos casos de neurose, uma maneira específica de lidar com a castração, apaixonando-se pela mãe e nutrindo o secreto desejo de gerar um filho nela, submete-se à lei do pai e, de acordo com suas possibilidades subjetivas, desloca esse interesse para outra mulher, amando-a e procriando, alcançando a paternidade.
CASTRAÇÃO
Já a questão feminina é mais complexa, embora esse processo ocorra de forma parecida. Inicialmente, a menina privilegia a mãe e considera o pai como rival. Num segundo momento, altera essa posição e elege o pai como alvo de seu interesse, passando a competir com a mãe pelo amor e pela atenção dele.
Um leitor desavisado se surpreenderia ao perceber que nesse processo surgem as condições para o estabelecimento de sentimentos afetuosos muito intensos, tanto de amor quanto de ódio. Na estruturação da personalidade há influências das relações estabelecidas (ou fantasiadas) entre o bebê e sua mãe, dos impedimentos da lei paterna (um operador simbólico que Lacan chama de Nome-do-Pai) e das formas como a criança responde à castração. Esses elementos estão presentes no cenário que serve de pano de fundo para o complexo de Édipo.
A saída desse complexo – se é que, algum dia, efetivamente se sai dele – foi imaginada por Freud como única para o homem: apaixonar-se pela mãe na infância e, na idade adulta, buscar outra mulher que restitua a ele as mesmas sensações prazerosas que obtinha com a figura materna. Já no caso da mulher há três possibilidades, encontrar um homem que substitua seu pai, dando a ela um filho; permanecer infantilmente ligada à mãe, fixada num momento anterior ao “giro” que a faria se apaixonar pelo pai e, finalmente, rivalizar com os homens, nutrindo o que Freud chama de “inveja do pênis”, um aspecto regularmente presente na economia psíquica de grande parte das mulheres.
Alguns psicanalistas consideram que a mulher, diferentemente do homem, não poderia estar no campo da perversão, pois se relacionaria de uma forma distinta com a lei simbolicamente imposta pelo pai. Ao falar de estruturas (termo lacaniano), vale ressaltar a ideia de falo como elemento relacionado à questão da castração. Na perversão, ao perceber a ausência do pênis na mãe (e vê-la, portanto, castrada) o menino angustia-se e, para aplacar esse desconforto, “cria” um substituto – um objeto que podemos qualificar como fetiche, como algo que tampona a falta da mãe, amenizando de alguma forma a sensação desconfortável que, em última instância, o remete à sua própria castração. Com isso, inúmeras consequências podem advir, mas fundamentalmente, o perverso extrai prazer das coisas de uma forma muito particular, em geral de maneira distante daquela que se convenciona chamar de “normal”.
No imaginário popular, os perversos gozam batendo, causando dor, mentindo, enganando, confrontando a lei, tomando o outro como objeto (a ser usado), praticando atrocidades, agindo de forma despótica quando está no poder, enfim, cometendo uma série de atos e adotando posturas que nitidamente se opõem ao que costumamos chamar de ” bons costumes” ou “moralmente correto”. As aspas são necessárias, pois para a psicanálise não se trata de abordar o que é supostamente certo ou errado, mas sim da ordem do desejo de um sujeito – seja ele psicótico, neurótico ou perverso – e sua possibilidade de consecução frente à cultura e a si mesmo.
Tomado como indústria cultural e também como um meio poderoso de difusão de imagens, ideias, concepções e ideologias, o cinema nos oferece rico material para abordar a questão da perversão. É o caso de Secretária, de Steve Shainberg, que pode nos ajudar a tentar desvendar as misteriosas particularidades do âmbito da perversão, com ênfase na questão do feminino e do masculino. A obra recebeu, em 2002, o Prêmio Especial de Originalidade do Festival de Sundance. Um dos aspectos que mais chama a atenção no filme é que, num primeiro olhar, o espectador tem a sensação de que nos defrontamos com um caso de perversão feminina, pois o fio condutor do filme está centrado em uma relação entre o advogado Edward e sua funcionária Holloway, com nuances clássicos de sadomasoquismo (bater e apanhar são elementos presentes; a dor tem destaque e há rigidez no modo de amar).
Para Freud, todo modo de obtenção de prazer que se fixa – não permitindo variações e de alguma forma limitando o sujeito – poderia ser compreendido como perversão. É isso justamente que encontramos em Holloway e Edward, um relacionamento sem limites, mas intensamente repetitivo, num circuito em que o novo parece não encontrar espaço.
No início do filme Holloway é apresentada como uma jovem em busca de uma relação afetiva na qual possa sentir algo “mais excitante”, que destoe qualitativamente da relação que mantinha até então com o namorado, Peter, um amigo de infância. Um dia, ao observar uma prosaica placa de “precisa-se de secretária”, acaba por ser admitida pelo escritório de Edward, um advogado “excêntrico”, daquele tipo de chefe que nenhuma secretária suporta, dono de um escritório no qual a rotatividade de funcionárias é recorrente.
PRAZER E DOR
Holloway, que acabara de sair de uma internação num hospital psiquiátrico, mantém uma caixa com instrumentos cortantes e é adepta do cuting, prática que consiste em infligir-se dor, cortando na própria carne e, com esse ato, supostamente, obtém um tipo de prazer que não é alcançado na vida cotidiana. No caso de Holloway e Edward, a dor parece exercer papéis sutilmente distintos: enquanto para ela a dor, de alguma forma, encerra um circuito, uma equação que se finda na sensação intensa, para ele, infligir a dor e mostrar-se no “comando” da situação o excita. Ao perceber que a moça é adepta do cuting, Edward afirma que não será mais preciso que ela recorra a essa prática e que ele, a partir daquele momento, cuidaria dela.
O que soaria romântico – afinal, cuidar de uma mulher que sofre é um ato altamente sedutor, tanto para ela quanto para o homem – é, na verdade, sinal de que Holloway deveria ocupar, a partir de então, um lugar de humilhação, sendo punida a cada erro que cometia na datilografia, nas redações dos memorandos e em outras tarefas cotidianas. Algo de muito intenso começa a se desenrolar nesse momento do filme, ambos se envolvem em uma relação de completude, de sustentação de um prazer que acaba por fazer o espectador perder o fôlego e possivelmente se perguntar: será isso possível?
Como esse filme nos ajuda a pensar a questão da diferença entre um homem e uma mulher no campo da perversão? Para responder a isso precisamos recorrer novamente a Lacan, que muito nos ajudará com as noções de gozo e objeto necessárias para sofisticarmos um pouco a análise do que ocorre nessa ficção. Contudo, iniciemos com Freud, baseando-nos em um de seus mais comentados textos, Análise terminável e interminável, de 1937. Ele problematiza as dificuldades que se apresentam para o analista no final de um longo processo analítico, que pode levar anos. Ele identificou “posturas subjetivas” como feminina e masculina. Para o criador da psicanálise, a primeira está ligada ao que podemos qualificar como uma posição passiva, enquanto a masculina está vinculada a uma postura ativa.
ESTRATÉGIA DO FALO
Freud percebeu que, na verdade, homens e mulheres, não importando sua anatomia, privilegiam estar sempre na posição masculina (ativa) e que a posição passiva, na verdade, é apenas a expressão de um semblante usado “estrategicamente” pelo sujeito, frente ao que verdadeiramente tenciona, em termos inconscientes. Traçando uma analogia com o filme, poderíamos estabelecer como hipótese que a suposta passividade de Holloway frente ao advogado nada mais era que uma tentativa de seduzi-lo, fazendo-se de objeto que o capturaria – ou, como Lacan provavelmente diria, ter o falo é uma coisa, ser o falo é outra. Acrescentaríamos ainda, fazer-se de falo para o outro, numa posição supostamente passiva, talvez seja a essência da posição feminina e isso ultrapassa a anatomia, pois se observarmos crianças pequenas, veremos que tanto meninos quanto meninas fazem isso com maestria.
Em outras palavras, de maneira até mais simplista, seria curioso nos perguntarmos o que seria do sádico sem um masoquista que o complementasse. Afinal, Holloway tornou-se fundamental para Edward, acabou por ocupar o lugar de instrumento privilegiado de seu gozo, aquilo que lacanianamente convenciona-se chamar de objeto, de causa do desejo. Uma estratégia histérica, portanto, da ordem da neurose.
Aqui residiria uma provável resolução para a hipótese inicial: a mulher pode ser considerada perversa? Em nossa concepção, muito dificilmente, pois as possibilidades de gozo, de causar desejo no outro e, com isso, marcar a castração desse outro, afastando-se assim do confronto com a própria frustração, permite-nos dizer que a perversão, fundamentalmente marcada pela confrontação com a lei simbólica do pai, não alcança nem favorece a estruturação das mulheres da mesma forma que os homens – daí a extrema dificuldade dos psicanalistas em diagnosticar uma mulher perversa. Novamente a mulher põe a psicanálise em xeque, fazendo-a trabalhar.
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