A DANÇA DO CIÚME
Pode haver um “módulo inato” que processa a emoção de forma diferente no cérebro masculino e no feminino, dizem evolucionistas
Como muitas emoções que envolvem a escolha de parceiro, o ciúme apresenta-se diferentemente em homens e em mulheres. Algumas correntes de pensamento sugerem a existência de um “módulo inato”, isto é, um circuito cerebral pré-programado com gatilho diverso nas mulheres e nos homens. No acalorado debate entre psicólogos há uma ideia relativamente simples sobre o ciúme nos relacionamentos românticos. Nos anos 90, a psicologia evolucionista começou a aplicar as teorias de Charles Darwin ao comportamento humano, dando origem à ideia de que o ciúme representaria uma vantagem adaptativa para homens e mulheres. As pressões seletivas sobre os dois sexos, entretanto, teriam sido assimétricas.
Essa hipótese continua válida, principalmente depois que novas evidências apontaram para diferenças fundamentais entre a experiência masculina e a feminina do ciúme nos relacionamentos românticos. No entanto, uma análise mais detalhada dessa interpretação evolucionista pode ser muito mais complexa. Certamente o ciúme é uma emoção inata e adaptativa, mas, mais do que em teorias baseadas nas diferenças sexuais das estratégias de acasalamento adotadas por nossos ancestrais, sua expressão é mais bem compreendida com base na teoria do desenvolvimento e em enfoques sociocognitivos.
Pesquisas nessa área se concentram na interação de fatores sociais e cognitivos. Estudando as diferenças culturais, psicólogos já constataram que o ciúme é mais intenso nas sociedades que aceitam o sexo somente no relacionamento conjugal ou nas que dão muito valor à propriedade privada.
A psicologia evolucionista procura explicar peculiaridades da mente humana segundo pressões seletivas que atuaram sobre nossos ancestrais no período Pleistoceno (entre 1,8 milhão e 11 mil anos atrás). De acordo com os pesquisadores dessa vertente, emoções pré-programadas que temos agora não são necessariamente as que favoreceram nossa aptidão evolutiva (ou a perpetuação de nossos genes), mas elas tendem a compensar as diferenças entre o ambiente em que vivemos e o de nossos antepassados remotos. O psicólogo David Buss, da Universidade do Texas em Austin, e vários outros psicólogos evolucionistas afirmam que, no contexto das relações sexuais, um conjunto específico de circuitos cerebrais leva nossa reação emocional a perceber ameaças.
SELEÇÃO NATURAL
Esse módulo emotivo-cognitivo por um lado torna os homens predispostos ao ciúme relacionado à infidelidade sexual da parceira e, por outro, predispõe as mulheres ao ciúme relacionado à traição emocional do parceiro. A diferença na reação masculina e feminina segundo esses pesquisadores, existe hoje porque as pessoas enfrentaram diferentes riscos durante o Pleistoceno. Com base na teoria da seleção natural, mutações que aumentam a aptidão são favorecidas e se perpetuam porque as gerações as herdam dos indivíduos bem-sucedidos.
A teoria do módulo inato entusiasmou muitos pesquisadores, principalmente depois de uma enxurrada de estudos baseados em auto relatos de universitários. Pedia-se aos participantes que imaginassem seu parceiro ou parceira fazendo sexo fora da relação ou apaixonados por outra pessoa. Depois eles deviam escolher qual tipo de infidelidade seria menos perturbador ou aceitável.
Desenvolvido por Buss em 1992, esse método de escolha forçada já foi empregado em várias dezenas de estudos, sobretudo nos Estados Unidos. Ele produz invariavelmente diferenças significativas entre os sexos: mais de 70% das mulheres indicam que a infidelidade emocional é mais difícil de suportar; entre 40% e 60% dos homens relatam que a infidelidade sexual seria pior. Sempre fiquei intrigada com esses dados e resolvi fazer uma revisão sistemática com meta análise. Descobri que a influência do sexo sobre a escolha do tipo de infidelidade é significativa, mas tende a ser menor entre indivíduos mais velhos ou em amostras que incluem homossexuais. Efeito semelhante foi constatado em estudos em outros países, embora um número bem menor de europeus e asiáticos (entre 25% e 30%) tenha escolhido a infidelidade sexual como pior alternativa – o que sugere uma influência cultural comparável à do sexo. É bem possível que essas diferenças sexuais na expressão do ciúme não reflitam necessariamente a existência de módulos inatos. Uma possibilidade pouco cogitada pelos evolucionistas é o simples fato de homens e mulheres tirarem conclusões diferentes sobre a infidelidade hipotética e suas desagradáveis implicações. Tais inferências produziriam os resultados observados no teste de escolha forçada. Segundo uma interpretação alternativa que vem sendo chamada de “tiro duplo”, os homens achariam a infidelidade sexual mais insuportável porque a mulher não faria sexo com outro homem se não estivesse apaixonada por ele. As mulheres, por sua vez, sabem que os homens fazem sexo mesmo quando não há relação de afeto, portanto, a infidelidade sexual do homem não implicaria necessariamente infidelidade emocional. Mas, como o risco de perder o parceiro é maior quando ele faz sexo com outra por quem esteja apaixonado, a infidelidade sexual masculina é uma ameaça maior para as mulheres. As evidências que corroboram essa explicação, no entanto, ainda são um tanto confusas. David De Steno e colegas da Universidade do Noroeste, Estados Unidos, usaram outro enfoque para investigar as causas das diferenças sexuais nos testes de escolha forçada. Se elas refletem módulos pré-programados específicos para cada sexo, então negar às pessoas a oportunidade de refletir sobre a escolha deveria aumentar a amplitude da diferença entre as respostas de homens e de mulheres. Os pesquisadores realizaram o que eles chamam “manipulação da carga cognitiva”. Pediram aos participantes que recordassem uma sequência de sete dígitos ao mesmo tempo que respondiam às perguntas. Essa sobrecarga cognitiva não alterou a resposta dos homens, mas com ela as mulheres tenderam a escolher a infidelidade sexual como o gatilho mais poderoso do ciúme.
MÓDULO INATO
Em vez de usar o método de escolha forçada, vários pesquisadores avaliaram as reações de ciúme por meio da apresentação de cenários de infidelidade sexual e emocional e de escalas de pontuação contínua. Curiosamente, os resultados produzidos por essa abordagem eliminaram quase totalmente as diferenças sexuais e em alguns casos até inverteram sua primeira aferição, mostrando que o ciúme sexual é mais forte nas mulheres. Portanto, o método de escolha forçada parece revelar diferenças sexuais que podem ter raízes evolutivas, mas seus resultados são muito frágeis para sustentar a existência do módulo inato proposto pelos evolucionistas.
Diante das dificuldades com os estudos baseados em auto relatos, os psicólogos partiram para medições fisiológicas do ciúme. Buss e colegas começaram monitorando a atividade do sistema nervoso autônomo em situações imaginárias de infidelidade. Observaram, num estudo de 1992, que a frequência cardíaca e a condutância da pele (que reflete a sudorese) de universitários foram maiores quando eles imaginaram a parceira fazendo sexo com um terceiro. A reação das garotas foi oposta: elas ficaram mais perturbadas com a possibilidade de o parceiro estar apaixonada por outra.
Até aqui nenhuma novidade – os resultados são compatíveis com os obtidos com o método de escolha forçada. No entanto, a reatividade fisiológica pode refletir muitas emoções diferentes e essa é uma das razões pelas quais os polígrafos ou detectores de mentiras não são muito confiáveis. Aumento da pressão arterial, da frequência cardíaca e da sudorese acompanha diversas emoções como medo, raiva ou excitação sexual. Como os indivíduos estão apenas imaginando a infidelidade, ninguém garante que as alterações dos parâmetros não estejam refletindo outros estados emocionais ou cognitivos. Eu e minha equipe da Universidade da Califórnia em San Diego constatamos que os homens exibiam o mesmo tipo de resposta quando imaginavam eles próprios fazendo sexo com a namorada. Portanto, a maior reatividade pode refletir apenas excitação e não exatamente ciúme sexual. Também não conseguimos confirmar a hipótese segundo a qual as mulheres tendem a exibir reações mais fortes à infidelidade emocional imaginada. Observamos, porém, que a experiência sexual parece modular as respostas delas: mulheres com vida sexual ativa reagiram mais fortemente à possibilidade de infidelidade sexual – sugerindo um padrão de resposta semelhante ao dos homens.
CRIMES PASSIONAIS
Os dados psicofisiológicos fornecem uma resposta ambígua sobre a existência do módulo inato. O método não se revelou bom porque não consegue diferenciar ciúme de simples perturbação. Se, entretanto, as medidas de fato quantificam o sofrimento, os resultados mostram que tanto mulheres quanto homens reagem mais vigorosamente à infidelidade sexual que à emocional, pelo menos quando ambos já tiveram experiências reais de relacionamento.
Há quem argumente que a evidência mais convincente da realidade dos módulos neurais de ciúme específicos para cada sexo pode ser encontrada nos padrões de comportamento violento observados em muitas culturas. Em 1982, Martin Daly e Marga Wilson, da Universidade McMaster, Canadá, revisaram estudos sobre as razões que causaram assassinatos e concluíram que os homens cometeram mais homicídios motivados por ciúme sexual. Entretanto, homens cometem todas as formas de crimes violentos, inclusive assassinato, em índice bem maior que mulheres. A simples comparação é, portanto, enganosa. Outros dois estudos investigaram o ciúme como fator motivador de assassinato tendo em conta as diferenças nos índices globais desse delito. Os resultados descrevem um quadro incrivelmente diferente. Recentemente, eu mesma examinei os motivos de assassinato em 20 amostras multiculturais (totalizando 5.225 crimes) e não encontrei nenhuma diferença sexual global. Anteriormente, Richard B. Felson, da Universidade Estadual de Nova York em Albany, avaliou 2.060 assassinatos registrados em um banco de dados de 33 grandes condados americanos e constatou propensão a assassinar por causa de ciúme duas vezes maior entre mulheres. A abordagem do crime para investigar diferenças da expressão do ciúme entre os sexos, portanto, revelou-se frustrante.
Outra linha de pesquisa que poderia testar a hipótese do módulo inato baseia-se nos casos de ciúme mórbido. Os psiquiatras usam esse termo para descrever pacientes com convicção – frequentemente delirante – de que estão sendo enganados pelo companheiro. Possuídos por raiva ou depressão, é comum sentirem-se compelidos a espionar o parceiro. Os ciumentos mórbidos às vezes usam métodos agressivos para impedir a infidelidade na relação.
Cinco estudos que avaliaram casos de agressão passional cometida por ambos os sexos mostraram que 64% dos homens e 36% das mulheres tinham diagnóstico de ciúme mórbido. Os autores inicialmente interpretaram que a predominância de pacientes masculinos indicava a existência de um mecanismo de ciúme sexual ausente nas mulheres. No entanto, a proporção de transtornos mentais entre os sexos raramente é 1:1 e os homens estão super-representados em vários deles. Alguns psiquiatras argumentam que o ciúme mórbido quase sempre é uma forma de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). A terapia com fluoxetina, amplamente usada para tratar esse distúrbio, costuma ter bons resultados nos ciumentos mórbidos.
A incidência global de TOC é aproximadamente igual entre os sexos, embora alguns estudos registrem prevalência ligeiramente maior entre homens. Além disso, parece ser consenso geral que os transtornos obsessivo-compulsivos sexuais ocorrem mais no sexo masculino.
Analisando uma grande amostra de pacientes com TOC de um hospital psiquiátrico, Patrízia Lensi e colegas da Universidade de Pisa, Itália, verificaram ocorrência na razão de dois homens para cada mulher. Contudo, se o ciúme mórbido é urna manifestação da patologia e representantes do sexo masculino são mais propensos a padecer do distúrbio com obsessões sexuais, é questionável tirar conclusões gerais com base na ocorrência desse transtorno.
GATILHOS EMOCIONAIS
Quando deixamos para trás os estudos de laboratório e examinamos as situações reais de infidelidade, de crimes cometidos e de obsessões pela ameaça de traição, não encontramos diferenças de gênero particularmente marcantes que apoiem a hipótese do módulo inato de ciúme. Diferentemente do que apontam os dados psicofisiológicos, os homens parecem mais suscetíveis ao ciúme violento ou obsessivo, mas de forma compatível com a tendência geral para a agressividade e obsessão sexual observada no sexo masculino.
Apesar de parecer convincente à primeira vista, a teoria do módulo inato revela-se frágil sob exame minucioso. De fato, ela oferece uma oportunidade fascinante de relacionar a psicologia humana à força propulsora da evolução. Mas é preciso lembrar que não sabemos quase nada sobre o ambiente social ou cultural do Pleistoceno. As ameaças à aptidão darwiniana que nossos ancestrais enfrentaram não se apresentaram necessariamente de uma forma que a biologia sozinha seja capaz de predizer. Os índices de adultério podem não ter sido tão altos quanto os psicólogos evolucionistas supõem.
Para os primeiros hominídeos, que viviam em bandos pequenos, a traição poderia não ter o mesmo significado. Os recursos dos machos talvez não fossem valorizados nem as consequências do adultério tão terríveis como se imagina. Uma revisão das sociedades caçadoras coletoras feita por Wendy Wood, da Universidade Duke, e Alice Eagly, da Universidade do Noroeste, Estados Unidos, mostrou que houve um grau considerável de variabilidade cultural nas contribuições dos dois sexos para a subsistência, e que muitas vezes as mulheres parecem ter participado mais. Fica difícil, portanto, inferir as condições que prevaleceram no Pleistoceno com base nas poucas evidências que temos hoje. Mesmo que nossos ancestrais tenham realmente pago um preço alto por não coibir o adultério, é possível que a evolução tenha resolvido o problema de maneira um pouco diferente daquela sugerida pelo módulo inato. Concentrar-se na traição sexual ou emocional de um parceiro pode não ser uma forma eficiente de evitar infidelidade. Segundo os defensores dessa hipótese, o ato sexual é o gatilho que desperta o mecanismo masculino do ciúme, enquanto na mulher esse sentimento é ativado pela evidência de envolvimento emocional do parceiro com outra pessoa.
PUNIÇÃO DARWINIANA
Buss foi um dos que destacaram que a detecção de sinais de infidelidade entre suas vítimas pode ser bem precisa: um indivíduo ciumento já enganado geralmente está certo quando desconfia que uma traição ocorreu novamente. Se os indícios desencadeadores do ciúme fossem evidentes para nossos antepassados do Pleistoceno somente depois de a infidelidade consumada, os deflagradores específicos provavelmente tocariam o alarme tarde demais para evitar a “punição” darwiniana. Em termos de aptidão, a vantagem do ciúme que acompanha a infidelidade sexual é um tanto duvidosa.
Uma estratégia mais eficiente usada por nossos antepassados pode ter sido a vigilância dos precursores da traição. A infidelidade raramente ocorre de forma súbita. Antes da cópula, os humanos ancestrais (assim como os modernos) supostamente adotavam comportamentos que sinalizavam os primórdios do interesse sexual, emocional ou ambos. Em consequência, talvez não tenha havido necessidade alguma de homens e mulheres desenvolverem gatilhos específicos de ciúme. Ao contrário, seria mais fácil se eles ficassem alertas e não se mostrassem sensíveis ao interesse de outros (que não seus parceiros). Essa hipótese é compatível com as evidências de que as diferentes respostas de homens e mulheres à infidelidade não são congênitas.
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