RACISMO À BRASILEIRA
Menos explícita, não menos perversa, a discriminação no país exibe a secular força dos senhores

O assassinato de George Floyd em Minneapolis serviu de gatilho para um a série de protestos em cidades dos EUA. Anos atrás, a morte do jovem negro Michael Brown, de apenas 18 anos, atingido em plena luz do dia por seis tiros disparados por um policial branco da cidade de Ferguson, no estado do Missouri, também tomou o país, transformando-o em um grande palco da luta racial.
Os protestos, na oportunidade, foram similares aos que acontecem agora, tendo início no local em que ocorreu a violência policial e ampliando-se para outras dezenas de cidades e estados dos Estados Unidos, causando grande repercussão internacional. Enquanto isso, no Brasil, um conjunto de outros casos semelhantes, como o do garoto João Pedro, de 14 anos, baleado no Complexo do Salgueiro, no Rio de Janeiro, não cria tamanha revolta popular, restringindo manifestações a grupos de ativistas e mantendo silenciosa a maioria absoluta da sociedade.
O que leva essas manifestações a acontecerem com tanta potência por lá e não alcançarem aqui a mesma comoção? Em princípio, é preciso pontuar as diferenças sociais entre os dois países, principalmente a forma de manifestação do racismo nas duas sociedades e a construção histórica desses formatos de discriminação.
Nos Estados Unidos, as violências raciais apresentam-se de formas muito mais diretas e contundentes – embora lá haja mais “permissões” do racismo sistêmico para que negros alcancem maiores níveis econômicos, marcadamente na música ou no esporte. Aqui, apesar de não ser menos violento o racismo, ele se apresenta de formas engenhosas, menos explícitas, adotando feições que o fazem ser escamoteado.
No geral, nas metrópoles brasileiras, o racismo dificilmente será manifestado com xingamentos violentos, como pode ocorrer em Nova York. Contudo, excluirá negros e negras da educação, do direito à saúde, à moradia, às terras e a uma série de instrumentos de bem-estar social. Fará com que sofram restrições, estejam em posições subalternizadas e os destinará à pobreza. Percurso inverso dos brancos brasileiros.
A abolição formal e inacabada do escravismo no Brasil fincou-se no abandono socioeconômico da população negra “liberta”. Parlamentares abolicionistas, entre eles o engenheiro negro André Rebouças, pautaram à época que, juntamente com a proibição do trabalho escravo, ocorresse reforma agrária em reparação à população negra, o que, como sabemos, não ocorreu até hoje, 132 anos após o “fim” da escravatura. A ausência de terra enquanto sinônimo de riqueza monetizada, apartou a população negra dos benefícios econômicos gerados pelo próprio trabalho.
Essa negação à ascensão econômica e social, que inclui todos os direitos aviltados dessa população, mitiga a capacidade do negro brasileiro em ecoar e comunicar o “racismo à brasileira”. Essa menor reverberação do racismo ocorrido no Brasil sinaliza que o capital branco-burguês opera de forma potente e perversa para silenciar os crimes por ele cometido – muito embora as estatísticas indiquem diferenças inversas em relação à dicotomia racista brasileira e estadunidense.
Os autores Frank Edwards, Hedwig Lee e Michael Esposito demonstram que a possibilidade de um homem negro ser atingido pela polícia, nos Estado Unidos, é 2,5 vezes maior daquela de um homem branco. No Brasil, os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública informam que esse risco é cinco vezes maior. Esses números demonstram a importância de assinalar que o racismo é um conceito atrelado a uma relação de poder. Cria cenários sociais de constrangimentos e vulnerabilidades para os negros e de poder e segurança para os brancos. Ao passo que vivemos um processo de sistemática Negação do racismo, considerando que, por aqui, convencionou-se tratar as desigualdades raciais como uma questão social, estratégia que dá conta de ilustrar a fina sofisticação do racismo no Brasil. A disseminada ideia do racismo cordial e da miscigenação das raças dilacera a perspectiva identitária racial no País.
Do outro lado dessa dicotomia, nos Estados Unidos, devemos lembrar que, logo após a Guerra de Secessão, ou Guerra Civil Americana, as tropas federais estacionaram nos estados do Sul para que a aristocracia branca não voltasse a escravizar os negros, até que se oficializasse a decisão de implantar o sistema de Apartheid, momento que fundou parte da identidade e da ideia de unidade nacional estadunidense, pois a oficialização da segregação racial permitiu unificar os brancos do Norte e do Sul.
Na sequência, em 1896, no caso Plessy vs. Ferguson, a Suprema Corte tomou uma decisão que originou a doutrina jurídica da lei constitucional dos Estados Unidos, denominada “Separados, mas “iguais”, que permitiu a segregação racial naquele país, desde que não se configurasse violação da 14ª Emenda, que garantia proteção e direitos civis iguais a todos os seus cidadãos.
No Brasil, os adventos da República e do “fim” da escravidão foram marcados por uma elite nacional usando de desfaçatez e ocultamento para tratar a questão dos libertos, manipulando a construção de conceitos de brasilidade, cordialidade e miscigenação, que ocultavam princípios de eugenia ancorados no que se viu elaborado, depois, como racismo científico. Tudo isso foi estratégia para mudar o regime de escravatura, mantendo a opressão sobre corpos negros. Além disso, o citado pós-abolicionismo sem garantias de direitos criou um abismo entre a população negra e a igualdade, que a democracia deveria garantir como básico.
A herança escravocrata vem se perpetuando pela história, sem reestruturação ou reparação. A fragilidade de nossas instituições tem raiz no período colonial, quando eram fortes apenas na metrópole. Nossa história foi sempre contada a partir das referências europeias. O Brasil nunca existiu enquanto nação. Somos apenas um esboço não terminado. A população negra, nesse contexto, é a base de exploração do capitalismo. Nossos corpos valem tanto quanto uma peça de máquina de fábrica. Se quebrar, o patrão repõe por outra, sem se importar em descartar a usada.
Por fim, o racismo em países do capitalismo periférico tem ainda mais força justamente pela forma cheia de desfaçatez que se apresenta. E aqui “a vida valerá sempre menos”. Logo, a morte de um brasileiro constitui-se como um “crime perfeito” e valerá sempre menos que a de um norte-americano ou europeu, mesmo que ele seja preto. Somos periferia, enquanto projeto de nação.
MARCOS REZENDE – é historiador, mestre em Desenvolvimento e Gestão Social pela UFBA e coordenador do Coletivo de Entidades Negras (CEN)
O Brasil é pródigo em ter pessoas que se comportam como se nada acontecesse por aqui…
CurtirCurtido por 1 pessoa