O DIREITO A TER DIREITOS

No texto Nós, os refugiados (1943), a pensadora Hannah Arendt (1906-1975) – que havia fugido do campo de internamento de Gurs, em 1940, escapado para os Estados Unidos em 1941 e em 1942 acabara de receberas primeiras notícias sobre as câmaras de gás nos campos de extermínio – observa que a condição de refugiada significava, antes de tudo, a perda da casa e da familiaridade da vida cotidiana; do trabalho e do sentido da própria utilidade; do idioma pátrio e da espontaneidade da expressão; a perda dos amigos e a ruptura das vidas privadas.
Em Origens do totalitarismo (1951) ela retoma parte do que expõe nesse texto quando considera a condição do apátrida e a toma por refutação cabal da convicção de que os direitos humanos são naturais: “o mundo não viu nada de sagrado na abstrata nudez de ser unicamente humano”. Inusitadamente, ela sustenta que o único direito humano fundamental é o direito a ter direitos, ou seja, o direito de não perder um lugar no mundo, o direito a ter um lugar próprio de onde sair para o mundo e para ele voltar, o direito de pertencer a uma comunidade e ser julgado pelas ações e opiniões. Obstinados em reconstruir suas vidas rompidas, “otimistas”, por assim dizer, os refugiados buscam adaptar-se aos mais diversos contextos e desafios, observa Arendt. Mas, diz ela, “há algo de errado com o otimismo. Há aqueles estranhos otimistas entre nós que, tendo feito vários discursos otimistas, vão para casa e ligam o gás ou dão uso a um arranha-céus de um modo um pouco inesperado”.
MORTE E VIDA SEVERINA
Essa desesperada disposição para “saltar da ponte e da vida” encontra eco em Severino, convertido de flagelado em retirante, aquele que em nossa presença emigra de sua caatinga, a encontrar novas misérias no agreste e no mangue, em busca não propriamente de uma vida melhor, mas de escapar das coisas que ele porta – “fome, sede, privação”. Sem esperar muita coisa, nem ser movido por grande cobiça, Severino buscava defender sua vida contra a vida Severina, “aquela vida que é menos vivida que defendida”, aquela que, nas palavras de João Cabral de Melo Neto em Morte e vida severina, é sempre comprada à vista, a qual, paradoxalmente, “é ainda mais Severina para o homem que retira”.
Somos muitos Severinos – diz ele – iguais em tudo na vida:/ na mesma cabeça grande/ que a custo se equilibra,/ no mesmo ventre crescido/ sobre as mesmas pernas finas/ e iguais também porque o sangue/ que usamos tem pouca tinta./ E se somos Severinos/ iguais em tudo na vida,/ morremos de morte igual/ mesma morte Severina:/ que é a morte que se morre/ de velhice antes dos trinta,/ de emboscada antes dos vinte/ de fome um pouco por dia.
Severino segue o rio, e da morte à vida, encontrada na frágil novidade de um novo nascimento: “belo como as ondas/ em sua adição infinita/ belo porque tem do novo/ a surpresa e a alegria/… E belo porque com o novo/ todo o velho contagia/ belo porque corrompe/ com sangue novo a anemia/ infecciona a miséria/ com vida nova e sadia/ com oásis, o deserto/ com ventos, a calmaria”. Tão vigorosas metáforas da natalidade – metáforas arendtianas, arrisco-me a indicar – traduzem a renitência do fora da vida, que é a vida severina daquele que se retira, a embeber a política com aquilo que a solapa: a persistência de uma vida comprada a retalho da qual não se escapa senão para a morte.
NECESSIDADES DA VIDA
Sem o direito de Severino retirante a poder transcender tal vida, a universalidade democrática não passa de simulacro, e o direito à cidadania, de ser participante do governo, encontra seu antípoda mais remoto. A casa, a ocupação, o idioma, os sotaques, o conforto da saciedade, as companhias de familiares e amigos constituem aquele lastro de estabilidade privada que é pressuposto na vida política tanto quanto a administração das necessidades da vida.
O direito a ter direitos, como formulado por Arendt, em As origens do totalitarismo, implica não ser expulso da Terra ou do gênero humano em consequência de ter sido expulso do mundo e de sua comunidade política e de cultura. Antes de ter direito à participação política, o direito a ter direitos é o direito a não ser um estrangeiro na Terra, que abre a possibilidade de não ser um estrangeiro no mundo. Como refugiado, em sua vida exposta e abandonada, Severino retirante, compelido a vagar, desafia quanto de miséria pré-política uma comunidade política pode suportar? Infelizmente, parece que muita.
Enquanto não enfrentarmos politicamente a vida Severina no sentido de obstar sua sistemática reprodução, não poderemos jamais alcançar a consolidação do direito a ter direitos como direito a uma existência política, que implica, além dos direitos civis, o de não ser impedido a participar na vida em comum devido aos constrangimentos da miséria, o que converte a própria pobreza extrema, como a condição dos refugiados e apátridas, em um problema político primeiro.

ADRIANO CORREIA – é professor de Filosofia da Universidade Federal de Goiás e presidente da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (ANPOF).
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