O ABC DA CONTROVÉRSIA
A questão sobre com que idade as crianças devem realmente ser alfabetizadas volta a rondar os noticiários e a gerar dúvidas entre profissionais da educação e entre os pais
Historicamente a alfabetização se dá em nosso país no primeiro ano do ensino fundamental, e essa determinação resistiu há anos de discussões sobre os métodos pedagógicos envolvidos, achados científicos a respeito da maturidade infantil, estudos sobre a psicogênese da escrita e depois do letramento e várias questões de diferentes ordens. Criou-se, no século XIX, um aparato jurídico para garantir a obrigatoriedade escolar, em consonância com diferentes países europeus, nos quais já havia “leis de obrigatoriedade escolar”, que conferiram visibilidade social à idade da meninice (por volta dos 7 aos 14 anos).
É simples compreender por que a Lei nº 11.274/2006, responsável pela ampliação do ensino fundamental de 8 para 9 anos, tenha despertado polêmica em torno da questão da alfabetização das crianças que passaram a entrar no chamado “1º ano” com 6 anos.
Embora escolas particulares, principalmente, já iniciassem tal processo no último ano da educação infantil, a idade passou a ser antecipada oficialmente em todas as escolas. E, com base em diferentes argumentações, o dispositivo de antecipação da alfabetização passou a operar no primeiro ano do ensino fundamental, mas se entendendo que o processo se consolidaria no terceiro ano do ensino fundamental, quando as crianças têm geralmente 8 anos de idade.
Entretanto, é fato, e reconhecido em diferentes estudos, que exageros vêm sendo praticados de modo que o primeiro ano se transformou em um período em que os professores se dedicam quase que exclusivamente à alfabetização: em Rondônia, em São Paulo, em Belo Horizonte, entre outros, o achado se multiplica e não apenas na escola particular.
Alfabetizar significa compreender o funcionamento do Código Alfabético. Esse código refere-se à correspondência entre as letras do alfabeto (grafemas) e os fonemas da língua que eles representam. Corresponde a um complexo processo, que não começa exatamente nos bancos escolares, mas neles se desenvolve e solidifica. Obviamente existe uma parcela (mínima) de crianças que se alfabetizam praticamente sozinhas, mas não é de longe uma regra, pois esse procedimento exige planejamento, estímulo a partir de competências, de habilidades individuais, e vai sendo concretizado através de trocas com o meio, de treino, de oportunidades de aprendizagem variadas.
Mas, recentemente, o quadro se complicou com o anúncio da terceira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) pelo Ministério da Educação, que antecipa para o segundo ano a alfabetização plena das crianças. A discussão é ampla, mas já se inicia por um fato prático: reduzindo o tempo final para a consolidação dessa aprendizagem, a solução será usar dos últimos anos da educação infantil para o início da alfabetização, o que já é feito por algumas escolas, especialmente as particulares. E há famílias que apoiam e até buscam esse tipo de conduta…
Afirmar que dessa forma aproximaríamos o rendimento das crianças do sistema público de ensino às do ensino particular não basta, até porque não se encontrou até hoje vantagem alguma em fazer uma criança se tornar um leitor precoce. Além disso, os resultados da Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA) de 2014 apontaram que a proposta atual não está dando resultados positivos: 20% dos alunos da rede pública que frequentam o quarto ano (10 anos de idade) não sabem ler adequadamente. E os resultados das escolas particulares nem sempre são diferentes.
Oferecer uma boa pré-escola foi o caminho que países de educação reconhecidamente de qualidade encontraram: deixaram para o ensino fundamental o aprendizado formal da leitura e escrita, deram tempo para que neurologicamente a criança alcançasse um grau de desenvolvimento que lhe permitisse aprender sem prejuízo a outras atividades igualmente importantes para seu amadurecimento global.
Não foi uma decisão impensada: foi fundamentada em estudos científicos que mostram que o cérebro infantil precisa desenvolver-se durante os seis primeiros anos de vida através de atividades como brincar, exercitar-se com dinamismo, correr, experimentar coisas novas com crianças da mesma idade, ampliar a linguagem, a atenção, a memória, sensibilizando-se para o mundo das letras por meio de contato com histórias, dramatizações, músicas, artes.
Determinar que a consolidação da alfabetização, ou seja, que a criança seja capaz de codificar e decodificar com autonomia, atribuindo sentido a textos e escrever textos compreensíveis por outros leitores ocorra no segundo ano do ensino fundamental (aos 7 anos de idade), em todas as escolas, é um objetivo ambicioso e tangível para uma parcela de nossas crianças, mas não sem ônus para elas e para seus professores. Além disso, saber ler e escrever perfeitamente aos 7 anos não evita problemas na vida escolar e não garante o sucesso profissional futuro, nem muda o quadro da educação brasileira.
Estender até os 8 anos o processo de alfabetização não significa perda de tempo, pois a criança estará desenvolvendo outras múltiplas habilidades e adquirindo novos conhecimentos compatíveis com seu neurodesenvolvimento, sua cognição, capacidade psicomotriz, socioemocional, todas fundamentais para as outras aprendizagens que virão.
MARIA IRENE MALUF – é especialista em Psicopedagogia, Educação Especial e Neuroaprendizagem. Foi presidente nacional da Associação Brasileira de Psicopedagogia – ABPp (gestão 2005/07). É autora de artigos em publicações nacionais e internacionais. Coordena curso de especialização em Neuroaprendizagem. irenemaluf@uol.com.br
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