FORMAS DE MORRER
Pode parecer estranho, mas viver alheio de si mesmo também é uma forma de morrer
E então ele, desesperado com o rumo que as coisas haviam tomado, avançou sobre a mulher, desferindo-lhe repetidos golpes de faca que, seguidamente, reafirmavam a dimensão de seu fracasso: como homem, como marido, como pai daquela linda família congelada nas lembranças das mídias sociais. Seria preciso apagar os indícios de sua existência, já que não seria capaz de conviver com seu peso acusatório. No derradeiro controle da realidade que o cercara, joga os dois filhos do 18º andar, atirando-se, em seguida, rumo ao final de seu sofrimento.
No apartamento, a carta deixada sobre um móvel qualquer enumera “justificativas” para o ato. Todas elas girando em torno de um fracasso profissional, uma cartada arriscada para ganhar mais (e, é claro, assumida apenas pelo “bem da família”) e um contrato mal acordado que lhe trazia revés financeiro.
A despeito do tom de folhetim, a cena acima descreve um fato real ocorrido no Rio de Janeiro há poucos anos.
A imprensa, como não poderia deixar de ser, recorre a especialistas para explicar o fato. Alguns são comedidos ao fazê-lo. Em síntese, afirmam que não é possível que se faça nenhuma análise confiável sem que se conheçam os envolvidos. Já outros, deslumbrados com seus minutos de fama, desferem um sem-número de asneiras que giram em torno de valores materialistas, pressões da sociedade de consumo e coisas do gênero. De fato, só existe uma razão que justifica a tragédia: a doença de seu protagonista que não enxergou nenhuma alternativa, nenhum outro recurso, senão o escolhido, para lidar com seus problemas. O que jamais saberemos – e que para tanto precisaríamos conhecê-lo profundamente – são as razões que o levaram ao desenvolvimento de sua doença. Contudo, uma coisa parece certa: dentro da sua confusão mental, o suicida parece realmente acreditar que seu ato se justificaria pelas razões que descreve em sua carta derradeira.
Isso posto, não estamos aqui discutindo as causas do homicídio/suicídio, mas talvez possamos analisar a justificativa deixada pelo suicida, essa sim talvez um retrato de uma sociedade doente e com indivíduos alheios a si mesmos.
Desde que nascemos somos educados para atingir o sucesso. Nossos pais, zelosos, empenham-se para isso logo nos nossos primeiros anos de vida, ao nos escolherem a melhor escola possível, o curso de inglês, o reforço de matemática, os sermões sobre a importância dos estudos. Mas, afinal de contas, o que significa o sucesso? Seria o resultado de um trabalho constante/ De dedicação a um objetivo? Muitos diriam que sim e é justamente aí que se encontra o problema.
Somos levados a crer no sucesso como sendo o resultado de algo. Uma espécie de pote de ouro no fim do arco-íris. Mas o verdadeiro sucesso é processo. Parafraseando Guimarães, eu diria que “ele se dispõe pra gente é no meio da travessia”.
A crença no sucesso (e até mesmo na felicidade) como resultado de algo facilmente leva o crente a associá-lo à simples conquista de metas e objetivos, o que traz em si algumas implicações. A primeira delas é simples: não há garantias de que possamos atingi-los. Muitas coisas podem acontecer no meio do caminho e uma delas – talvez a mais dramática de todas – seria uma vida inteira vivida com sentimento de fracasso e infelicidade por algo que não se conquistou: “Pobrezinho, morreu de enfarte a um mês da tão sonhada aposentadoria!”.
A outra implicação da crença no sucesso como resultado do cumprimento de metas é a necessidade de nos perguntarmos se nossas metas são dignas de nós. Se retratam quem somos, nossos valores mais íntimos, nossa verdade mais profunda. Aí sim entra o perigo de construirmos uma vida não simplesmente buscando o sucesso como a conquista de algo, mas de um algo estéril, destituído de nós mesmos. Nesses casos, talvez o suicídio represente o fim de alguma coisa que há muito havia morrido.
LILIAN GRAZIANO – é psicóloga e doutora em Psicologia pela USP, com curso de extensão em Virtudes e Forças Pessoais pelo VIA Institute on Character, EUA. É professora universitária e diretora do Instituto de Psicologia Positiva e Comportamento, onde oferece atendimento clínico, consulta empresarial e cursos na área.
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