ELES TAMBÉM PRECISAM VIVER
Pacientes com doenças graves e crônicas convivem com o risco de infecção e de falta de órgãos ao mesmo tempo que perdem vagas para concluir seus tratamentos em hospitais

Num momento de total fragilidade física e emocional, quando deveriam se preocupar exclusivamente com os cuidados de suas graves doenças, alguns pacientes se veem forçados a conviver com os riscos de sua saúde ser ainda mais debilitada – e até mesmo de perder a vida – em consequência dos desdobramentos do novo coronavírus no sistema de saúde. Trata-se daqueles que foram recentemente transplantados, dos que esperam receber órgãos saudáveis e dos que estão em tratamento contra um câncer. Diante da pandemia, que pode ser mortal para os que apresentam comorbidades, pacientes se encontram em um dilema perigoso: levar adiante o tratamento ou adiá-lo para evitar o risco de infecção. No caso dos que aguardam um transplante, esse adiamento pode implicar a recusa do tão aguardado órgão – e, no pior cenário, a falta dele.
O cirurgião José Roberto Salina, de 51 anos, ginecologista e mastologista que atua na rede pública e privada, disse estar passando por um momento inusitado em seus 27 anos de atuação na Medicina: ver o adiamento de cirurgias para retirada de tumores, sob risco de prejudicar o tratamento de alguns tipos de câncer. Apenas as cirurgias consideradas de emergência estão sendo realizadas na maioria dos hospitais. Tem sido assim no Hospital Estadual de Bauru, no interior de São Paulo, onde ele trabalha.
“A unidade foi transformada em unidade de referência regional para internação dos casos da Covid-19. Houve uma redução de 50% no número de cirurgias desde o remanejamento”, disse.
A situação mais delicada, entre os vários tipos de tumor é a das pacientes com câncer de ovário, que requer intervenção imediata devido à evolução rápida da doença no órgão. Há outros casos, no entanto, que são menos urgentes, como as cirurgias de reconstrução de mama, do trânsito intestinal (fechamento de colostomia), reparadoras e algumas da tireoide. “Temos de levar em conta, na hora de realizar uma cirurgia, a necessidade de internação em uma Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) – imprescindível para os casos de agravamento da Covid-19 – e também o risco de levar para uma unidade hospitalar um paciente tão sensível quanto os de câncer. Nós, médicos, nos vemos diante de um dilema, pois o tratamento de um paciente oncológico não pode parar”, explicou Salina.
Como a pandemia no Brasil ainda não escalou aos níveis observados na Itália, na Espanha e, agora, nos Estados Unidos, em que médicos têm de fazer escolhas difíceis ao definir quais pacientes terão prioridade nos leitos, os hospitais consultados pela reportagem afirmaram que os procedimentos previstos vêm sendo executados. Mas já começa a haver uma mudança na avaliação sobre a urgência dos atendimentos. O Instituto Nacional de Câncer (Inca) suspendeu alguns tipos de cirurgias, usando como critério as que não coloquem em risco a vida do paciente, como as que não são para tratamento especificamente do câncer. O hospital criou uma ala exclusiva para atendimento e internação de pessoas com câncer que contraíram ou são suspeitas de infecção por coronavírus. Chefe da oncologia clínica do Inca, Alexandre Palladino explicou que, ao ser identificado um caso suspeito, a pessoa é levada para a ala reservada e, se for necessário, internada. Os casos mais graves são transferidos para unidades de referência da rede pública. “Os pacientes devem conversar com seus médicos e seguir as orientações, que são basicamente as mesmas para o restante da população, mas devem ser seguidas com rigor por pacientes
oncológicos”, reforçou o médico.
A aposentada Antônia Matos Neri, de 86 anos, é uma das pacientes que, diante da Covid-19, começou a se questionar se valeria o risco da cirurgia. Em fevereiro, ela descobriu um câncer no pulmão. O tumor principal, no entanto, está em seu duodeno. Com a saúde já debilitada, ela teria de dar início às sessões de quimioterapia imediatamente. A filha, a servidora pública Andrea Matos Neri, ficou preocupada e explicou os riscos à mãe. “Chegamos a pensar em adiar a quimioterapia para que ela não saísse de casa ou ficasse mais debilitada, mas os médicos disseram que o risco maior do câncer é não tratar”, disse Andrea. “Optamos por fazer o tratamento em uma clínica que atende exclusivamente pacientes oncológicos, para tentar fugir dos hospitais neste momento”.
Há casos em que a pandemia paralisou o tratamento. A aposentada Maria de Lourdes Souza Matos, de 78 anos, está com um tumor na boca, descoberto há cerca de três meses. Ela, que mora na Penha, Zona Leste de São Paulo, fez todos os exames preparatórios para a cirurgia, que seria a primeira etapa do tratamento. Foi surpreendida pela pandemia e o procedimento foi suspenso pelo hospital. Sua filha, Leidiane Souza Matos, de 39 anos, já não sabe o que fazer para reverter a suspensão. “A situação de minha mãe é grave. Sabemos que o câncer não pode esperar. Vejo minha mãe sofrendo com a dor, sem poder se alimentar direito e ficando cada vez mais frágil. Eu me sinto impotente. Além de toda a preocupação com o câncer de minha mãe, ainda ficamos preocupadas com esse coronavírus”, lamentou.
Se alguns pacientes têm a opção de esperar ou ingressar em clínicas onde não haja doentes infectados pelo novo coronavírus, no caso dos que necessitam de um transplante, o leque de escolhas é quase inexistente. Dados do Ministério da Saúde revelam que, nas duas últimas semanas de março, o Brasil fez 160 transplantes de coração, fígado, pâncreas, pulmão e rim. No mesmo período do ano passado, foram 316. Uma queda, portanto, de 50%. No caso de córneas, a redução foi para menos da metade: de 603 para 229. Quando se analisam os números de órgãos que tradicionalmente são mais difíceis de entrar no sistema, o quadro é ainda mais dramático. Dois transplantes de coração foram feitos na segunda quinzena de março deste ano. No mesmo período de 2019, foram 15. Um único transplante de pulmão foi realizado quando a pandemia do novo coronavírus ganhava corpo no Brasil, ante sete na segunda quinzena de março de 2019.
Numa teleconferência, há uma semana, técnicos do Ministério da Saúde que atuam no Sistema Nacional de Transplantes ouviram atônitos os relatos que chegavam da Espanha: no país que é referência mundial na área, com o maior índice de doadores e aproveitamento efetivo dos órgãos, as doações desabaram “a quase zero”, nas palavras de quem participou da conversa. Um sentimento de preocupação extrema se espraiou por quem escutava as histórias que chegavam do país europeu. O colapso dos transplantes por lá é uma consequência direta da explosão dos casos da Covid-19, que atingiu mais de 150 mil pessoas, com mais de 15 mil mortos.
A poucos metros da Esplanada dos Ministérios, num hospital privado de Brasília, a presença de um paciente com Covid-19 na UTI levou à ampliação de restrições de cirurgias de transplante na mesma unidade e acendeu o alerta em outros hospitais do Distrito Federal, que fizeram dez transplantes de fígado em março. Na primeira semana de abril, uma única cirurgia foi feita. Em São Paulo, os transplantes de pulmão estão suspensos. Falta uma substância imprescindível para a realização das cirurgias, e a importação foi interrompida diante da falta de resolução por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Isadora Sousa Rodrigues, uma menina de 2 anos de idade, é uma das seis crianças que estão na fila do Hospital de Messejana, em Fortaleza, e que precisarão esperar mais por um coração novo. A unidade é referência para pacientes cardiopatas das regiões Norte e Nordeste. Desde o agravamento da pandemia, não há doadores. O primeiro ano de vida de Isadora foi dentro do hospital; numa UTI, foram três meses. Ela já se submeteu a sete cirurgias e quatro cateterismos, em razão de uma cardiopatia grave, ainda em fase de estudos pelos médicos. “O coração dela é imperfeito, cheio de intervenções cirúrgicas. É como se fosse um coração oco. E ela está crescendo e o coração ficando cada vez mais fraco”, disse a agente comunitária de saúde Risoneide dos Santos Sousa, de 35 anos, mãe da menina e de outro filho, de 7 anos.
O novo coronavírus agravou o medo de Risoneide. Os sentimentos se alternam entre a desesperança diante da paralisia do setor de transplante e o temor de um coração novo aparecer num momento em que os riscos estão potencializados. Antes da atual crise existir, o telefone da mãe tocou por duas vezes, com alertas de que um coração havia surgido para Isadora. Na primeira vez, uma bebê em estado ainda mais grave fora priorizada. Na segunda, houve incompatibilidade. “O coração era muito grande para o peitinho dela, contou.
Há poucos dias, os profissionais de saúde da unidade de transplante do Messejana receberam a informação de que dois corações seriam ofertados, um de um homem de 18 anos e outro de um homem de 47 anos. A primeira informação repassada pela central responsável pela regulação, ligada à Secretaria Estadual de Saúde, foi que faltavam testes para a detecção do novo coronavírus nos doadores falecidos. Depois, a central disse que uma família negou a doação, e que a outra teria de esperar entre quatro e seis horas para a realização do teste no paciente morto. Por fim, os corações acabaram não sendo aproveitados no hospital de Fortaleza. “A logística ficou complexa. Nossa recomendação é fazer somente em pacientes priorizados”, disse o médico João David Neto, que coordena a unidade de transplante do local.
Também no Ceará estão depositadas as chances de tratamento do arquiteto paulista Dorival Ortêncio, de 67 anos, que recebeu em 2018 o diagnóstico de cirrose hepática e câncer de fígado. Ele faz quimioterapia, mas precisa de um novo órgão. Em meados de março, saiu de São Paulo, onde mora, e foi para Fortaleza em busca de melhores chances de tratamento. “A única terapia e chance de sobreviver é fazendo o transplante. Mas meu medo agora foi acrescido do coronavírus. Tomo remédio de uso contínuo e faço quimioterapia. Todos esses fatores e ainda minha idade me colocam no grupo de altíssimo risco. Tenho redobrado os cuidados para evitar o contágio, mas o que eu quero mesmo é fazer a cirurgia. Minha malinha de gestante está pronta à espera de uma chance de renascimento”, brincou Ortêncio, que nutre esperança de que em breve consiga ser operado.
A maneira como a pandemia impacta o sistema de transplantes no Brasil – quase todo inserido no Sistema Único de Saúde (SUS) – é difusa. Há muitos fatores que explicam a queda das doações, o desperdício de oportunidades e a redução expressiva das cirurgias, e que justificam o temor diante do que pode ocorrer em abril, maio e junho, meses com previsão de pico para a Covid-19. Um desses fatores foi apontado por sete fontes ouvidas, diretamente ligadas ao sistema: a falta de testes para a detecção do novo coronavírus nos doadores falecidos, apesar da recomendação feita pelo próprio Ministério da Saúde e pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). A ABTO recomenda ainda que testes sejam feitos em eventuais receptores. Também faltam testes para esses pacientes.
Quando há testes, muitas vezes falta a rapidez necessária no resultado para garantir a efetividade do transplante. Um coração, por exemplo, tem um prazo de apenas quatro horas para ser transferido de um peito para outro. O Ministério da Saúde ainda tenta assegurar uma priorização de testes no sistema de transplantes, mas ainda são poucos os estados que conseguiram instituir esse fluxo. Uma nota técnica da coordenação-geral do Sistema Nacional de Transplantes, editada no último dia 25, recomenda a realização dos testes. Técnicos discutem uma revisão dessa nota, de forma a tornar a testagem uma obrigação, e não uma opção. A ideia do Ministério da Saúde é evitar “ao máximo” a realização de transplantes que podem ser adiados, pois será necessário desocupar leitos e respiradores que muitas vezes ficam ocupados por pacientes com morte encefálica, cuja conexão às máquinas por até 48 horas é necessária para garantir a extração dos órgãos. A nota técnica também proíbe a busca ativa presencial, que é o momento em que profissionais de saúde conversam com os familiares sobre a possibilidade de doação de órgãos. Ela agora deve ser feita de forma virtual ou por telefone.
Os principais hospitais do Nordeste, antes referências regionais em transplante, foram convertidos em centros de atendimento para a Covid-19. Poucas são as unidades que fazem, por exemplo, transplante de córnea. Em Brasília, 12 dos 15 centros cancelaram as cirurgias até o fim de maio. “Doadores podem estar infectados, e não é possível provar, diante da restrição de testes. Existe a possibilidade de contaminação de equipes e receptores. Assim, são plenamente defensáveis os transplantes em casos de vida ou morte, tomados os devidos cuidados. Se não existe um risco tão grande, é melhor esperar. Até porque não haverá solução caso todos os leitos de UTI estejam ocupados com pacientes com Covid-19”, disse o médico Paulo Pêgo, integrante do conselho deliberativo da ABTO e diretor da Divisão de Cirurgia Torácica do Instituto do Coração (Incor) da Universidade de São Paulo (USP), com atuação em transplantes de pulmão.
Neste meio tempo, Ademir Pires, de 51 anos, tem medo de morrer. Portador da doença de Chagas, ele teme a característica mais traiçoeira do mal, descoberta por ele há três anos: a morte súbita. Dois irmãos já morreram assim, após infartos. Pires, a mulher e quatro filhos deixaram Belém, no Pará, e foram para Brasília atrás de um coração novo. O tratamento no Instituto de Cardiologia do Distrito Federal (ICDF) já dura dois anos, tempo em que está numa lista de espera, num incontável número de internações. Da aposentadoria de um salário mínimo, única renda da família, são descontados R$ 327 todo mês, para pagamento de um empréstimo consignado de R$ 8 mil que custeou as passagens que os levaram da Região Norte à periferia de Brasília. O novo coronavírus paralisou tudo. “Às vezes me dá vontade de voltar e morrer lá. Se o coração já não aparecia antes, qual a chance de aparecer agora?”

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