A CULTURA EM XEQUE
Como as atuais mudanças nas políticas artísticas do país estão mexendo com a vida dos profissionais que trabalham nesse setor

Nos últimos sete anos, Daniela Mazzilli, de 33 anos, trabalhou com formatação de projetos culturais para editais e leis de incentivo. Nesse período, ela ajudou a aprovar e levantar recursos para mais de 30 produções artísticas. A carreira como produtora cultural ia de vento em popa.
Até o início deste ano, quando dois e-mails mudaram os ventos. O primeiro chegou em janeiro, anunciando que o contrato para desenvolver uma série, iniciado ainda em 2018 havia sido cancelado. O segundo veio três meses depois e informava o cancelamento, por tempo indeterminado, de um importante edital de cinema. “Passamos meses preenchendo formulários e reunindo documentos. Dez dias antes de o processo ser encerrado, o governo anunciou a suspensão”, diz. “A sorte é que trabalhamos com quatro projetos ao mesmo tempo, em diferentes estágios, para haver equilíbrio no cronograma”, diz a gaúcha.
As interrupções abruptas, que pegaram Daniela de surpresa, são consequência da atual crise na Agência Nacional de Cinema (Ancine) – que regulamenta o setor audiovisual no país – e dão o tom do que acontece na área cultural neste momento. Em março, o Tribunal de Contas da União (TCU) questionou a metodologia da prestação de contas da Ancine e ameaçou congelar os recursos do Fundo Setorial do Audiovisual. Em resposta, o atual diretor-presidente, Christian de Castro, suspendeu tudo que estava em andamento, alegando “segurança jurídica”. Ao saber das paralisações de todos os projetos e editais, o TCU convocou o diretor e oito assessores da agência fomentadora para se explicarem. No final de maio, quando esta reportagem foi concluída, o imbróglio seguia, apesar de a Ancine ter anunciado que voltaria a operar normalmente.
Exagero ou não, a confusão tem levado alguns profissionais a comparar o cenário atual ao do governo Collor. Em 1990, no início de seu mandato, o então presidente extinguiu a Embrafilme e o Concine, dois órgãos importantes, causando um apagão no cinema nacional
Daniela e a companheira, Letícia Vieira, sua sócia na produtora Primeira Fila, que fica em Porto Alegre (RS), já estão se preparando para o pior. Como o pró-labore dos próximos meses deve ser menor, elas já reavaliam o orçamento pessoal, revendo custos fixos da casa, por exemplo. “Nossa sensação é que haverá uma onda de cortes. Temos planos até o final deste ano, depois disso não sei se iremos para outras áreas dentro do setor ou se venderemos sanduíche”, diz.
Assim como ela, muitos profissionais que trabalham com arte amargam com a incerteza. Segundo levantamento mais recente da organização sem fins lucrativos que promove o desenvolvimento da indústria do estado do Rio de Janeiro havia 64.863 pessoas empregadas diretamente pela cultura em 2017. Mas o número, de acordo com especialistas, é maior. Isso porque as produções culturais, em geral, são empregos sazonais. “Há uma carência de métricas para esse setor no Brasil. Infelizmente, existem poucos estudos e números que nos ajudem a argumentar a favor”, afirma Ana Paula Souza, doutora em sociologia da cultura pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Áreas como cinema, teatro, dança e artes plásticas começaram a acumular perdas maiores desde janeiro deste ano, quando o presidente Jair Bolsonaro (PSL) extinguiu o Ministério da Cultura e, no lugar, criou o da Cidadania, que concentra Cultura, Esporte e Desenvolvimento Social.
Para Miguel Jost, pesquisador de políticas públicas para a cultura na PUC-Rio, a manobra reduziu a importância da pauta na agenda nacional. Hoje, segundo ele, há uma paralisia nas estruturas responsáveis por fomentar a arte no país. Numa pasta tão ampla, é evidente que a cultura passou a ter menor relevância. Não há informações claras sobre quais são os planos do governo para o segmento. “E isso gera insegurança em toda cadeia produtiva, que envolve desde a costureira que produz os figurinos até os serviços de catering para alimentação de artistas e funcionários
Por duas semanas, procuramos insistentemente tanto o Ministério da Cidadania quanto a Secretaria Especial de Cultura. O intuito era saber quais são os objetivos da pasta para o mercado cultural em 2019. Ao todo, enviamos 20 e-mails e fizemos dezenas de ligações e o secretário especial da Cultura Henrique Medeiros Pires, chegou a agendar uma entrevista, mas depois a cancelou sem justificativa clara. Questionada, a pasta informou que o único autorizado a falar sobre as atividades do setor cultural é o ministro da Cidadania, Osmar Terra. Ele, no entanto, declinou o pedido de entrevista e informou, via assessoria, que falaria numa próxima oportunidade”.
LEI ROUANET NA BERLINDA
O principal movimento de Osmar Terra, até agora, foi reestruturar a Lei de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet. Criada em 1991, ela permite que empresas direcionem até 4% do imposto devido (6% para pessoas físicas) a projetos culturais. No final de abril, o governo anunciou que reduziria o teto de captação da lei. Se antes artistas e produtores conseguiam levantar até 60 milhões de reais para realizar shows, musicais e exposições, agora o limite é de 1 milhão. O valor que as empresas podem abater também encolheu: de 40 milhões para 10 milhões de reais.
Mexer na mola mestra da indústria cultural brasileira abalou as estruturas do segmento. Sozinha, a Lei Rouanet faz o setor movimentar cerca de 1 bilhão de reais em captação por ano. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostrou que, a cada 1 real investido por meio do mecanismo, pelo menos 1,59 retorna à sociedade em forma de empregos, contratações de serviços e impostos.
As novas medidas furam justificadas em um vídeo publicado pelo ministro Osmar Terra no Twitter em 22 de abril. “Os brasileiros estão cansados de ouvir falar nos abusos da Lei Rouanet. Vamos enfrentar concentração de recursos públicos, disse ele. E concluiu: “Com menos dinheiro, mas melhor distribuídos, teremos muito mais atividades culturais e artistas apoiados”.
A concentração dos recursos em grandes produtores do eixo Rio-São Paulo é, de fato, um problema apontado há anos por estudiosos do sistema. “A Lei de Incentivo à Cultura é um instrumento liberal de mercado. Logo, reproduz a estrutura financeira do país. Quem patrocina musical tem interesse em dialogar com esse tipo de público e não migrará de atividade”, diz Ana Paula, da Unicamp. Na visão dela, o teto de 1 milhão de reais não vai resolver essa assimetria. Se o governo quer apoiar produtores de outras regiões, tem de criar políticas que incentivem a descentralização dos recursos. Caso contrário, o dinheiro continuará nas mãos de poucos.
É por isso que, a princípio, acredita-se que a redução do valor de patrocínio não terá efeito prático para a maior parte dos artistas independentes. Pesquisadores da FGV analisaram todos os projetos financiados pela Lei Rouanet desde 1993 e concluíram que nem 19 deles teve aporte acima de 80.000 reais. Cerca de 90% das iniciativas captaram de 1.000 reais a 10.0000 reais, sendo que a maioria esmagadora dos proponentes não arrecadou nem 1 real. Em 2017, dos 54.000 projetos aprovados pelo extinto Minc, apenas 2.800 alavancaram recursos.
Quem concentra a atenção das companhias, no fundo, são os grandes espetáculos, como os musicais. É esse tipo de atividade que deve ser afetado pelo teto de 1 milhão de reais.
A questão é que esses eventos têm equipes consideráveis e movimentam toda uma gama de profissionais, de figurinistas a maquiadores, passando por músicos e técnicos de som e luz. “Só na cidade de São Paulo, no ano passado, o setor teatral gerou 80.000 empregos diretos. Os impactos são significativos”, diz Gabriel Paiva, presidente da Associação de Produtores Teatrais Independentes (APTl).
O ator, diretor e produtor Bruce Gomlevsky, de 44 anos, já sente a retração dos investimentos na área. Neste semestre, ele teve duas temporadas de peças canceladas: Memórias do Esquecimento, monólogo que dirigia e interpretava, e Um Tartufo, peça também dirigida por ele e inspirada no clássico de Moliere. Os espetáculos, que tratam, respectivamente, da ditadura militar e de conflitos religiosos, seriam sediados por um teatro público da capital carioca, mas o espaço cancelou-os de modo repentino.
Em 2018, Bruce já havia tirado 100.000 reais do próprio bolso para custear as mesmas apresentações. Com 25 anos de experiência nos palcos, diz que só os apaixonados conseguem enfrentar tantos altos e baixos. “Não tenho imóvel próprio e sustento dois filhos. Já me endividei, já paguei os débitos, já juntei e já perdi dinheiro. A vida do artista no Brasil é uma montanha-russa de emoções”. Ele afirma que só consegue pagar as contas porque se desdobra em diversas frentes. “Sou ator, diretor, produtor, compositor, captador de recursos, professor de teatro e tradutor”. Nos últimos quatro anos, Bruce atuou em quatro novelas e duas séries da TV Globo, emissora onde segue contratado para a série de terror Desalma, protagonizada por Claudia Abreu e cuja estreia está prevista para o segundo semestre.

EFEITO CASCATA
Além das mudanças na Lei Rouanet, há outros fatores inquietando os profissionais da cultura, como possibilidade de corte nos repasses ao grupo composto de Sesc, Sesi Senai entre outros.
Pouco antes de assumir o Ministério da Economia, em dezembro, Paulo Guedes disse que era preciso “meter a faca nos sistemas”. Em maio, Jair Bolsonaro deu o primeiro passo rumo à promessa e assinou um decreto que obriga essas entidades a detalhar gastos com salários e serviços prestados à sociedade. Além disso, grandes empresas públicas anunciram contenção em seus programas de marketing cultural. A Petrobras, por exemplo, cancelou o patrocínio de festivais. Outras estatais também reduziram seus investimentos. No final de maio, a Caixa Econômica Federal informou que não manteria o custeio da versão itinerante do Festival de Cinema de Vitória, o tradicional cinema na Praia. A instituição também encerrou a parceria com o consagrado cinema de rua Caixa Belas Arte na capital paulista. O espaço, que possui seis salas, só continuará com as portas abertas porque conseguiu patrocínio da iniciativa privada – cervejaria Petra, do Grupo Petrópolis, fechou contrato de cinco anos para manter o local.
Alegando a necessidade de “rever políticas internas”, os Correios, que já tinham derrubado pela metade o valor dos investimentos em cultura entre 2017 e 2018, não fizeram nenhum aporte na área em 2019. Para piorar, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) pisou no freio. De janeiro a maio, o órgão aportou 25,8 milhões de reais no segmento – valor bem mais baixo que o dos últimos anos. Como comparação, no ano de 2018 o BNDES destinou 858 milhões para atividades artísticas.
