O MITO DO AMOR ROMÂNTICO
Transformada em mercadoria de consumo, a paixão não tem mais a ver com o destino, o risco ou o enfrentamento
O Romantismo é uma história de sucesso. Porque, a rigor, ele é um movimento literário, artístico e filosófico que se anuncia no final do século XVIII e domina parte do XIX, depois se tornando quase algo kistch, piegas, desdenhado pelo bom gosto. Mas consegue uma enorme sobrevida popular, passando a indicar uma atitude, uma conduta, uma postura que desfrutam enorme simpatia. Assim, quando falamos hoje em romantismo, quase sempre entendemos uma inclinação para o amor, para a entrega, enfim, para o melhor de que somos capazes.
Porque o movimento romântico se baseou numa grande ideia, que 200 anos atrás revolucionou a Europa, a ideia de que o coração revela a verdade. Daí decorrem dois pontos muito importantes. O primeiro é que a sociedade é falsa. Ela é feita de convenções. Conspira contra a felicidade. Já o segundo ponto é que a verdade se encontra no íntimo do indivíduo, no seu coração.
Nada disso significa, é bom dizer, o triunfo de algum tipo de “individualismo burguês”. O romântico é um rebelde. Ele desafia a sociedade. Na intimidade, encontra uma verdade subversiva. É impossível ser verdadeiro e, ao mesmo tempo, obedecer às leis vigentes.
É claro que haverá românticos politicamente conservadores, como foi Victor Hugo em seus começos, ou Chateaubriand; mas o ímpeto do movimento é contestar a ordem estabelecida. Os valores impostos socialmente são falsos. Só é válido o que provém do coração.
Rousseau assim coloca na voz de seu “vigário saboiano” uma profissão de fé que reza mais ou menos o seguinte: o único critério de verdade que levarei em conta será o assentimento de meu coração às ideias que me sejam propostas. Descartes usava, como critério para a verdade, as ideias claras e distintas, submetendo as portanto ao crivo da razão; Rousseau vai lê-las pelo coração – o que significa, também, que as questões cuja solução seja inútil para a vida humana ficarão em aberto.
Insisto num ponto: o conflito é radical, entre a pessoa e a sociedade. Sempre há aqueles que são conformistas, mas quem escutar mesmo a voz de seu coração, a intimidade, não terá meios de aguentar a hipocrisia social. O amor é a grande experiência que vai nesta direção. Por isso, romantismo celebra o amor-paixão.
Com sua enorme intensidade, ele faz com que nada mais valha a pena, afora essa revelação amorosa. “De que vale o céu azul e o sol sempre a brilhar, se você não vem e eu fico a te esperar? diria Roberto Carlos na década de 70. De que vale a posição social, de que vale a beleza, de que vale tudo o mais se o sentido que a vida tem a partir do amor está faltando? Ou como canta Natalie Wood em West side story. “
feel prety (…) and I pity any girl who isn’t me tonight (“eu me sinto linda e tenho pena de toda garota que não seja eu esta noite)”. A vida muda, com o amor apaixonado. A intensidade dele é a garantia de sua verdade. E a verdade está dentro dele. Ora, o que dois séculos desta experiência nos ensinam? Primeiro, hoje a paixão está na moda. Quando chega o Dia dos Namorados, por exemplo, as entrevistas até de gente inteligente celebram o quanto é bom estar namorando, como é bom amar (como se as pessoas sem parceiro fossem infelizes ou culpadas).
Mas esta paixão não é mais a romântica de primeira safra. No Romantismo, era um amor-paixão único pela vida toda. Não dava para se apaixonar, ou para amar, duas vezes. Leiam a literatura. O amor de verdade geralmente não dava certo, e a pessoa morria.
Hoje, não. O que se recomenda é que você ame e, se não der certo um amor, vá para outro, e assim por diante: um dia você acertará. Ou seja, saiu o trágico, entrou um certo prosaísmo da paixão, se posso dizer assim. Ela não mata mais.
Stendhal, que conseguiu o milagre de celebrar a paixão e ao mesmo tempode ser crítico da pieguice, tem uma frase terrível: “Hoje [1820], é só do último andar que se mata de amor”. Queria dizer que só as empregadas domésticas, que viviam no sexto andar em chambres de bonne se suicidavam por amor; quem morava mais baixo, isto é, possuía mais statussocial, não amava a esse ponto.
Pois hoje temos uma espécie de síntese: por um lado, é in estar apaixonado; por outro, esta paixão não pode contradizer nossos interesses. Os apaixonados de hoje sabem o que fazem. Eles não perdem a vida nem a razão. A paixão deixou de ser trágica – e deixou de ser subversiva.
Se posso fazer um balanço, lamento que ela tenha deixado de ser subversiva – e acho ótimo que tenha deixado de ser trágica! Sei que as duas mudanças vieram juntas, e é difícil separá-las, mas tentemos um pouco, para a análise.
É difícil hoje um estudioso do amor ainda acreditar que a paixão diga mais verdade do que outras formas de amor. Quando Stendhal escreve seu Do amor e explica quais são os tipos dele, contrasta o amor apaixonado (que é o genuíno, a seu ver) com os jogos amorosos do século XVIII, praticados por uma aristocracia que incluía o namoro e o adultério entre os esportes da vida cortesã. Portanto, o amor apaixonado está acima de qualquer outro. Mas não é assim que hoje se vê a coisa.
A tendência atual é considerar que a paixão engana. O termo “paixão” originalmente designava o modo como a alma, ou a psique, é afetada de fora, ou seja, como ela é passiva diante de impressões que recebe (passivo e paixão vêm do grego pathos). E ele volta, em nossos dias, a ser visto como algo mais negativo que positivo. Antes do romantismo falava-se em “escravos das paixões”, para as pessoas cuja razão não era forte o bastante para vencer a passividade emocional.
Com o Romantismo, a paixão passou a ser emancipadora – ainda que custasse a vida. Ao contrário do tempo anterior, a paixão dizia a verdade e libertava. Mas, em nossos dias, tende-se de novo a apontar quantos equívocos a paixão engendra – e, portanto, ela se torna, de novo, escravizadora. Por isso se procura, diante dela, algo mais forte, mais denso. A palavra ”razão” não é talvez tão popular em nosso tempo para designar esse antagonista da paixão, mas pelo menos sabe-se vagamente que o amor é mais que a paixão.
Digamos, então: hoje acreditamos que o amor é menos intenso, menos brilhante – mas mais consistente que a paixão. Talvez seja por essa razão que perdemos o caráter trágico do amor romântico. O romantismo leva bem pouca gente a morrer de amor atualmente.
Aliás, na verdade não estamos falando aqui do que as pessoas vivem, mas daquilo que uma cultura bastante difundida sinaliza como sentimento recomendado. Um dos principais fatores de tristeza é que os sentimentos que de fato vivenciamos batem muito pouco com as recomendações da mídia.
Ou seja, se nos recomendam que amemos apaixonadamente, mas que tenhamos um luto muito curto para cada fim de caso e partamos depressa para outra história, a pergunta é: quantas pessoas conseguem isso? Para cada estrela de TV, que quando termina um namoro logo engata a outro, quantas pessoas comuns penam, sofrendo um luto que se torna indizível (por que ninguém aguenta ouvir falar dele) e não correspondendo ao ideal da vida sempre intensa, sempre apaixonada?
Vejam como as revistas tratam as tragédias amorosas das pessoas glamourosas. É um desserviço público! Ensinam as pessoas a acreditar que a vida é uma sucessão de gemas preciosas, um sem-fim de amores intensos. A questão é que isso funciona para muito poucos, e de modo geral só para quem aceita viver as coisas na superfície, na aparência.
Por isso o amor romântico hoje se tornou um mito, no sentido de uma fantasia de algo que move as pessoas, mas sem ser verdadeiro. É como se “romântico”, no caso, reduzisse a força do substantivo “amor”. Antes de aumentar essa força! Mas hoje chamamos de amor algo mais denso, mais forte. Só que esse algo não tem mídia.
Não há graça em fazer uma novela ou um filme sobre uma longa história de amor. Ela se torna banal. Ela não tem o impacto da paixão, que nos faz enfrentar tudo o que é obstáculo. O problema é que com essa mídia da paixão acabamos bastante despreparados para entender nossos próprios sentimentos, nosso próprio modo de agir e sentir. E sabemos muito pouco o que é o amor. Talvez hoje se saiba mais sobre a sexualidade do que sobre o amor. O que o diferencia da paixão, do desejo sexual (que está perto da paixão) e da amizade? Temos uma certa noção de que o desejo intenso e a paixão não convergem com a amizade. Esta é mais generosa, aqueles são mais egoístas.
Agora, se o amor é visto pela mídia como meio “sem graça”, o que dizer da paixão amorosa? Ela se torna produto de primeira necessidade, mas, com isso, também vira prosaica. Se posso trocar de pessoa amada com facilidade, se não vivo a dor imensa da perda, se o luto se perdeu, então o que resta do amor romântico? Este não era só a intensidade alegre. Era, também e sobretudo, morte e luto. Stendhal lembra que os trovadores provençais, que na Idade Média foram os primeiros a difundir um ideal que iria dar mais tarde no amor romântico, falavam em amor, mas, em amor-morte.
Dizia acima que a perda do caráter trágico é positiva – porque não precisamos morrer só porque nos enganamos ou fomos enganados. É bom, assim, que a paixão tenha perdido muito de seu vínculo preferencial romântico com a verdade. Hoje a verdade está mais perto deste continente ignorado que é o “amor”, mas que não é paixão.
Contudo, o fim do caráter subversivo é de lastimar. O que era belo no amor romântico era o enfrentamento das potências deste mundo. Julien Sorel, o ambicioso de O vermelho e o Negro, de Stendhal, ou Fabrício Dei Dongo, o desapegado rapaz da Cartuxa de Parma, do mesmo autor, eram capazes, ambos, de desprezar as riquezas, o poder e a própria vida, em nome de um valor mais alto. Este valor mais alto lhes foi trazido pela paixão. A paixão foi o meio de mostrar este valor.
Mas o valor, propriamente dito, tinha a ver com uma postura de verdade em face da vida. Ele fazia desqualificar tudo o que fosse aparência. Pois bem, essa disposição para enfrentar, em nome da verdade, os poderes deste mundo se separou por completo do que hoje é a paixão. A paixão de hoje é mercadoria de consumo. Ela não tem mais a ver com o destino, com os riscos, com o enfrentamento. E por isso o fim do amor romântico é também uma pena. Pode ser o final da disposição para desafiar os poderes.