QUANDO MORRER É PARTE DA CONSCIÊNCIA DO DEVER
Não é pobreza ou baixa escolaridade que provocam atentados suicidas, mas sobretudo a humilhação e a obediência

Hoje, Nabil Arir está quase esquecido. Na manhã de 26 de outubro de 2000, aos 24 anos, inspetor de unia escola para crianças deficientes na Faixa de Gaza, ele foi de bicicleta a um posto do exército israelense e, lá chegando, detonou a bomba que o mandou pelos ares. Não conseguiu o que pretendia, porque acabou sendo a única vítima de seu feito.
O que restou de Arir foi um retrato em escala maior que a natural num muro da cidade de Gaza. Na representação, Arir, em uniforme de camuflagem, ativa o detonador de uma bomba e, a seu redor, torres de vigia do exército israelense consomem-se em bolas de fogo. Não se pode dizer que seu ato tenha sido irrelevante. Na verdade, marcou o início dos atentados suicidas da segunda intifada palestina, que durou até fevereiro de 2005. Um ser humano destrói a si mesmo com o intuito de matar outros. Ele quer matar para espalhar medo e terror, seja por motivo político ou religioso. O que o leva a fazê-lo é algo que ainda permanece em grande medida obscuro. Depois dos atentados nos Estados Unidos em setembro de 2001, políticos do mundo todo declararam que o solo fértil para os ataques suicidas estaria na pobreza e na deficiência educacional, e a melhor maneira de combate los seria, portanto, acabar com a situação de miséria. Nesse sentido, o presidente americano George W. Bush declarou no começo de 2002: “Combatemos a pobreza porque a esperança é a resposta ao terrorismo”. Nabil Arir teria sido, então, uma exceção: teve uma formação razoável, desfrutava de segurança financeira, estava socialmente integrado- e, de resto, não era nenhum psicopata.
O psicólogo Scott Atran, pesquisador do Instituto Jean Nicod do Centro Nacional de Pesquisa Científica, em Paris, e da Universidade de Michigan, traça um psicograma bem diferente dos praticantes de atentados suicidas. No início de 2003, ele avaliou diversos estudos a respeito dessa questão em artigo para a revista Science. De acordo com sua avaliação, a imagem predominante que temos dessas pessoas dispostas a extremos está totalmente equivocada. Arir é quem representa o verdadeiro protótipo do moderno perpetrador de atentados suicidas. “Não sei de nenhum atentado suicida em tempos mais recentes que tenha sido praticado por uma pessoa solitária, psíquicamente instável e pobre”, afirma Atran.
Tampouco a opinião pública árabe dá crédito àquela imagem. Um líder da Irmandade Muçulmana escreveu num semanário egípcio que um atentado suicida não teria nenhum sentido se cometido por alguém cansado da vida. A motivação é outra, bem diversa, “Quem se dispõe ao martírio, sacrifica-se por sua religião e por sua terra”.
Baseados nas trajetórias de vida de 129 combatentes do Hizbollah mortos no Líbano, Alan Krueger, da Universidade Princeton, e Jida Maleckova, da Universidade de Praga, descobriram em 2002 que a disposição para o martírio aumenta – em vez de diminuir – quanto maior o nível de educação e a condição econômica. Isso explica também aquele entusiasmo popular no Oriente Médio que nos é estranho, jovens colecionam retratos dos suicidas da mesma forma como, em outros países, garotos da mesma idade colecionam figurinhas de jogadores de futebol. A morte transforma os terroristas em heróis da sua geração.
Psiquiatras costumam suspeitar de enfermidades psíquicas quando se trata de apontar o que leva alguém ao suicídio. Aqueles que praticam atentados suicidas, porém, gozam claramente de saúde mental perfeita. São relativamente jovens, quase todos solteiros e do sexo masculino. “Isso aponta para uma acentuada suscetibilidade a líderes carismáticos e a mensagens salvadoras”, acredita Thomas Bronisch, estudioso do suicídio no Instituto Max Planck de Psiquiatria, em Munique. Os praticantes de atentados suicidas passam, assim, por uma espécie de lavagem cerebral que – contando com o apoio da opinião pública – começa cedo. Aí as instituições desempenham papel central, escolas, organizações juvenis e mesquitas.
Em torno delas, grupos terroristas, como o palestino Hamas, põem-se à espreita de candidatos apropriados, de 12 anos, ou menos, até 17. Uma vez escolhidos, “treinadores” os preparam em grupos pequenos, de quatro a seis jovens de mesma idade que, ao longo de anos, desenvolvem-se juntos, como uma família. Então, mediante a leitura continuada do Alcorão, da manipulação psíquica e da disciplina, transformam se em ferramentas de destruição.
No máximo, somente em um ou outro caso isolado os jovens não sabem qual o propósito de seu treinamento. De modo geral, ficam sabendo logo cedo do que se trata. Além disso, aprendem que seu sacrifício não significa a morte, mas, ao contrário, o ingresso à vida no Paraíso, onde seus pecados serão perdoados e aonde poderão até mesmo levar consigo parentes e amigos, para junto do trono de Alá. Não admira que não faltem voluntários aos grupos terroristas.
Mas o que leva povos a sancionar e patrocinar atos de tamanho desvario? A prática parece a Atran um “mecanismo de sobrevivência”, que conduz à “ação sob condições em geral paralisantes”. Em situações sem nenhuma perspectiva, acrescenta o psicólogo, uma pessoa é capaz de se valer de meios desesperados, na esperança de que o adversário, mais forte, possa vir a pensar duas vezes, a despeito de sua superioridade. Desse modo, religião, ideologia e lealdade absoluta à parte, também a postura em relação à própria sobrevivência se altera, observa.
Em sua opinião, métodos semelhantes de doutrinação são igualmente empregados em países do Ocidente. “Os produtos da indústria do fast food e da pornografia também vão diretamente ao encontro das necessidades humanas inatas – de gordura, açúcar ou sexo. Mas o que fazem, então, é manipular nosso desejo natural até torná-lo nocivo, chegando mesmo, por vezes, a nos destruir.”
O mais importante, porém, nos atentados suicidas crê Atran, é o senso de dever de seus perpetradores – dever para com seu povo e sua fé. O psicólogo lembra que, já na década de 60, experimentos mostraram que as pessoas são capazes de muito do que é tido normalmente como condenável pelos padrões éticos, Stanley Milgram, psicólogo da Universidade de Yale, descobriu que, sob determinadas circunstâncias, estudantes obedeciam mesmo a ordens destrutivas – quando, por exemplo, um “professor” os incumbia de administrar eletrochoques cada vez mais fortes em colegas, a fim de melhorar a capacidade deles de reter pares de palavras na memória. A maioria seguiu essa instrução inusitada, bastando para tanto que o instrutor em questão lhes garantisse que assumiria a responsabilidade por tal ato. Pouco importou, assim, que gritos ecoassem atrás da porta trancada de uma sala de experiências fictícia. Também aí a motivação dos participantes decerto não se constitui num desejo selvagem de matar, mas do sentimento de dever frente a uma autoridade. No Oriente Médio, um senso semelhante de dever estimula o ambiente social entre os suicidas em formação, onde impera a sensação da injustiça histórica, da sujeição política e da humilhação social por outros poderes, aí o atentado suicida se torna o recurso preferido no embate político.
Os palestinos enfrentam diariamente essa desesperança que tudo impregna. Em seu estudo com jovens muçulmanos durante a primeira intifada (1987-1993), o psicólogo Brian Barber, pesquisador da Universidade do Tennessee, constatou que quase todos eles possuíam experiência pessoal com a violência. A maior parte havia atirado pedras na Faixa de Gaza, a maioria tinha sido vítima de violência armada por parte do exército israelense. Isso traz consequências, quase todos os entrevistados apoiavam a atuação dos ativistas militantes. Ser ferido na luta contra soldados israelenses é considerado por esses jovens uma distinção. E a morte como mártir lhes promete a investidura como cavaleiro para todo o sempre.
Corno, então, prevenir esse mecanismo fatal? ”As medidas de retaliação maciças só conseguiram o contrário até agora”, crê Atran. Elas apenas acentuaram ainda mais o sentimento de repressão entre as pessoas. Na opinião dos especialistas, é provável que tampouco ajude o isolamento de grupos étnicos e religiosos e as investidas militares preventivas contra países que apoiam organizações terroristas. Importante seria deter a crescente demonização feita de propaganda política e religiões. Se houvesse um Estado palestino, os demagogos teriam uma razão a menos para exigir dos jovens a morte como mártires.

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