O DEUS INTERDISCIPLINAR
Neurobiólogos procuram no cérebro pelo todo-poderoso. Mas apenas a estreita colaboração com as ciências da mente poderá tornar mais compreensíveis a religião e a experiência religiosa

“O Senhor é meu pastor; nada me faltará.
Deitar-me faz em pastos verdejantes; guia-me mansamente a águas tranquilas. Refrigera a minha alma; guia-me nas veredas da justiça por amor do seu nome. Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte…” O jovem estudante de química segue repetindo os versos do Salmo 23, embora se defina como uma pessoa não religiosa. Não está sentado num banco de igreja, mas repousa imóvel numa maca, a cabeça enfiada num tubo de metal onde, nesse exato momento, ímãs gigantescos circundam seu cérebro. Não, Christian S. não foi sequestrado por extraterrestres, ele se encontra no laboratório da Universidade Heinrich Heine, em Düsseldorf, Alemanha.
Ali, em 2000, a neurocientista Nina Azari realizou um experimento com seis ateus declarados e seis crentes – cristãos praticantes e membros de uma comunidade evangélica independente. Todos apresentaram-se voluntariamente. A questão crucial era, o cérebro do crente trabalha de modo diferente daquele do não crente?
Investigar se a “religiosidade” possui ou não um correlato cerebral constitui o centro de um ramo recente da pesquisa que, com certa infelicidade, é chamado de neuroteologia. A designação decerto remonta a James B. Ashbrook, Seminário Teológico do Garret -Evangelical, de Evanston, no estado americano de Illinois. Em 1984, esse estudioso da religião publicou um artigo na revista científica Zygon, intitulando-o “Neurotheology, the working brain and the work of theology”. Desde então, o conceito de neuroteologia circula pelos meios especializados. Contudo, tendo se transformado em palavra da moda em plena ascensão, ela confunde mais que explica, trata-se de uma designação problemática. O prefixo neuro parece, de fato, indicar uma subdivisão bem definida do conhecimento, da mesma forma que, por exemplo, astrofísica designa um ramo da física. Mas, ao contrário do que o nome sugere, a neuroteologia não trata de teologia, no sentido clássico do termo (ver glossário abaixo), e sim da investigação, por meio de técnicas neurobiológicas modernas, de determinados processos cerebrais presentes em experiências “religiosas”.
Como, aliás, no laboratório de Nina Azari. A fim de seguir a pista das bases neuronais das experiências religiosas, a pesquisadora solicitou a seus voluntários que lessem e relessem não apenas o Salmo 23, mas também uma quadrinha infantil e insossas instruções para a utilização de um cartão telefônico. Ao mesmo tempo, a atividade cerebral dos voluntários a cada leitura foi registrada com o auxílio da tomografia por emissão de pósitrons (PIT). Nesse procedimento de diagnóstico por imagens, a atividade de regiões isoladas do cérebro pode ser visualizada graças a marcadores radioativos.
Um teste psicológico prévio já havia atestado valores semelhantes para todos os voluntários no que se refere a seu grau de satisfação geral com a própria vida. Contrariamente aos céticos, no entanto, os seis crentes informaram possuir em seu passado uma experiência decisiva de conversão, algo que mudara sua vida.
O resultado da experiência mostrou que os ateus reagiram de forma emocional à tão familiar quadrinha infantil, o que se revelou pela elevação de atividade em seu sistema límbico – ou seja, na região cerebral responsável por nosso universo emocional. Aos cristãos, por sua vez, recitar a quadrinha proporcionou prazer menor, segundo declararam. Em compensação, e à diferença dos descrentes, a repetição continuada do salmo bíblico alçou-os a um “estado religioso”, como o denominaram. Nesse caso, áreas bem diferentes do cérebro foram ativadas – mais especificamente, o circuito frontoparietal do córtex cerebral, necessário aos processos do pensamento. Conclusão, a experiência religiosa é evidentemente, e antes de mais nada, um processo mental.
Mas, porque, então, ela é sentida de forma tão imediata? Cristãos praticantes e adeptos de outras religiões têm uma base de saber alimentada por sua crença. Ao se verem numa situação a princípio desconhecida, em que não está claro o que se deseja deles ou o que devem fazer, buscam apoio – como, de resto, todas as outras pessoas. O que ocorre é que, nos crentes, intensifica-se a disposição de enxergar a situação momentânea num contexto religioso, seja ele de que natureza for.
No experimento mencionado, o impulso para tanto foi fornecido pelo Salmo 23 da Bíblia, que, argumenta Azari, desempenha papel importante para cristãos. Em retrospecto, os crentes aplicam o carimbo de “religioso” à situação indistinta da experiência de laboratório. Em razão de sua receptividade básica para experiências religiosas, eles assentem de forma imediata. Com os ateus é diferente, quem não possui abrigo em tal sistema religioso tampouco poderá recorrer a ele para interpretar a situação. A essas pessoas, portanto, o Salmo não diz nada em especial e, assim sendo, não desencadeia um estado religioso. Por trás das experiências religiosas estaria, portanto, nada mais que um processo cognitivo? Penso, logo creio?
O neurobiólogo Jeffrey Saver, da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, vê no sistema límbico o deflagrador das experiências religiosas. Essa região do cérebro vincula experiências vividas a nosso universo emocional. Vemos, por exemplo, um filho marcar gol numa partida de futebol e compartilhamos com ele da alegria por seu sucesso. Nas experiências religiosas intensas, o sistema límbico mostra-se particularmente ativo, conferindo grande peso ao vivido. Talvez por isso essas experiências sejam tão difíceis de descrever, são vividas com intensidade tão extraordinária que fogem a qualquer descrição. Apenas o conteúdo do vivido e a sensação de ter passado por uma experiência importante admitem expressão verbal.
Uma outra tentativa de decifrar os fundamentos neurobiológicos da religiosidade resultou da leitura de textos antigos pelos neuroteólogos. Já Hipócrates, no século V a.C., caracterizava a epilepsia como doença sagrada. Quem, senão Deus, poderia jogar no chão seres humanos, contorcê-los e até cegá-los temporariamente, como costuma ocorrer nos ataques epiléticos?
Também hoje médicos aventam a possibilidade de distúrbios epiléticos terem sido os deflagradores de certas experiências de conversão transmitidas até nós. Como no caso de Maomé, por exemplo, a quem Alá falou por intermédio de um anjo, ou no da heroína francesa Joana d’Arc, a quem uma voz divina ordenou que libertasse a França dos ingleses. Também sobre o apóstolo Paulo pesa a suspeita da epilepsia. “Mas, seguindo ele viagem e, aproximando-se de Damasco, subitamente o cercou um resplendor de luz do céu, e, caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: Saulo, Saulo, porque me persegues? Ele perguntou,
Quem és tu, Senhor? Respondeu o Senhor, Eu sou Jesus, a quem tu persegues, mas levanta-te e entra na cidade, e lá te será dito o que te cumpre fazer” (Atos 9. 3-6).
Aos olhos de muitos intérpretes modernos, o que se descreve aí, de modo muito vívido e preciso, é a conhecida epilepsia. Terá sido Saulo, portanto, um paciente neurológico que, a caminho de Damasco, sofreu um ataque de particular intensidade, tomando-se assim um precursor do cristianismo para além das fronteiras de Israel?
Observações realizadas hoje em epiléticos parecem sugerir que uma pequena região de seu cérebro responde por um papel excepcional no tocante a experiências religiosas, o lobo temporal. Para ali convergem todas as informações sensoriais, motoras e espaciais do corpo. Em regiões mais profundas do lobo cerebral encontra-se o hipocampo, componente do sistema límbico que constitui uma espécie de posto de censura na cabeça, é ele que decide se uma informação será armazenada ou esquecida.
Em meio à torrente contínua de sinais que nos chegam do mundo à nossa volta, esse é o filtro que nos possibilita manter o olhar voltado para o essencial. Se, pelo contrário, a autocensura é desativada – por exemplo, pelo jejum, pela privação do sono ou por ‘estados de êxtase’ -, o cérebro pode estabelecer relações inusitadas. No caso dos portadores de epilepsia temporal, o censor cerebral poderá ter sofrido lesões decorrentes dos ataques, razão pela qual os pacientes são regularmente atormentados por “iluminações”.
O neurologista Vilayanur Ramachandran, diretor do Centro do Cérebro e Cognição da Universidade da Califórnia, em San Diego, é especialista de renome nessa área de pesquisa. Certo dia, apareceu em seu laboratório um epilético chamado Paul. Na conversa com o médico, Paul descreveu de forma extasiada seu primeiro acesso, ocorrido aos 8 anos de idade: “Clareza, pura visão do divino – sem categorias, sem limites, apenas a unidade com o divino.
O ímpeto investigativo do neurologista despertou de imediato. Ramachandran perguntou-se porque justamente os portadores de epilepsia temporal eram tão sensíveis a estímulos religiosos. “Porque suas visões sempre dizem respeito a experiências supra sensoriais, e não a, digamos, porcos ou burros?”
Com o intuito de esclarecer se as sensações avassaladoras eram produto exclusivo de ataques epilépticos nos lobos temporais ou, antes, de um estado geral de excitação cerebral, o neurologista confrontou portadores de epilepsia temporal com imagens diversas – instantâneos neutros de paisagens, fotografias eróticas, cenas de violência, entre outras – , bem como com palavras e símbolos religiosos. Mediu, então, o grau de excitação de seus voluntários com base no correspondente aumento da condutibilidade elétrica da pele.
Se nas pessoas saudáveis a reação mais intensa foi às imagens que atuam sobre as emoções, tais como os nus e as cenas de violência brutal, no caso dos epiléticos, ao contrário, foram as representações religiosas que proporcionaram as reações mais vigorosas. Ramachandran confirmou, assim, a suposta relação entre a hiperatividade do lobo temporal e uma elevada predisposição para o pensamento religioso de forma geral. De modo algo chamativo, talvez, mas em compensação muitíssimo eficaz no que diz respeito aos meios de comunicação, o neurologista acabou por dar a essa área do cérebro o nome de “módulo divino”, designação que decerto não soa de todo científica. De suas observações dos epiléticos, Ramachandran tira uma conclusão inequívoca. “Evidentemente, o cérebro humano possui circuitos que participam das experiências religiosas e que, em alguns epiléticos, se tornam hiperativos”.
Muito mais que isso, porém, não se pode deduzir das experiências do neurologista. Afinal, o fato de se vivenciarem experiências divinas no lobo temporal esquerdo não diz rigorosamente nada acerca, por exemplo, da existência ou não existência de um ser supremo. “A nós, pessoas ‘normais, ‘Deus concede apenas de vez em quando a visão de uma verdade mais profunda. Esses pacientes, pelo contrário, gozam do privilégio único de, a cada ataque epilético, olhar diretamente no rosto de Deus”, constata Ramachandran, e acrescenta a sua constatação a pergunta: “Quem desejaria decidir se essas experiências são ‘genuínas’ ou ‘psicológicas” Você trataria de fato um tal paciente, privando o Todo- poderoso de seu direito de visita?
O neurologista não é o único a atribuir ao lobo temporal significado especial no tocante às experiências supra sensoriais. O fisiologista e psicólogo Michael Persinger, da Laurentian University, em Sudbury, Canadá, procura Deus também no cérebro humano. Embora os resultados de sua pesquisa tenham sido publicados já há mais de 20 anos, ela só atraiu a atenção de um público mais amplo na esteira do redobrado interesse neuroteológico. Valendo-se de um capacete especialmente adaptado, Persinger fez estimulação magnética dos lobos temporais de seus voluntários. O cientista chegou a experimentar o “capacete divino” em si próprio e, desse modo, vivenciou pela primeira vez na vida a “presença de Deus”, conforme declarou mais tarde. Típico dessa espécie de experimento é que os voluntários posteriormente registram o que viveram em linguagem religiosa tradicional.
Persinger conclui daí que a experiência divina relaciona-se à uma instabilidade elétrica passageira na região do lobo temporal. Também isso, contudo, apenas confirma a existência de uma relação entre o cérebro e as experiências religiosas, e nada mais.
Hoje, a pesquisa em neuroteologia apresenta-se associada em especial aos nomes de dois cientistas da Faculdade de Medicina da Universidade da Pensilvânia: Andrew Newberg, professor de radiologia, e Eugene d’Aquili, psiquiatra falecido em 1998. Dois de seus livros de divulgação científica contribuíram em grande medida para deflagrar o atual florescimento da neuroteologia.
Nesses livros é descrita, por exemplo, a experiência com Robert, budista praticante de meditação tibetana. Ao meditar, o jovem acende um incenso com odor de jasmim, acomoda-se no chão e cruza as pernas na chamada posição de lótus. Em seguida, lança-se a uma viagem interior. Robert, relata que, ao fazê-lo, sua consciência entra em repouso, ao passo que uma parte mais profunda e singela de seu eu vai pouco a pouco se manifestando. Essa porção, ele a vê como seu eu interior, o cerne verdadeiro do seu ser. Nesse estado, imperam a temporalidade e infinitude totais. Robert já não é apenas ele mesmo, e sim parte de tudo que existe.
Relatos subjetivos como esse são de pouca valia para as ciências naturais. A fim de dar à experiência religiosa de Robert uma forma que lhes fosse útil, Newberg e d’Aquili tiveram a ideia de fixar num instantâneo o momento dessa transcendência mística. Para tanto, o zen-budista deveria puxar uma corda quando atingisse o ápice espiritual de sua meditação. A outra ponta da corda estaria presa a Newberg, que, ao sinal recebido e com o auxílio de uma comprida mangueira, injetaria uma substância levemente radioativa na veia do braço esquerdo de Robert. A substância, um marcador, movimenta-se pela corrente sanguínea e, em pouquíssimo tempo, deposita-se nas células cerebrais, onde permanece por horas. A irrigação sanguínea acentuada de determinada região do cérebro conduz, então, a um sinal radioativo mais intenso ali, o que sinaliza aos cientistas o aumento da atividade naquela área específica.
No caso de Robert, o que se verificou no início da meditação foi uma atividade intensa, mas normal, na porção superior do lobo parietal.A tarefa dessa região consiste na “orientação do indivíduo no espaço físico”, nas palavras de Newberg. “Esse ‘campo de orientação’ nos permite diferenciar com clareza o indivíduo de tudo o mais. Sua tarefa é apartar o eu do não-eu infinito que compõe o restante do Universo. Para tanto, depende do fluxo continuo de informações provenientes de todos os sentidos do corpo.
No ápice da jornada meditativa de Robert, porém, a atividade desse campo de orientação sofreu redução drástica. Newberg e d’Aquili supõem, portanto, que essa região cerebral se fez temporariamente “cega” para os dados provenientes dos sentidos – uma possível explicação para a sensação de Robert de, no auge de sua meditação, não mais constituir uma “unidade isolada”, mas “estar ligado de forma indissolúvel à totalidade da Criação”.
A experiência foi repetida com outros budistas em meditação e com freiras clarissas durante suas orações. E, de fato, o efeito não revelou restrito a uma única crença: em momentos da mais profunda meditação religiosa, o campo de orientação se faz cego. Mais uma vez, no entanto, o resultado da experiência nada diz acerca do conteúdo de verdade da crença ou de certos dogmas de diferentes religiões.
Por isso mesmo, “antes de nos aventurarmos a introduzir procedimentos de diagnóstico por imagens com fins localiza dores nos domínios da experiência religiosa e da neuroteologia, haveria ainda numerosas questões a esclarecer’, adverte Detlef Linke, diretor do Departamento de Neuropsicologia Clínica e Reabilitação Neurocirúrgica da Universidade de Bonn. É preciso saber, por exemplo, se, nas regiões cerebrais ativas, predominam células inibidoras ou ativadoras. Além disso, que relação o consumo de energia medido guarda com o processamento da informação? Não é possível que tenham aí papel decisivo mecanismos processadores de informações que demandam muito pouca energia? Em se tratando do ser humano, pode-se, afinal, falar em estado cerebral inicial ou de repouso ao qual comparar um estado ativo?
E, a tudo isso, junte-se ainda o fato de que resultados obtidos de procedimentos mensuradores baseados em imagens devem, antes de mais nada, ser interpretados pelos pesquisadores. Nisso sempre interferirá o ponto de vista da linha de pesquisa em questão ou mesmo do próprio pesquisador – ele pode influenciar a conclusão.
A pesquisa neuroteológica em particular precisa atentar para não ultrapassar as fronteiras que separam os resultados das experiências da interpretação dada a eles. Do contrário, sempre correrá o risco de inflar descobertas empíricas à condição de hipóteses sistemáticas. De resto, afirmações acerca de Deus não se deixam extrair com base numa condutibilidade maior da pele ou na alteração da atividade verificada em determinada região do cérebro. O Todo-poderoso decerto não estará alojado no lobo temporal. Formulações sensacionais desse tipo antes prejudicam do que beneficiam a imagem de um ramo nascente de pesquisa.
Outra deficiência das pesquisas de Newberg e d’Aquili constitui-se na redução da religião a meditação e orações. “Com certeza, religião é mais do que apenas um estado emocional vivido em sua plenitude”, sentencia Linke. Como a pesquisa neurocientífica tem por objeto indivíduos e sua atividade cerebral, ela não poderá tratar de religião, e sim da “religiosidade” do ser humano. Assim sendo, uma designação mais acertada para esse ramo de pesquisa seria “neurobiologia” ou “neuropsicologia da religiosidade”. Mas o que significa de fato o adjetivo “religioso”? Quando se auto classificam como “religiosos” ou “não religiosos”, todos os voluntários das experiências neuroteológicas querem dizer a mesma coisa? No uso cotidiano da língua, “religioso” é por vezes empregado como sinônimo de “pio” ou “cristão”. Contudo, embora não esteja de todo errado, esse não é o significado preciso do adjetivo.
Para o futuro, portanto, cumpre desenvolver um conceito único de religiosidade para todas as linhas de pesquisa que se ocupam das questões neuroteológicas. Somente então estaremos, tanto quanto possível, a salvo de mal-entendidos.
Da mesma forma que “sentir” foi pouco a pouco se juntando ao “pensar”, como objeto da atenção das ciências naturais, também o “crer” poderá fazê-lo agora. Esse seria o grande mérito de uma nova neuroteologia, que abordasse os fundamentos da experiência religiosa com base em um conceito integrado de religiosidade e de forma interdisciplinar.
GLOSSÁRIO

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