NOVA TECNOLOGIA PARA CRIANÇAS
A terapia do esquema é uma forma inteiramente nova de trabalhar fortalecendo e enriquecendo a personalidade infantil em formação
Em uma sala de psicoterapia projetada para o atendimento infantil, uma criança representa seus conflitos em um cenário semelhante a sua sala de aula, por meio de fantoches retratando a professora e os colegas. Na encenação é dia de entrega de notas. Ela afirma, com um rosto desconcertado, que não faz sentido a nota que tirou, pois ela é muito inteligente.
A cena prossegue e a criança fica cada vez mais tensa. Seu fantoche simula olhar demoradamente a nota. O fantoche da terapeuta, que agora representa a professora, lhe diz: “Você foi bem!”. E o fantoche da criança, que quase não tem mais sua função mediadora, diz: “Mas por dois décimos eu não tirei oito, dois décimos! Isso não é possível, eu sou muito inteligente! Isso não pode ser! Tem algo de errado com essa nota!”.
A cena continua com a terapeuta utilizando todos os fantoches a sua disposição para diminuir a inconformidade e o sofrimento presentes na cena, mas a criança insiste: “São dois décimos para oito, e nem é um nove, ou dez”. A terapeuta percebe que há uma grande tensão interna na criança, pois ela vê incoerência entre quem acredita ser e o que a realidade, “a nota”, lhe trouxe por evidência. Reatar os fios da conexão consigo mesma e promover um senso de eficácia são prementes, pois é preciso ajudar essa criança a suprir suas necessidades psíquicas de se sentir ela mesma, acertando ou errando.
Mas é difícil vencer o “pai exigente” que essa criança tem internalizado, que tenta punir a “criança vulnerável” que chora a perda da nota. Sabendo disso, sua terapeuta a convida para uma outra atividade: analisar o que aconteceu na “sala do conselho de modos”. A terapeuta usará agora outra técnica. Ela sabe que a criança já conhece bem os vários lados (modos) de seu “eu” e sabe identificar quando sua parte vulnerável, zangada, impulsiva, exigente ou punitiva acionou um botão mental e a fez pensar, agir e sentir de uma forma que não ajuda.
Pede, então, que a criança identifique qual botão estava acionado em sua cabecinha quando ela representou ter recebido a nota, e a criança diz: “Minha criança fraquinha!” (vulnerável em termos técnicos). Nesse momento a criança, que já sabe que dentro dela existem vários botões mentais que quando “acionados” lhe causam grande sofrimento, é convidada pela terapeuta a analisar seu conflito de forma diferente.
Ela pega o boneco que sempre tem representado o modo frágil da criança e o leva para um tabuleiro onde estão dispostos um trono e nove outros lugares ao redor. Cada lugar é ocupado por um “modo” do seu “jeito de ser”. Há lugar para todos seus lados criança: a zangada, a impulsiva, a vulnerável e a feliz. Também há lugar para seus lados pais: exigente e punitivo. Há ainda três lugares para as formas desengonçadas (estratégias desadaptadas) para lidar com os problemas da vida, nesse caso a nota.
Ela pode se afundar no problema, pode agir como se o problema não existisse, ou pode agir como se, dada sua suposta superioridade, não devesse se importar com a nota. Mas finalmente há lugar para sua parte sábia, criativa e inteligente, que a ajuda a se equilibrar e encontrar formas mais adequadas de atender suas necessidades psicológicas.
Todos os lados (modos) têm bonecos que os representam e estão presentes nessa sala de conselho dos “modos” de ser: no trono, primeiro se senta o lado “fraquinho”, e a criança fala de todo o seu sofrimento, fragilidade, medo, dor e incompreensão através de seu boneco. O trono vai sendo ocupado sucessivamente pelos outros modos na tentativa de resolver o problema, mas apenas o modo sábio e o modo feliz conseguem encontrar soluções saudáveis.
Depois disso tudo, a criança é convidada a fazer uma técnica de relaxamento ou de mindfulness. Entretanto, antes de ir embora, a terapeuta procura fazer pontes para a vida e, com o auxílio da criança, procura estender os aprendizados da sessão para as situações concretas que ela enfrenta. Essa é uma sessão típica de terapia de esquema com crianças. Técnicas mais sofisticadas podem ser utilizadas com adolescentes, mas a tônica é sempre a mesma: dar voz aos vários “modos de esquema” que a criança e o adolescente possuem dentro deles, debater, refletir, questionar, encontrar soluções e fazer pontes para a vida.
Neste artigo procuraremos apontar como uma psicoterapia cognitiva de terceira onda, originalmente orientada para o trabalho com pacientes com transtornos de personalidade e transtornos crônicos graves, pode ajudar no trabalho com crianças e adolescentes. Numa primeira e superficial leitura dos textos sobre terapia do esquema pode parecer que essa abordagem se aplicaria apenas a crianças e adolescentes com transtornos graves, como os externalizantes, ou aos pequenos e adolescentes que parecem apresentar sinais prodômicos de futuros transtornos de personalidade. Isso é falso. Essa é uma forma inteiramente nova de trabalhar, fortalecendo e enriquecendo a personalidade em formação.
INTEGRAÇÃO
Para avançarmos na compreensão do poder transformador da terapia do esquema na infância e, especialmente, na adolescência podemos começar definindo claramente o que é personalidade, como ela se constitui e como se desenvolve, já que os esquemas iniciais adaptativos estão na base de uma personalidade saudável, e é sobre a promoção de esquemas iniciais adaptativos que o trabalho do terapeuta do esquema se dará, especialmente o daqueles que se dedicam à infância e adolescência. O dicionário da American Psychological Association afirma que personalidade diz respeito “a configuração de características e comportamento que inclui o ajustamento de um indivíduo à vida, incluindo traços, interesses, impulsos, valores, autoconceito, capacidade e padrões emocionais importantes. A personalidade é vista como uma integração ou uma totalidade complexa e dinâmica, moldada por muitas forças, incluindo hereditariedade e tendências constitucionais, maturidade física, treinamento precoce, identificação com indivíduos e grupos significativos, valores e papéis culturalmente condicionados e experiências e relacionamentos críticos. Várias teorias explicam a estrutura e o desenvolvimento da personalidade de diferentes formas, mas todas concordam que a personalidade ajuda a determinar o comportamento”.
A partir dessa definição, algumas perguntas nos saltam aos ouvidos: quando um indivíduo começa um processo de desajuste psíquico na vida? Isso pode começar na infância? Quando e como suas estratégias para lidar com seus problemas cotidianos, seus interesses, seu autoconceito começam a lhe trazer sofrimento significativo? Na infância? Às vezes! Na adolescência? Muitas vezes!
Um ouvido ainda mais aguçado ficaria atento a algumas coisas a mais: se a personalidade é moldada por múltiplas forças, aquelas que são constitucionais ou herdadas (por exemplo, o temperamento) e aquelas que advêm do ambiente no qual as pessoas estão inseridas (modelos e modelagem de habilidades e competências sociais), como proteger o desenvolvimento da personalidade de experiências e relacionamentos críticos e desastrosos? Terapeutas do esquema apresentam uma resposta simples, porém muito consistente: identificando, avaliando e oferecendo o suprimento de necessidades psicológicas básicas, quais sejam: senso de conexão e pertencimento; senso de autonomia e capacidade; padrões de comportamento equilibrados e responsabilidade e limites adequados.
Fica claro que essas necessidades começam a surgir e se desenvolvem ao longo da infância e da adolescência e que o não suprimento delas levaria a quadros psicológicos mais graves, especialmente os transtornos de personalidade. Sendo assim, quanto mais precocemente aplicarmos tecnologias psicológicas para melhorar o processo de formação de uma personalidade saudável, mais saúde mental ofereceremos às pessoas em geral. O objetivo dos terapeutas do esquema que trabalham com crianças, adolescentes e com famílias é auxiliar na aquisição ou ativação de estratégias saudáveis para obtenção de senso de pertencimento, autonomia responsável, senso de capacidade realista, regulação emocional e comportamental e senso de limite.
MODOS DE ESQUEMA
Todos são estados ou partes do self que estão ativos em um dado momento e envolvem uma combinação de emoções, cognições e respostas comportamentais. Essa combinação de elementos aponta para um ou mais EIDs ativos momento a momento, apresentam dez modos de esquemas que são distribuídos em quatro categorias: modos criança, modos de enfrentamento disfuncionais, modos pais disfuncionais e modos adulto saudável.
Os modos criança são inatos, sendo assim todas as crianças têm o potencial de manifestá-los de quatro formas: modo criança vulnerável ou ferida, modo criança zangada, modo criança impulsiva e modo criança feliz. A criança vulnerável agrupa grande parte dos EIDs como os de abandono, abuso, privação emocional. Com esse modo ativo, a criança/adolescente acredita que ninguém é capaz de perceber as “injustiças” que ela acredita estar sofrendo. O modo criança feliz diz respeito ao momento no qual a pessoa sente que suas necessidades emocionais foram atendidas.
Os modos de enfrentamento disfuncionais são: o capitulador complacente, no qual a pessoa se submete às pessoas e situações, mantendo seu conflito. No caso dos adolescentes, por exemplo, eles se submetem a desejos e interesses do grupo de amigos temendo perdê-los; o protetor desligado, no qual o indivíduo se afasta do sofrimento utilizando diferentes formas de evitação (comportamental, emocional e cognitiva). Nesse caso, o adolescente passa a evitar situações e emoções conflituosas desligando-se emocionalmente de pessoas e situações que ele insiste em dizer que não o afetam. Por último, o hipercompensador reage aos EIDs através de comportamentos hostis contra outras pessoas ou de autoengrandecimento, que nos jovens aparece quando eles exageram competências e qualidades para se sentirem mais seguros.
Os modos pai/mãe disfuncionais são resultantes da internalização dos cuidadores (pais, educadores, avós) da criança ou do adolescente e podem ser classificados como punitivos ou exigentes. O primeiro (pais punitivos) diz respeito à punição de um dos modos criança devido ao seu “mau comportamento”. Nesses casos, os adolescentes começam a pensar que são inadequados, incapazes, sem valor e podem se punir de diferentes maneiras, como, por exemplo, em casos mais graves, infringindo-se cortes (automutilação) enquanto pensam:
“Você não merece…”; “Você não é digno…”; “Você não tem o direito…”.
O modo pai/mãe exigentes é a cobrança de padrões altos de desempenho. Neste caso, a criança e o adolescente apresentam um perfeccionismo que os leva a sofrimento, sentindo-se algemados a altos padrões de performance. Os pensamentos giram em torno de: “Seja forte!”, “Seja o melhor!”; “Sempre há algo para melhorar!”.
O décimo e último modo identificado é o modo sábio e inteligente. A criança/adolescente deve ser capaz de monitorar, cuidar e curar os outros modos disfuncionais, encontrando formas saudáveis de obter a satisfação de suas necessidades de conexão, autonomia e desempenho, autocontrole e livre expressão de ideias e sentimentos de forma equilibrada.
ETAPAS
A terapia do esquema para adolescentes consiste em três etapas principais: identificação, psico – educação e modificação de EIDs e modos de esquema, tanto nas crianças e adolescentes quanto em seus pais/cuidadores diretos.
O conceito de modo de esquema é trabalhado extensamente nos protocolos por meio de diferentes técnicas, como teatro de fantoches – técnica utilizada na etapa cujo objetivo é avaliar, psicoeducar e modificar modos presentes na criança, relacionando-os às situações de conflito reais (pontes para a vida). Com as mesmas finalidades,
usam-se “clipcharts”, nos quais se inserem os modos dentro de uma representação gráfica do próprio adolescente, ou ainda a técnica das cadeiras, na qual cada uma delas representa um modo que deve ser explicitado pela criança ou adolescente quando estes se sentam na respectiva cadeira.
Da mesma forma, os pais são avaliados e psicoeducados. Busca-se diminuir o efeito dos modos disfuncionais dos pais na relação com os filhos. Não é incomum encontrarmos pais com seus modos criança ativos procurando educar seus filhos adolescentes, ou ativando seus pais punitivos e exigentes quando não conseguem alcançar objetivos em suas práticas de educação, sentindo-se frustrados, ineficazes e cobrando exageradamente de si e de seus filhos. Outros ainda evitam suas tarefas de orientar e educar, ou hipercompensam exagerando habilidades que lhes faltam. Em muitas ocasiões, compreendem que esses modos se perpetuam há gerações em suas famílias e sabem que não é simples conscientizarem-se para combater suas formas desadaptadas de lidar com conflitos. À medida que a terapia dos pais e dos filhos evolui, assistimos ao nascimento ou ao ressurgimento de relações entre pais e filhos nas quais as necessidades psicológicas de conexão e pertencimento vão emergindo, e núcleos familiares, muitas vezes, se sentem “família” pela primeira vez em muito tempo.
Buscar a conexão saudável entre pais e filhos, senso de competência e eficácia em todos os membros da família; verificar em pais e filhos a capacidade de se autocontrolar e gerenciar de forma equilibrada suas emoções e comportamentos; encontrar o equilíbrio dinâmico de dar e receber auxílio e afeto e aprender que há formas adequadas para expressar qualquer ideia e sentimento são as metas da terapia do esquema.
A IMPORTÂNCIA DO PAPEL DA FAMÍLIA
Os esquemas iniciais desadaptativos (EIDs), que obstaculizam o desenvolvimento da personalidade saudável, se organizam a partir de uma atmosfera nociva presente no núcleo familiar, nas experiências escolares e nos grupos de amigos. Eles se originam, grosso modo, nas condições de privação de necessidades psicológicas básicas não atendidas, gerando crenças de desconexão e rejeição; uma visão de incapacidade ligada a um senso de autonomia e desempenho prejudicados; falta de limites precisos, o que leva a comportamentos impulsivos e mimados; um forte direcionamento a suprir as necessidades dos outros e, ainda, uma expectativa de punição ou exigências que levam à supervigilância do ambiente e à inibição de comportamentos mais espontâneos
ATMOSFERA EM QUE OS EIDS SE DESENVOLVEM NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA
DESCONEXÃO E REJEIÇÃO
Os pais ou responsáveis, professores e/ou colegas são geralmente individualistas, frios, rejeitadores, explosivos, imprevisíveis ou abusivos.
AUTONOMIA E DESEMPENHOS PREJUDICADOS
Os pais ou responsáveis, professores e/ou colegas são, geralmente, emaranhados, afetiva e comportamentalmente à criança/adolescente, minando sua confiança, superprotegendo-os.
LIMITES PREJUDICADOS
Os pais ou responsáveis, professores e/ou colegas são caracterizados por excessiva permissividade, abuso, falta de direção e por inflarem um senso de superioridade.
DIRECIONAMENTO PARA O OUTRO
Os pais ou responsáveis. professores e/ou colegas foram ou são pessoas que baseiam sua relação com a criança em aceitação condicional: as crianças devem suprimir aspectos importantes de si mesmas a fim de ganhar amor, atenção e aprovação de seus pares.
SUPERVIGILÂNCIA E INIBIÇÃO
Os pais ou responsáveis, professores e/ou colegas são cruéis, exigentes e às vezes punitivos. Nestes contextos relacionais desempenho, dever, perfeccionismo, seguimento de regras, ocultar as emoções e evitar erros predominam sobre o prazer, alegria e relaxamento.
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