GÊNERO E CONFLITOS FAMILIARES
A família é o primeiro lugar de acolhimento e de segurança do ser humano, mas no campo da identidade de gênero ainda há muito o que aprender a respeitar

Dentro de uma visão sistêmica, a família nuclear nasce quando nasce uma criança. Para essa abordagem, casal não é família e sim duas pessoas que iniciam a conjugalidade. Com a chegada de uma criança, seja por nascimento ou por adoção, nascem dois tipos de casais, o casal conjugal que pode perdurar por toda a vida, até chegar à fase do ninho vazio, quando os filhos saem de casa e constroem suas próprias vidas, ou terminar com o divórcio ou a viuvez. Já o casal parental é eterno, mesmo que haja a separação. O vínculo entre o casal permanece pela existência dos filhos que fazem parte do núcleo familiar e pelos vários papéis parentais que são inaugurados. Quem era apenas sogra passa a ocupar o lugar de avó, quem era apenas marido passa a ser pai, os cunhados, tios, eassim por diante. O poder do nascimento de uma criança é muito grande, pois modifica e hierarquiza a família.
Antes de um filho existir concretamente, ele já é elaborado no universo simbólico e muitos planos são feitos para ele. Quando perguntamos se a grávida prefere menino ou menina, é comum escutar (embora às vezes haja uma preferência no seu íntimo) “tanto faz, contanto que venha com saúde será bem-vindo”.
A realidade não costuma confirmar a frase da prioridade da saúde sobre o gênero, especialmente quando na construção da sexualidade um filho é homossexual. Comportamento ultrapassado? Vivemos tempo de aceitação plena das diferenças de toda ordem? Não é esse o relato dos adolescentes e adultos quando têm a oportunidade de conversar sobre o assunto. No decorrer de minha experiência em escolas, trabalhando diretamente com adolescentes e também na prática clínica como psicopedagoga, tive a oportunidade de acompanhar inúmeros casos e fazer reflexões sobre o tema.
Primeiramente, durante a formação da sexualidade, o adolescente, na maioria das vezes, costuma viver muitos conflitos internos e experimentar muito sofrimento por ter dúvidas sobre a sua identidade. Até se definirem, esses conflitos vão desde a insegurança, apego extremo à religiosidade como forma de lutar contra o seu devir, afastamento total de ambientes religiosos, afastamento de familiares da família ampliada, dificuldades de aprendizagem, dificuldades de relacionamento com os pares nos ambientes sociais, doenças psicossomáticas e mesmo tentativas de suicídio. Não ter um lugar, sentir-se excluído, faz com que muitos tenham ideação suicida e quadros depressivos.
Os jovens e adultos relatam sobre a dificuldade que tiveram quando os pais “descobriram” a sua verdadeira identidade sexual ou a angústia que sentiram quando revelaram aos seus familiares. Começam pela consciente e clara declaração que um filho hétero não precisa sentar para conversar com seus pais e fazer a “grande revelação”, e os filhos homossexuais, sim. A estranheza e a certeza de que a aceitação da diversidade de gênero começa a partir dessa reflexão. Se fosse natural, não precisaria ser anunciado, revelado. O ideário de ter decepcionado as expectativas dos pais e o fato de não se sentir plenamente inserido nos eventos familiares estão nas declarações mais comuns. Afirmam também que, via de regra, quando não são expulsos de casa, há uma aceitação maior por parte das mães do que dos pais, e algumas condições são colocadas para a convivência, tais corno não levar em casa a pessoa com quem se relaciona, “respeitar” o ambiente familiar evitando falar sobre sua vida particular, assumir tarefas domésticas antes não realizadas, dentre outras situações que colocam o sujeito em um lugar de menor valor.
A violência simbólica ou declarada ocorre também nos espaços escolares e profissionais, além da própria família, que costuma fazer o primeiro movimento de exclusão, seja mantendo a questão velada ou com ofensas diretas. As mães costumam responder que aceitaram porque amam seus filhos incondicionalmente, mas temem a violência externa, a homofobia e o sofrimento que os filhos terão na sociedade por toda a vida. Os pais declararam de forma mais enfática a recusa e o lamento de que não poderão ser avós, ignorando a possibilidade de que no futuro uma união homoafetiva poderia trazer um neto através da adoção. Os conflitos entre os pais também são comuns quando um culpa o outro pela criação, pelas ausências ou comportamento opressor, na busca de uma resposta sobre o porquê da identidade do filho diferir dos seus sonhos e planos.
Vamos encontrar outros dados muito curiosos. Filhos gays costumam sair da casa dos pais e habitar sozinhos ou dividindo moradia com amigos muito mais cedo que filhos héteros, uma forma de se distanciar do mal-estar vivido dentro da própria casa. Em vários casos ouvem os pais se perguntando claramente “onde nós erramos na educação dele?”. Esse desconforto traz afastamento, mágoas e o sentimento que causa vergonha e humilhação aos familiares.
Os amigos também costumam ser, na grande maioria, pessoas com a mesma identidade sexual para evitar a rejeição, bem como os lugares escolhidos para o lazer. Assim constroem uma rede de segurança e empoderamento para a conquista de direitos civis e encontrar forças para seguirem em frente assumindo quem realmente são.
DAYSE SERRA – é doutora em Psicologia pela PUC- Rio, mestre em Educação Inclusiva pela UERJ, professora da Universidade Federal Fluminense. Escritora, terapeuta de família e casal pela Logos Psi, membro da Comissão Científica da Abenepi, membro do Conselho Editorial do Colégio Pedro II.
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