CORTINA DE FUMAÇA
O Brasil discute a regulamentação do cigarro eletrônico, visto como uma epidemia nos Estados Unidos
No ano em que completaria uma década como fumante, a
radialista e executiva na área de audiovisual Luísa Campos, de 34 anos,
moradora do Rio de Janeiro, descobriu o cigarro eletrônico — por meio da amiga
de uma amiga que presenteou esta última com o produto. “Fui olhar aqui no Rio
onde eu poderia comprar, não achei nada. Achei na internet”, contou Campos.
Havia vários motivos para a troca do tabaco enrolado em
papel — que libera nicotina por meio da combustão e tem milhares de toxinas —
pelo vaporizador — que prescinde da combustão para liberar a nicotina,
substância responsável tanto pela sensação de prazer e alívio proporcionada
pelo cigarro como pela dependência. “O cheiro do cigarro me incomoda muito.
Quem fuma tem de fazer algumas adaptações na vida”, disse a radialista.
O outro fator era a saúde. Campos havia fumado por cinco
anos, até 2013. Parou e voltou a fumar em 2015. Em janeiro de 2018 aderiu ao
cigarro eletrônico como forma de reduzir danos. “Logo que comecei a usar o
cigarro eletrônico não usei mais o normal. Foi um meio de parar de fumar quase
instantâneo. Não quero dizer que é um milagre. Tenho amigos que não substituíram.”
O cigarro eletrônico, produto que começou a ser
comercializado no final da década passada em países como os Estados Unidos e a
Inglaterra, pode funcionar por meio de um vaporizador que libera a nicotina ou
do tabaco aquecido, inserido no objeto por meio de cápsulas ou tubos. Números
da Public Health England, agência de saúde pública ligada ao governo inglês,
mostram que o cigarro eletrônico tem um potencial de danos de 5% em relação ao
cigarro comum. Embora não conte com a mesma quantidade de toxinas de um cigarro
comum e não precise de combustão, que, no cigarro comum, libera as substâncias
tóxicas, sua comercialização é proibida no Brasil desde 2009 — quando a Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) emitiu um princípio de precaução, uma
forma de “garantia contra os riscos potenciais que, de acordo com o estado
atual do conhecimento, não podem ser ainda identificados”. Os termos para uma
regulamentação do produto serão discutidos em 8 de agosto durante audiência
pública em Brasília.
“Considerando que a toxicidade dos cigarros já é tão
elevada, é relativamente fácil alguma coisa ser menos tóxica que os cigarros
convencionais, mas nem por isso quer dizer que não represente ameaça à saúde
humana”, afirmou o médico Alberto José de Araújo, coordenador da Comissão de
Combate ao Tabagismo da Associação Médica Brasileira. “A enorme variedade de
sabores, as diferentes composições e emissões tóxicas dos cigarros eletrônicos
e aquecidos indicam que uma eventual liberação de sua comercialização deveria
ser realizada caso a caso, e não de forma ampla, sem considerar as diversas
formulações, tipos e voltagens aplicadas.” Para Araújo, “os benefícios dessa
proibição (da Anvisa) foram maiores e mais significativos que os supostos e não
comprovados benefícios da liberação desses produtos”.
Ainda assim, o cigarro eletrônico vem sendo utilizado
como forma de redução de danos no combate ao tabagismo, ao lado de outras
estratégias, como os adesivos que liberam nicotina. Um estudo publicado em 2019
na revista científica The New England Journal of Medicine ,
realizado por pesquisadores do Reino Unido e dos EUA, mostrou que entre aqueles
que utilizaram o cigarro eletrônico como um meio de abandonar o cigarro 18%
tiveram sucesso, enquanto entre os que usaram outros métodos para substituir a
nicotina, como os adesivos e chicletes, o sucesso foi de 10%. No entanto, 80%
dos que utilizaram cigarro eletrônico continuaram a consumi-lo, enquanto apenas
9% daqueles que usaram outros produtos permaneceram com eles. “É uma questão
que a literatura médica ainda discute”, disse André Nathan, especialista em
tabagismo e médico no Hospital Sírio-Libanês. Segundo o pesquisador, embora o
cigarro eletrônico seja “uma via mais limpa” que o cigarro comum, deve-se
atentar para seu uso como forma de reduzir danos do tabagismo. “Ainda não temos
dados que provem que ele seja efetivo.”
Nos EUA o cigarro eletrônico é hoje considerado uma
epidemia entre os jovens. De acordo com um levantamento feito a partir de seis
estudos com mais de 91 mil participantes, adolescentes e jovens adultos que
usam cigarros eletrônicos têm duas vezes mais chances de fumar cigarros comuns
em comparação com aqueles que nunca usaram o produto. Dados do Centro de
Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), órgão ligado ao
governo americano, mostram que, entre adolescentes em idade escolar, o consumo
de cigarros eletrônicos aumentou 900% entre 2011 e 2015. Entre adolescentes no
ensino médio, o uso cresceu 78%, de 11,7% para 20,8%, em dois anos. Em 2018, mais
de 3,6 milhões de jovens americanos usavam o cigarro eletrônico.
Na Alemanha, pesquisadores também constataram maior
incidência no consumo de cigarro convencional entre jovens que experimentaram o
cigarro eletrônico. Segundo pesquisa feita com estudantes na faixa dos 12 aos
17 anos, os que experimentaram o cigarro eletrônico tiveram 2,2 vezes mais
chances de se tornarem fumantes.
A professora Gisele Birman Tonietto, do Departamento de
Química do Centro Técnico Científico da PUC-Rio, vê esse risco para o Brasil,
caso a regulamentação do cigarro eletrônico, por exemplo, não atinja a
propaganda ao produto, como no caso dos cigarros tradicionais. “O que a gente
está vendo no mundo é uma epidemia. O jovem que não fumava está suscetível ao
apelo. Nós (brasileiros), que somos referência em antitabagismo, não
queremos jogar fora o trabalho (voltado à redução do tabagismo).”
Para a gerente sênior de Relações Científicas da Souza
Cruz, Analúcia Saraiva, “o maior risco que o Brasil está assumindo é não
regular a categoria”. Ela citou o caso americano como exemplo das consequências
da falta de regulamentação. “Quando (a substância) não é regulada,
quando não existe, por exemplo, uma idade mínima para adquirir esses produtos,
aí sim esse risco (de epidemia) existe”, afirmou. “O vapor do cigarro
eletrônico não é um vapor de água. Ele contém nicotina. Se não tiver nicotina,
o consumidor não vai migrar para esse produto. O benefício é, justamente, que o
fumante deixe de consumir o cigarro tradicional, que traz essa série de
substâncias geradas durante a combustão, e migre para um produto de menor
risco.”
Na opinião de Fernando Vieira, diretor de assuntos
externos da Philip Morris Brasil, é preciso “ter uma regulamentação que não
exponha os não fumantes e os menores a esse tipo de produto. A Anvisa, ao
regulamentar, pode ser bem proativa nesse sentido”. A Philip Morris anunciou no
ano passado que deixará, futuramente, de produzir os cigarros comuns e terá
como um de seus focos os cigarros eletrônicos.
Luísa Campos, que fumava de sete a oito cigarros por dia
e, sempre que viajava, levava uma mala três vezes maior que a que leva hoje,
devido ao cheiro da fumaça do cigarro, pretende, ainda, deixar de fumar. “O
ideal é não ter nada que nos amarre. Não podemos negligenciar a questão do
cigarro.”
A discussão em torno do uso do cigarro eletrônico como
forma de reduzir danos do tabagismo ocorre em um momento em que a redução de
danos deixa de ser a diretriz do Ministério da Saúde para o combate ao uso
abusivo de drogas e à dependência química, voltando-se, novamente, à busca pela
abstinência — por meio da internação.
Para o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que trabalha com redução de danos
desde 1991, a atual política do governo federal é “um retrocesso” que coloca o
Brasil em uma situação comparável à de países islâmicos. “Na melhor das
hipóteses, 30% (dos dependentes) conseguem realmente largar a droga. A
redução de danos entra justamente para esses 70% que não conseguiram a abstinência”,
disse. “Quando você coloca um indivíduo num programa de redução de danos a
médio prazo, ele consegue a abstinência. A redução de danos não se contrapõe à
abstinência. É um jeito de dar mais tempo para a pessoa consegui-la.”
O psicólogo Maurício Cotrim, especialista em dependência
química, vê na redução de danos um meio para chegar à abstinência, e não um fim
para o combate do uso abusivo de drogas e outras substâncias. “Trabalho
buscando a abstinência. Senão ficamos enxugando gelo. Os casos de sucesso que
conheço são das pessoas que tentaram a abstinência. Senão vira prorrogação de
danos.”
Dependente químico “em eterna recuperação”, Cotrim, filho de pai alcoólatra, experimentou álcool ainda na infância. Foi a porta de entrada para substâncias ilícitas, que usou a partir dos 10 anos. Passou por diversas tentativas de tratamento — inclusive religiosas. “Aos 17, pedi ajuda, fui internado.” Deixou a clínica seis meses depois. Teve recaídas. “Fiquei limpo de vez aos 18 anos.” Mantém-se assim há 24 anos.
Você precisa fazer login para comentar.