INFÂNCIA AMEAÇADA
Falta de rotina, excesso de estímulos, ruptura do ciclo sono-vigília eprescrição muitas vezes indiscriminada de antidepressivos podem antecipar a expressão dos sintomas maníacos em crianças e adolescentes

Apesar da constatação de que a maioria dos pacientes com o transtorno bipolar (TB) manifesta sintomas da doença ainda na infância, a forma precoce o distúrbio foi frequentemente sub- diagnosticada durante quase todo o século XX e só ganhou relevância depois dos anos 70. Hoje, embora sua ocorrência entre crianças e adolescentes seja indiscutível, dúvidas e polêmicas ainda cercam os índices epidemiológicos, as características clínicas, o curso da doença e os prognósticos. Uma revisão das pesquisas com as doenças afetivas nessa faixa etária mostra que as maiores dificuldades são a falta de especificação, a utilização não-padronizada de critérios de diagnóstico para crianças e a variedade da população estudada.
Evidências sugerem que a prevalência do TB aumentou em gerações mais recentes e que isso não se deve apenas ao maior número de casos diagnosticados.
Entretanto, tudo indica que esse crescimento tenha sido provocado por mudanças ambientais: falta de rotina, acesso a estímulos durante 24 horas do dia, maior ruptura do ciclo sono- vigília e prescrição de estimulantes e antidepressivos podem antecipar a expressão dos sintomas maníacos.
O uso precoce de álcool e drogas agrava os sintomas do TB em pessoas predispostas ao distúrbio. Mas, se tais fatores podem elevar o risco de desenvolver a doença, também possibilitam que estratégias preventivas e fatores de proteção sejam adotados.
A falta de dados evolutivos, porém, impede qualquer conclusão segura a respeito da influência desses fatores, porque o aparente aumento da taxa de mania pode refletir práticas diagnósticas, mudanças dos fatores da morbidade inerentes à época e disponibilidade da amostra.
Atualmente, diversos aspectos sobre o transtorno antes da fase adulta continuam em discussão e aguardam consenso entre especialistas: os critérios de inclusão e exclusão de pesquisas são pouco definidos; há desnível no treinamento dos pesquisadores de campo; existe deficiência de instrumentos de apoio diagnóstico e controle de evolução clínica; protocolos de pesquisa não são específicos e nota-se grande variação de prevalência e/ou incidência de TB na infância e na adolescência.
Em relação ao primeiro aspecto, alguns trabalhos mostram não ser necessário desenvolver um critério específico para transtornos afetivos dos 7 aos 16 anos, mas é sabido que o nível de desenvolvimento psicológico de uma criança tem papel importante na expressão de sinais e manifestações clínicas. Também variam com a idade a prevalência, o curso da doença e a relação com os transtornos manifestados na fase adulta. A tendência é que sejam estipulados critérios universais adaptados para diagnóstico nas diferentes fases de desenvolvimento, com sintomas equivalentes ou substitutivos para crianças e adolescentes.
Variam muito a prevalência e a incidência de TB precoce. As diferenças entre as populações estudadas – crianças da comunidade, pacientes ambulatoriais psiquiátricos, pacientes ambulatoriais pediátricos ou pacientes internados, pediátricos ou psiquiátricos – influenciaram os resultados. As baixas prevalência e incidência ou a variação de índices também podem decorrer do fato de que as manifestações consideradas exceções em adultos são comuns em crianças. Por isso, muitos profissionais nem incluem o T B entre as possibilidades de diagnóstico infantil – o que termina por dificultar o tratamento.
Para complicar, o que não é tão comum em adultos pode aparecer com mais frequência em crianças: estados mistos, ciclos rápidos, presença de sintomas psicóticos, altas taxas de comorbidade e prejuízo psicossocial severo. Crianças com TB são com frequência identificadas como se tivessem transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e adolescentes com doença bipolar são muitas vezes confundidos com portadores de transtorno de personalidade ou esquizofrenia. Essa dificuldade por parte dos profissionais é compreensível, uma vez que sintomas presentes em transtornos disruptivos (hiperatividade, agressividade e comportamentos anti sociais) podem ocorrer em crianças com TB. A confusão aumenta quando os adolescentes se mostram particularmente explosivos ou desorganizados e consequentemente mais vulneráveis a agressões físicas e a problemas sociais.
É comum que o TB com início precoce se manifeste primeiro por um quadro depressivo. Entre crianças e adolescentes deprimidos, 20% a 30% podem desenvolver episódios maníacos até em 24 meses seguintes. Estudos da década de 90 constataram que grandes proporções de crianças em tratamento por depressão desenvolviam sintomas variadosde TB e frequentes episódios maníacos. Segundo uma hipótese polêmica, grande parte – se não a maioria dos casos de depressão infantil – evolui para TB. O grupo de Robert L. Findling, diretor da Divisão de Psiquiatria de Crianças e Adolescentes dos Hospitais Universitários de Cleveland e professor associado de pediatria e psiquiatria da Universidade Case Western Reserve, investigou em 2001 pacientes de 5 a 17 anos portadores de TB tipo I e observou que cerca de metade deles já tinha tido episódios depressivos.
A fase depressiva do TB infantil se caracteriza por início muito precoce (antes dos 13 anos); retardo psicomotor alternado com agitação; sintomas psicóticos, reações de (hipo) mania após uso de antidepressivo; hipersonia e hiperfagia; história familiar positiva para transtorno bipolar. Essas características também são sinais preditivos e fatores de risco para posterior aparecimento deepisódio maníaco em crianças deprimidas. O estado misto depressivo é uma apresentação comum no TB tipo lI, e os pacientes com sintomas da hipomania que ocorrem durante um episódio depressivo poderiam sugerir a bipolaridade. Como os sintomas de aumento de atividade e a sensação de “estar cheio de energia” muitas vezes não são vistos como preocupantes, os episódios de hipomania podem não constituir uma queixa para o paciente ou até passar despercebidos.
A depressão que começa na adolescência parece continuar na vida adulta, e há evidências de transmissão familiar. Por ser uma patologia reconhecidamente cíclica, sabe-se hoje que a depressão de início precoce requer cuidados o quanto antes, para que se evitem prejuízos no desenvolvimento e no funcionamento global do jovem.
Alguns pesquisadores defendem a ideia de que as crianças com TB de início precoce já tinham temperamento distinto do de seus pares antes mesmo de desenvolver a doença. No estudo publicado em 2001 pelo grupo de Findling, os pais descrevem os filhos portadores de TB como cronicamente perturbados e irritados nos períodos de estado misto, hipomania ou mania, e mais irritados do que tristes em período de depressão. Manifestam tambémirritação, mesmo em momentos de humor mais equilibrado,
PERIGO DE SUICÍDIO
O profissional da saúde mental que assiste crianças e adolescentes com TB deve atentar para a presença de ideação suicida durante todo o acompanhamento desses pacientes. É importante que se avaliem os fatores de risco. Por exemplo, sintomas depressivos e hipomaníacos, com atenção especial nos estados mistos e sintomas psicóticos, tentativas prévias de suicídio, abuso físico, emocional ou sexual, abuso de substâncias psicoativas, grau de impulsividade, presença de armas de fogo em casa e fa1ta de suporte familiar.
Os pais também devem ser orientados quanto aos sinais que denunciam uma possível ideação suicida dos filhos e remover do alcance da criança todos os agentes letais como armas, venenos e medicamentos. E devem zelar pelo uso da medicação prescrita. O envolvimento da família é fundamental, sobretudo para evitar a não-aderência ao tratamento. Com o surgimento de inúmeros fatores de risco, torna-se necessário avaliar a segurança de manter a criança ou adolescente em regime de tratamento ambulatorial.
Nos últimos anos, um crescente número de crianças e adolescentes entram nas unidades de emergência com diversos quadros de intoxicação e acidentes, sem que se cogite tratar-se de tentativa de suicídio, e menos ainda que portadores de transtorno do humor, sobretudo TB. Infelizmente, a maioria das equipes que presta serviços a esses pacientes ainda está despreparada para abordar, avaliar e conduzir os casos em pronto-socorro. Poucos são os hospitais com especialistas na equipe capazes de avaliar essas ocorrências.
A avaliação psiquiátrica no pronto socorro já representa uma intervenção: a criança ou o adolescente é ouvido, e com isso pode sentir que seu pedido de ajuda foi atendido. Eventos agudos de vida também têm tido sua ocorrência associada à manifestação de uma série de distúrbios psiquiátricos, principalmente depressão, transtornos de conduta, anorexia nervosa, atos suicidas, abuso de drogas e dificuldade escolar.
Analisando uma amostra não clínica de crianças e adolescentes, constatou-se uma relação de eventos maiores repentinos, ocorridos num período de dois anos, com a mudança de comportamento e problemas emocionais explícitos, além de uma ligação significativa entre acontecimentos negativos e manifestações de problemas emocionais e comportamentais. Estudos demonstram também maior incidência geral de transtornos psiquiátricos no ambiente familiar de pessoas com problemas mentais, desvio ou predisposição a esses quadros.
ESTRESSORES EM SINERGIA
Outras pesquisas sugerem que interações disfuncionais na fase inicial da vida resultam em percepções distorcidas negativas de si mesmo, do mundo e do futuro, que persistiriam a despeito de novas experiências, predispondo o indivíduo a desenvolver transtornos depressivos. Deficiências nos relacionamentos precoces resultariam numa trajetória negativa na infância, predispondo a transtornos emocionais.
A teoria do desamparo aprendido, proposta por Martin Seligman, na década de 70, sugere que a exposição a eventos estressares, crônicos, incontroláveis e imprevisíveis, mesmo quando os cuidados parentais são adequados, predispõe os indivíduos a desenvolver quadros depressivos. Existe ainda a possibilidade de que uma parcela significativa de dificuldades vivenciadas decorra da própria vulnerabilidade causada pela depressão, como sugerido em estudos anteriores. O fato de a criança estar deprimida a torna mais vulnerável a experimentar novos estressores, piorando o estado numa espiral descendente. Em 2000, T. C. Eley e J. Stevenson estudaram 61 pares de gêmeos e encontraram correlação significativa entre eventos relacionados a perdas, stress na escola ou no trabalho, problemas de relacionamento familiar e de amizades e presença de sintomas depressivos. Essa correlação não foi encontrada com os sintomas de ansiedade.
Em 2002, o pesquisador J.A. Rice coordenou nos Estados Unidos uma pesquisa sobre a etiologia de sintomas depressivos em crianças e adolescentes examinando a influência de gênero, idade, sintomas de inquietação e depressão materna, em uma amostra de população de gêmeos com idade entre 8 e 17 anos, de 1.463 famílias. O fator genético influiu significativamente nos sintomas depressivos. Dados da literatura com frequência indicam que fatores psicossociais também tendem a afetar desfavoravelmente a evolução e o prognóstico de depressão nessas idades.
FATORES DE RISCO
A maioria das crianças e adolescentes com TB também tem estressores crônicos no ambiente familiar e social. Estudos mostram que menos da metade dos portadores do transtorno de início precoce mora com os dois pais biológicos; aproximadamente um terço já esteve hospitalizado e menos do que um terço já recebeu educação especial. Uma investigação recente chama atenção para a descoberta de que o grau de acolhimento materno pode ser um fator preditivo de recidiva após remissão dos sintomas.
É preciso considerar também que é alto o índice de transtornos mentais nos países e/ou em pessoas que convivem com a criança. Embora as limitações metodológicas do estudo impeçam que se estabeleça uma relação direta entre as duas variáveis, algumas hipóteses podem ser levantadas. Pais com transtornos mentais tendem a ser menos calorosos com os filhos, a ser mais críticos e a utilizar estratégias disfuncionais para a solução de problemas. As crianças deprimidas, por sua vez, tendem a ser mais vulneráveis a coerções e a se tornar alvos dos conflitos familiares. Um terceiro fator são predisposições genéricas pelas quais filhos herdariam a doença psiquiátrica ou, ao menos, uma vulnerabilidade dos pais. Na maioria dos estudos, os familiares acometidos por transtornos recebem diagnóstico de depressão.
A hipótese é que todos esses fatores se potencializem uns aos outros. Os achados do estudo mostram que a presença de estressores em grande número nas famílias de crianças com depressão maior. Esse dado pode ser um alerta para todos os profissionais que trabalham com crianças e adolescentes, e também com adultos, sobre a importância de avaliar a existência de depressão em seus pacientes ou nos filhos de pacientes com problemas familiares. Além disso, os psiquiatras de adultos, especialmente, devem estar atentos à ocorrência de quadros depressivos na descendência dos pacientes com altos índices de transtorno psiquiátrico. Finalmente, estratégias de prevenção de depressão em crianças e adolescentes devem levar em conta os aspectos individuais da criança. E também os fatores de risco para desenvolvimento de um quadro depressivo, especialmente disfunções familiares, dificuldades interpessoais e eventos agudos de vida recentes, encontrados em grande parte nas crianças e nos adolescentes das clínicas psiquiátricas.
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