A DOENÇA DA INCONSTÂNCIA
O transtorno bipolar ainda é uma doença cercada de preconceitos e o diagnóstico nem sempre é fácil; o tratamento deve tanto prevenir as crises quanto controlar os sintomas agudos

Antes do enigma, a ignorância. A pessoa com transtorno bipolar (TB) recebe o diagnóstico pela primeira vez, em média, só dez anos após as primeiras tentativas de tratamento. Antes disso, pode concluir ou ser informada de que sofre dos mais variados problemas, como dependência de drogas, obesidade, distúrbios de caráter e de personalidade, transtorno do pânico. O diagnóstico mais comum é, com certeza, o de depressão.
No caso, depressão unipolar. Infelizmente, ainda são poucos os profissionais da saúde que conhecem o quadro suficientemente bem e podem oferecer orientação adequada para diminuir a angústia tanto do paciente quanto de parentes e amigos.
O TB é traiçoeiro, os sinais e sintomas podem ter inúmeras manifestações num mesmo paciente e variar muito de uma pessoa para outra. Em geral, quem sofre do transtorno tem dificuldade em dedicar-se à carreira profissional, manter a produtividade e o equilíbrio na vida afetiva e cultivar relacionamentos duradouros. Os afetados pelo distúrbio não têm controle do que pensam ou falam durante os períodos de manifestação da doença.
O tratamento medicamentoso é fundamental e complexo, pois exige duas estratégias: a profilaxia (prevenção das crises) e o controle dos sintomas agudos; o acompanhamento psicológico é fundamental para uma boa evolução a longo prazo. A boa notícia é que a abordagem adequada pode garantir uma vida praticamente normal, principalmente se a doença for diagnosticada na fase inicial. Mas quanto mais cedo e mais profundamente o paciente e sua família entenderem o TB, maior a chance de conseguir controlar a doença e tornar suas consequências menos nocivas. E, nesse caso, a informação pode ser considerada parte fundamental do tratamento. É fundamental que as pessoas implicadas na situação sejam informadas de que o TB é uma doença crônica, com causas biológicas (genéticas e outras) associadas a fatores ambientais.

LOUCO, EU?
O diagnóstico de doença mental faz emergir uma série de preconceitos associados a essa condição: incurabilidade, desfiguramento da personalidade, incapacidade de gerir a própria vida, isolamento forçado da sociedade, perda da liberdade e do livre-arbítrio. Essa imagem é tão arraigada em nossa cultura que pode ser exemplificada pelo modo estereotipado como os meios de comunicação a apresentam, principalmente nas novelas. Personagens que sofrem de doença mental podem ser divididos, de forma geral, em dois tipos, os do primeiro grupo são os que nasceram ou sempre foram “loucos”; em geral são “bonzinhos” e, ocasionalmente, podem ter percepções inteligentes (ou até geniais); os do segundo tipo são vilões e podem ter três destinos padronizados: no final, admitem a culpa e se retratam, são presos, ou, quando a maldade é excessiva, ficam loucos e são trancados em manicômios “pelo resto da vida”. Fica claro, por esse padrão, que a pior pena é ter uma doença mental, a loucura é irreversível e a pessoa louca seria, em princípio, má. A imagem do doente mental como alguém desprezível faz com que muitos ainda hoje reajam de maneira exaltada, e até raivosa, quando se sugere que consultem um psiquiatra – ou um psicólogo. A resposta mais comum é: “Eu? Mas não sou louco!”.
É compreensível, portanto, que frequentemente seja questionado o status de doença mental do transtorno bipolar. Afinal, o paciente apresenta reações exacerbadas comuns, que uma pessoa saudável também poderia ter. Qualquer um é capaz, por exemplo, de reagir com raiva diante de frustrações ou injustiças. Porém, o paciente bipolar pode se deprimir ou ficar excessivamente agressivo. Muita gente também já gastou um pouco mais de dinheiro do que pretendia, ou ficou amuada por ter recebido uma notícia ruim. Mas a pessoa com TB vai além: gasta enormes quantias sem nenhum planejamento, a ponto de envolver-se em dívidas para adquirir produtos dos quais não necessita ou, ao receber uma notícia desagradável, fica de cama. Mas como reações exacerbadas podem distinguir uma pessoa com transtorno bipolar? Não seria apenas uma reação peculiar de cada indivíduo, puramente psicológica, sem resultar de alguma lesão ou falha no funcionamento cerebral? Atualmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece o transtorno bipolar como doença. Para ser concebido assim, é preciso que o quadro tenha causas orgânicas bem estabelecidas; sua evolução no tempo e implicações físicas devem ser conhecidas, bem como as possibilidades de tratamento dos sintomas. A maior dificuldade, porém, é definir seus limites, que dependem de avaliações clínicas baseadas em sintomas e sinais, uma vez que não há ainda exames laboratoriais que possam dar o diagnóstico definitivo de transtorno bipolar.
A principal característica do TB é a instabilidade de várias funções cerebrais, que podem ser percebidas na alteração do humor, variando da tristeza profunda à alegria excessiva, transparecendo na ansiedade e irritabilidade que em pouco tempo podem se converter em apatia. Essas variações aparecem associadas à instabilidade do funcionamento do cérebro, tanto no armazenamento de informações (memória) como no controle da atenção (distração excessiva).
É possível haver variação do pessimismo exagerado ao otimismo incontrolável, e a velocidade do pensamento pode aumentar ou diminuir. Alterações no sono e no apetite, tanto para excesso como para falta, também são comuns. Nessas situações, sistemas hormonais costumam ficar desorganizados, refletindo um ritmo biológico caótico ou cíclico, e, não raro, o paciente troca o dia pela noite. Observa-se também diminuição ou aumento excessivo de fundamental para que o ser humano se adapte a situações ambientais que mudam com frequência e exigem acomodações como, eventualmente, dormir mais tarde para participar de um evento social ou terminar de redigir um artigo.
No organismo do paciente com transtorno bipolar esses sistemas de controle funcionam de forma inadequada, o que permite “escapes” e acarreta descontroles, acabando por desorganizar outras funções corporais. As pessoas consideradas saudáveis costumam apresentar pequenas variações nas funções corporais, que se adaptam às exigências do ambiente, enquanto os pacientes bipolares apresentam grandes alterações, que se tornam incompatíveis com os acontecimentos externos. Portanto, é completamente aceitável (e até um sinal de saúde mental) que se sintam, reconheçam e expressem alegria e tristeza, em graus variados, desde que esses sentimentos, deflagrados por fatores externos ou subjetivos, se apliquem ao contexto – e tenham intensidade compatível à situação. No caso dos pacientes com transtorno bipolar, quanto mais as funções que regulam os estados de humor estiverem desorganizadas, mais grave e mais complexo o quadro clínico se apresenta.
Existem duas denominações utilizadas para o distúrbio: transtorno afetivo bipolar e transtorno bipolar do humor, este último considerado atualmente o termo mais adequado. Essa diferença de nomenclatura se dá por causa dos conceitos de afeto e amor, que são tecnicamente diferentes. De maneira simples, o primeiro se refere às emoções que surgem rapidamente diante da alteração de uma situação específica – como o sentimento de alegria quando se ganha um presente, tristeza ao saber que foi mal numa prova, irritação no momento em que o time adversário faz um gol numa final de campeonato ou medo quando alguma dor surge de repente e se pensa na possibilidade de ser vítima de uma doença grave. Já louvores se referem a estados emocionais mais prolongados, que duram horas, dias ou semanas, e podem influenciar a forma de pensar e agir do indivíduo. Um exemplo seria o humor depressivo. Entre outras manifestações, pudemos pensar nesse quadro da seguinte forma: sem motivo aparente, a pessoa acorda vários dias seguidos desanimada, como se a tristeza fosse o pano de fundo de sua vida, as impressões a seu próprio respeito se tornam mais negativas e críticas, ou ela acredita que os colegas ou parentes a avaliam de modo negativo, depreciativo.
O conceito de “transtorno bipolar” é centrado nas alterações do humor – um de seus polos é o humor depressivo e outro, o eufórico. Entretanto, não é só o humor que fica alterado no transtorno bipolar. Muitas outras funções cerebrais e extra cerebrais sofrem mudanças, como as relacionadas aos ritmos biológicos, ao controle dos movimentos corporais (com predomínio de agitação ou lentidão do corpo), das funções de memória e de concentração mental, da impulsividade e dos desejos e das vontades, inclusive do prazer, tanto das pequenas coisas da vida (cuidar da casa, hobbie,) quanto do desejo sexual. O TB seria mais bem compreendido como a doença das instabilidades, sendo a do humor a mais perceptível.
Um aspecto muito bem descrito e sistematizado a respeito do transtorno é a definição das crises, fases ou “episódios” de humor, quando muitos sintomas surgem, definindo um quadro específico. Recentemente, vêm sendo estudadas e descritas com mais detalhes as características que aparecem entre as crises, como temperamentos do tipo irritável, hiperativo, depressivo, impulsivo e as consequências no cotidiano desse modo de ser instável, como dificuldades de relacionamento, de permanecer em um emprego ou manter amizades duradouras.
Embora o TB comporte quatro tipos de episódios patológicos – caracterizados como depressivo, hipomaníaco, maníaco e misto -, pode ser considerado, basicamente, uma doença depressiva, pois a maioria dos pacientes passa grande parte de sua vida nesse polo da doença. Existem, porém, formas mais leves de manifestação desses episódios, nas quais se misturam características da própria pessoa, parecendo compor uma estrutura de base, um temperamento que se manifesta na infância ou na adolescência e se confunde com o “jeito de ser” do indivíduo.

FACES DA DEPRESSÃO
Além da conotação patológica, a palavra “depressão”, em geral, traz à memória das pessoas as fases ruins da vida. Em alguns contextos, o termo é usado de modo abrangente em analogia com os períodos de crise econômica. Também se tornou comum usar a palavra como sinônimo de tristeza, desespero ou angústia. A depressão costuma ser deflagrada por uma perda significativa como a morte de um ente querido, a perda do emprego, uma desilusão amorosa, ou mesmo numa fase da vida altamente estressante por causa do trabalho ou de problemas familiares. Estimativas da OMS a apontam como a doença psiquiátrica mais diagnosticada anualmente, ocupando o quarto lugar entre os principais problemas de saúde do Ocidente. Só no Brasil se estima que aproximadamente 10 milhões de pessoas sofrem de depressão.
O fato é que, do ponto de vista clínico, a depressão afeta a forma de o indivíduo pensar, agir e ser e deve ser encarada como um problema de saúde que afeta não só o cérebro e o estado psicológico, mas também praticamente todo o organismo.
A tristeza, característica frequente da depressão, é uma experiência universal. É uma emoção experimentada de maneira negativa, desagradável, que, do ponto de vista evolutivo, parecesse vir como um “aprendizado”, para que, no intuito de não revivê-la, o indivíduo evite situações desagradáveis no futuro. Em termos gerais, podemos pensar que, se um aluno tira uma nota baixa na escola, a tristeza de passar por essa situação, associada ao fracasso, o levaria a reavaliar sua forma de estudo, para que não recebesse avaliação ruim novamente. Segundo talteoria, a tristeza deflagra o movimento introspectivo, as pessoas se isolam um pouco do mundo externo “recolhendo-se” para refletir sobre como a situação desagradável aconteceu e como seria possível proceder para que não voltasse a ocorrer. Dessa maneira, a tristeza ajudaria no processo de amadurecimento, nos preparando para enfrentar melhor uma vida que é, por natureza, repleta de perdas e frustrações inevitáveis.
Ela pode surgir no dia-a-dia, como resultado de algo ruim que ocorreu, ou quando lembranças de fatos passados a provocam. Em geral, nesses casos, tem pequena intensidade e curta duração. O estado mais insistente, chamado de humor depressivo, contamina a percepção do que se passa naquele período. Uma situação habitual do cotidiano, como ver uma criança pedindo esmola numa esquina, pode ser percebida de maneira mais angustiante se o indivíduo estiver com o humor depressivo, ao passo que, em outro momento, essa mesma situação causaria mal-estar passageiro, indiferença, ou até raiva.
O humor depressivo, geralmente associado a uma perda, costuma aparecer vinculado a um mal-estar físico, como um resfriado ou com a fase pré-menstrual. Muitas vezes pode vir com sensações físicas, como inquietação, ansiedade, vontade de chorar, sensação angustiante depressão ou de peso no peito.
Mas até que ponto esse sentimento pode ser considerado normal, e quando passa a ser psicológico, ou seja, ser sintoma de depressão? Embora não seja um critério muito preciso, é possível levar em conta seu tempo de duração. A tristeza torna-se preocupante, por exemplo, se ela predominar em grande parte do dia do paciente, ou se ocorrer na maioria dos dias. Sua intensidade é um critério bem pouco preciso, pois cada um tem a sua própria “medida” para avaliá-la,e o que é intenso para um seria quase imperceptível para outro. Além disso, ela pode variar de acordo com o momento do dia, podendo, assim, distorcer a percepção de intensidade. Uma pessoa que recebe uma notícia ruim pode sentir uma angústia profunda, que dura alguns minutos, e se lembrar de ter tido um dia muito triste. Já outra, que sente tristeza moderada todos os dias, quase o tempo todo, pode considerar essedia normal, igual ao anterior ou ao da semana passada, em que também estava triste.
Porém, quando acontece de a pessoa ficar chorando, frequentemente, por motivos que aparentemente não se justificam, ou quando sente angústia, numa imensidade difícil deser tolerada, algo que claramente afete seu cotidiano, essa tristeza pode ser considerada excessiva. Em geral, as pessoas têm mais dificuldade para diferenciar a tristeza chamada normal de sua manifestação patológica (típica da depressão) quando ela surgirapós um evento justificável, como a perda de um ente querido, o que poderia justificar plenamente uma tristeza mais intensa e duradoura. Embora esse tipo de situação acabe provocando grande tristeza na maioria das pessoas, passadas algumas semanas ou meses (dependendo do caso), a tendência é que o indivíduo retome suas atividades, apesar da dor da perda e da saudade. Quando essa tristeza se prolonga e, principalmente, se a tristeza interfere na vida do indivíduo, provavelmente se trata de um sintoma patológico.
Muitas vezes, a pessoa que sofre de tristeza patológica tem dificuldade de admitir que está doente e justifica sua condição com argumentos como desemprego, solidão, dificuldades financeiras ou a incompreensão de pessoas importantes em sua vida. O que essa pessoa raramente percebe é que outros passam por circunstâncias similares e podem reagir de outras maneiras – e que várias dessas situações podem ser consequência e não causa da melancolia.
RISCOS DA MANIA
O termo “mania” costuma ser entendido pelos leigos como um comportamento inusitado e repetitivo. Já “maníaco” descreve aquele indivíduo que tem comportamentos extremamente desviados da normalidade aceita, geralmente associados a perversões. Para profissionais da área da saúde, porém, o termo “mania” representa o polo eufórico do transtorno de humor. O curioso é que, apesar de a euforia excessiva ser muito característica e evidente nesses quadros, ela nem sempre está presente num episódio maníaco. Os sintomas mais comuns são irritabilidade (que pode derivar para agressividade ocasional) e hiperatividade. Outros sintomas da mania são a diminuição da necessidade de sono, autoestima repentinamente elevada, fala excessiva, dificuldade em focar a atenção e envolvimento com atividades prazerosas, porém perigosas – como compras e gastos excessivos, atos impulsivos, uso de drogas, indiscrições e aumento da atividade sexual.
O paciente em mania não percebe a própria alteração, tem a impressão de estar extremamente bem, como se vivesse a melhor fase de sua vida. Para ele, são os outros que têm problemas. Em alguns casos, a pessoa nesse estado, com agressividade e impulsividade exacerbadas, precisa ser protegida de si mesma, já que nessa fase do transtorno pode cometer atos dos quais se arrependerá no futuro, daí a necessidade de internação em determinadas situações. É comum que, a pós o término de uma crise de mania, o paciente se envergonhe de suas atitudes.
A euforia pode ser definida como uma alegria excessiva e exagerada, que se mantém independentemente dos acontecimentos externos. A pessoa nesse estado apresenta otimismo exacerbado e se relaciona com pessoas com muita facilidade, principalmente quando se trata de estranhos. Nas formas mais graves, chega a acreditar que pode ser famosa. É comum que ocorram mudanças súbitas de humor, quando se lembra, por exemplo, da morte da mãe, irrompe em prantos, para depois de alguns minutos continuar a rir.
A pessoa tenta fazer muitas coisasao mesmo tempo, tem dificuldade para ficar parada, não consegue se concentrar em uma única atividade e se distrai com facilidade. Alguns chegam a apresentar ilusões auditivas ou visuais e manifestar comportamentos paranoicos. Esses sintomas podem ser confundidos com os de esquizofrenia, principalmente se ocorrem no início da doença. Também há probabilidade de surgir crises deansiedade, de pânico (com mal-estar físico pronunciado: sudorese, taquicardia, falta de ar, vertigem etc.) ou sintomas obsessivos. Nem todas essas manifestações aparecem em uma crise de mania, mas podem dificultar o diagnóstico.
Tecnicamente, a hipomania é uma fase de mania mais leve, com os mesmos sintomas, porém menos intensos e evidentes. Na prática, pode ser considerada “invisível”, pois em geral passa despercebida e pode ser interpretada como umafase de maior produtividade no trabalho, criatividade e socialização. Mas há um fato relevante: a hipomania é um indicador de que a pessoa sofre de transtorno bipolar.
ESTADOS MISTOS
Os sintomas do transtorno bipolar nem sempre se apresentam em bloco, como típicos de depressão ou mania/hipomania. Comportamentos maníacos podem aparecer no meio de um episódio depressivo – e vice-versa. Quando existe essa “mistura”, o reconhecimento e o tratamento ficam confusos, com quadros depressivos em que a agitação é marcante, que podem piorar com o uso de antidepressivos, e manias com ideiasdepressivas que são confundidas com depressão. No começo do século XX, o psiquiatra alemão Emil Kraepdin, que definiu a base dos diagnósticos psiquiátricos atuais, já tinha descrito uma série de variações dos chamados “estados mistos”. Trata-se de um a forma potencialmente grave do transtorno, pois, quando há mistura de agitação e pensamentos de morte temperados com grande impulsividade, o risco de ocorrer suicídio é enorme.
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