AUTISMO COMO TRANSTORNO DE PREDIÇÃO
Uma nova teoria concebe o autismo como relacionado à dificuldade de prever corretamente a sequência de acontecimentos

Pensamos normalmente na magia de forma poética, imaginando que seria algo desejável viver em um mundo com encantamento. No entanto, para as pessoas com características do espectro autista, a magia pode extrapolar a capacidade de lidar com as situações do cotidiano e se transformar em um pesadelo. Uma nova teoria coloca a magia como um aspecto central da cognição do transtorno autista, apontando o papel da previsibilidade na vida mental das pessoas com essa condição.
Segundo essa teoria, alguns aspectos salientes do fenótipo do autismo podem ser manifestações de um comprometimento nas habilidades de previsão, que leva indivíduos com autismo a enxergar o mundo como um lugar aparentemente mágico, tornando a leitura da realidade esmagadoramente complexa e comprometendo a capacidade de interação.
Um mundo em que os eventos ocorrem inesperadamente e sem casualidade identificável se torna assustador e imprevisível. Com essas condições temos o componente essencial de um fenômeno mágico: a falta de uma causa discernível. Um evento que não podemos prever acontece aparentemente de forma aleatória, como se ocorresse por magia. Se as nossas habilidades preditivas foram de alguma forma prejudicadas, então até ocorrências banais e cotidianas no ambiente podem parecer mágicas. Um mundo mágico envolve falta de controle e implica em perda da capacidade de realizar ações preparatórias
O autismo envolve dificuldades de comunicação social e comportamentos repetitivos que podem estar associados a uma diminuição da capacidade de discernir relações preditivas entre entidades ambientais.
Além disso, a insistência na mesmice é uma característica do autismo, exibida por mais de um terço de todos os indivíduos no espectro autista. Esses pensamentos e ações repetitivos podem incluir rigidez comportamental, apego exagerado as rotinas, resistência à mudanças e adesão obsessiva aos rituais.
Podemos imaginar um link entre as deficiências preditivas e insistência em rituais. A imprevisibilidade do ambiente está firmemente associada com a ansiedade. A previsibilidade é fundamental e uma redução na capacidade de prever eventos, mesmo sem qualquer consequência negativa aumenta a ansiedade.
Estudos com humanos e animais revelam que o ritualismo envolve comportamentos que emergem sob condições de imprevisibilidade como uma resposta calmante a um estressor imposto externamente. Isso sugere que rituais e uma insistência na mesmice podem ser uma consequência e uma forma de reduzir a ansiedade decorrente da imprevisibilidade. Permanecer em um script é o único meio de manter a ansiedade no mínimo, na verdade uma maneira de se adaptar a um ambiente caótico.
O stimming, ou comportamentos auto estimulantes se torna mais saliente em situações estressante sugerindo que esse padrão pode ser uma resposta a um mundo caótico, como uma tentativa de abafar o fluxo de informações ambientais imprevisíveis por estimulação autogerada mais previsível.
Outro aspecto do autismo, já verificado em vários estudos anteriores é sua dificuldade com a “teoria da mente”, a capacidade de imaginar outras mentes que não a sua própria. Uma teoria da mente é inerentemente uma tarefa de previsão. Requer a capacidade de atribuir coisas invisíveis a observações sobre uma pessoa, conectando o histórico passado com o comportamento atual, de forma a deduzir por que uma pessoa agiu de determinada maneira, ou mesmo antecipando como uma pessoa está propensa a agir.
O prejuízo na previsão tornaria um observador com dificuldade preditiva incapaz de situar observações atuais sobre um indivíduo no contexto de seus antecedentes ou estudos futuros prováveis. O observador vai inevitavelmente interpretar as situações humanas como sendo literais e acontecendo no momento, sem influência da história passada e sem conexão com eventos futuros.
Um indivíduo autista, não tendo a sua capacidade preditiva, fica limitado a interpretar se comportamentos das pessoas sem qualquer histórico motivador, o que torna o mundo das relações humanas misterioso e enigmático, sendo potencialmente aversivo.
Finalmente, autistas têm uma apreciação reduzida de senso de humor. Um componente central do humor é a violação da expectativa, ou seja, achamos engraçado quando uma sequência previsível é quebrada com um imprevisto. Podemos exemplificar com a anedota do sádico e a masoquista. A masoquista suplica ao sádico “me bate” e a resposta do sádico é “não”! Existe uma previsão de como uma determinada sequência se desdobra, e ocorre um desvio dessa previsão, o que geralmente implica um resultado humorístico. Com dificuldades ao fazer uma previsão, um indivíduo autista não consegue detectar a quebra de previsibilidade e não acha graça. Portanto, a capacidade para perceber o humor em narrativas ou observações é diminuída no autismo.
Essa noção de dificuldades na previsibilidade como elemento essencial nos fenótipos autistas pode levar a melhoramentos no diagnóstico e mesmo nos tratamentos dessa difícil condição.
MARCO CALLEGARO – Épsicólogo, mestre em Neurociências e Comportamento, diretor do Instituto Catarinense de Terapia Cognitiva (CTC), e do Instituto Paranaense de Terapia Cognitiva (IPTC). Autor do livro premiado O Novo Inconsciente: Como a Terapia Cognitiva e as Neurociências Revolucionaram o Modelo do Processamento Mental (Artmed, 2011)
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