JOIA DILAPIDADA
A Esposa é aparentemente despretensioso, mas evidencia as batalhas das mulheres para afirmarem seus diferentes talentos em um mundo ainda comandado pelos homens

Dirigido pelo sueco Bjorn Runge e baseado na obra homônima de Meg Wolitzer, o filme em tempos de discussões acaloradas sobre salários equivalentes na glamourosa Hollywood é uma verdadeira e sutil bofetada com luvas de pelica. Glenn Close mereceu o prêmio Globo de Ouro por essa atuação que lhe exigiu uma contenção que talvez lhe tenha sido bastante difícil se pensarmos na trajetória dessa atriz. Fez lembrar sua magnífica interpretação em Albert Nobbs (2011), quando assim como por esse desempenho foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz, mereceria o prêmio pelas duas atuações.
QUESTÕES DA HUMANIDADE
O espectador é apresentado aos poucos a Joan Castleman (Glenn Close) e seu marido, o escritor Joe Castleman (Jonathan Pryce), que fica sabendo que ganhou o Nobel de Literatura por seu comovente conjunto de obras que tocam a humanidade em questões fundamentais, isso dito por seu anfitrião na cerimônia de entrega do prêmio. O filme acompanhará justamente todo o período que cobre o comunicado da vitória e a ida à cerimônia de entrega na Suécia.
Para ajudar a pensar sobre a escolha que Joan Castleman supostamente encaminha para sua vida, talvez seja bom ter em mente que em 114 premiações do Nobel de Literatura, apenas 14 foram dados para escritoras. “A necessidade é de ser lida”, diz uma outra escritora personagem do filme, Elaine Mozell, interpretada pela nossa conhecida Lady Crawley de Downton Abbey, Elizabeth McGovern. O filme encaminha com muita competência a questão central, capturando o espectador com a trama na qual se apoia, bem envolvente mesmo. Para colaborar ainda mais um pouco para pensar no debate que ele propõe, poderemos sugerir a busca de dados sobre as inúmeras mulheres escritoras que para terem suas obras publicadas, ou mesmo para que não fossem declaradas loucas, adotaram nomes masculinos, porque praticamente até o início do século XX não era bem recebido pela sociedade que uma mulher desejasse escrever outra coisa que não cartas de amor e de amizade. Há um filme excelente para abordar isso, Ópio: Diário de uma Louca / Opium:Egy Elmebeteg no Naplója [2007], de János Szász.
Há muitas escritoras que só tiveram seus nomes femininos levados a público depois de falecidas, como, por exemplo, Amantine Dupin, que escrevia como George Sand e foi amiga de muitos escritores influentes de sua época, como Balzac, Flaubert, amante de Chopin e do poeta Alfred de Musset. Embora tivesse apoio de todos, permaneceu publicando com o seu pseudônimo masculino. Muitas outras, como a hoje muito famosa Jane Austen, recorriam a publicações anônimas, que foi o caso da sua consagrada obra Orgulho e Preconceito, onde na autoria no original lia-se: “Escrito por uma dama”. Muitas recorreram a esse artificio como temos aqui no Brasil como exemplo o caso de Maria Firmina dos Reis, autora do romance Úrsula (1859), considerado por alguns historiadores como o primeiro romance abolicionista da literatura brasileira, o qual assina como “uma maranhense”. As irmãs Bronte, que publicaram com nomes masculinos Currer (Charlote), Ellis (Emily) e Acton Bell (Anne). Esses são apenas alguns casos dos mais conhecidos. Após ver o filme, resta inevitável pensarmos em quantos casos não conhecidos poderão ainda se ocultar por detrás de autores reconhecidos. Vale a curiosidade, já há sites e pesquisas publicadas buscando dar sustentação à descoberta dos nomes de muitas dessas escritoras.
A personagem Joan era uma tímida aluna universitária (Annie Starke) do já reconhecido professor Joe Castleman, ao escrever um conto para a matéria dele que frequentava, acabará por chamar sua atenção. Ali ele já percebe nela um grande talento natural para a escrita. Aos poucos eles se aproximarão amorosamente e ele deixará seu casamento para ficar com ela. Ele finaliza seu primeiro livro e Joan o criticará pedindo para editálo, no que ele após uma crise acabará consentindo. Ele fará muito sucesso a partir dessa obra e sua carreira brilhará. Joan se apresentando socialmente sempre ao lado de Joe e fornecendo a ele toda a sustentação funcional que se costuma exigir de uma boa esposa. Eles têm dois filhos, uma filha grávida prestes a dar à luz, Susannah (Alix Wilton Regan), e David (Max Irons), que também é escritor e busca angustiadamente a aprovação de seu pai. Durante a estadia de Joan e Joe em Estocolmo para a cerimônia do Nobel, o jornalista Nathanial Bone (Christian Slater) se aproximará de Joan dizendo a ela que está escrevendo uma biografia sobre Joe Castleman e lhe fala sobre suas desconfianças sobre a verdadeira autoria da obra dele. Oficialmente está posto que Joan deixara de escrever após seu casamento com Joe, sendo ele o escritor da família. O jornalista tem como pista o único conto assinado por Joan que fora publicado em um jornal da universidade.
EXTRAVAGÂNCIAS
A perspectiva de Joan pode ser abordada de pelo menos duas maneiras, uma a vitimiza e a outra a coloca como uma mulher que resolveu se adequar passivamente aos ditames de lugar social, tirando disso sua gratificação. O enredo mostra o quanto a premiação do Nobel pela obra de seu marido desarrumará um acordo até então vivido como se fosse algo assentado e tranquilo. Joan viveu até então voltada para a organização de sua família, enfrentando ao longo das décadas de sua união com Joe inúmeras vivências de infidelidade do marido que mantinha casos extraconjugais com colegas e alunas. Em determinado trecho, Nathanial Bone dirá a ela que tomava isso apenas como extravagância muito comum em homens geniais, fica como ironia diante do que o filme revelará. O discurso de poder é sempre abordado a partir de uma ordem falocêntrica, ao comportamento masculino tudo ganhará contornos de enaltecimento e não de crítica ou questionamento. A Joan que Glenn Close construiu é absurdamente convincente, faz pensar em tantas mulheres cuja inteligência ficou guardada como segredo de família. Toda opressão a qual ela é submetida é como uma “doce prisão” que tantos romances escritos por homens quiseram convencer as mulheres a “ser” o lugar que lhes cabia, abnegadas e amorosas servindo ao bem maior da família e em primeiro lugar ao marido. O dote, hábito adotado até o século XX, que entregava a herança das filhas para administração e gasto de seus maridos, assume no longa um entendimento amplo e metafórico.
As mulheres não pertencentes à classe operária ganharam o mundo do trabalho mais fortemente a partir da Segunda Grande Guerra, e de lá em diante não quiseram retornar passivamente ao lugar que lhes era destinado antes disso. Com a chegada da pílula anticoncepcional, a liberdade sexual marcou bastante da nova subjetividade que ela podia construir, dona de seu corpo e prazer, trazia como correlato a isso uma exigência em ser mais amplamente reconhecida. Foram aos poucos deixando de passar adiante a assinatura por suas obras, descobertas, invenções, produções etc. Na história do cinema temos a polêmica em torno do nascimento do filme ficcional, não mais documental fotográfico. É comum atribuir a Geórges Mélies o surgimento dessa forma de fazer filmes, porém hoje sabemos que a diretora francesa Alice Guy Blaché já fazia filmes dessa maneira ao que se tem notícia em 1896 (La Fée aux Choux/A Fada do Repolho) muito antes de Mélies, que mereceu até urna belíssima e merecida homenagem feita por Martin Scorsese em seu Hugo (2011), embora talvez sua posição na história possa ser revisitada.
Todos os anos as grandes premiações do cinema voltam a ter que enfrentar o questionamento não somente sobre equiparação salarial entre atores e atrizes, mas também pela baixa presença feminina em postos de comando, assim como no recebimento de prêmios que marcadamente têm sido dados aos seus colegas homens. O talento feminino ainda mais incomoda do que é objeto de admiração, a linguagem propriamente feminilizada ainda é bastante estranha a todo um entendimento construído a partir de premissas bem condizentes ao poder másculo predominante; nesse sentido, a personagem de Joan Castleman, em todo seu vigor discreto e aparentemente bem combinado com o dito de que “por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher”, é um convite a profundas reflexões, contém um tremendo toque de ironia. Nossa anti-heroína ensina mais que produções de um protótipo de Mulher Maravilha. Revela o que se oculta ainda como uma resistência a entender a igual possibilidade de sujeitos, independentemente da marcação de gênero produzir o que há de melhor na humanidade.
Joe Castleman surge como a própria denúncia do ilusionismo alimentado sobre a superioridade masculina, mais aparência que essência, mais jogo de cena do que visceralidade, mais virtualidade do que honesta exposição, o rasgar-se que toda boa escrita necessariamente inclui.
MERCADO FEMININO
Toda pena é feminina, não importa o gênero que a sustenta. Desnudar-se nas letras que compõem o que nos forma nas palavras, ou como diria Dider Anzieu em sua obra O Eu Pele: “A palavra do outro, se oportuna, viva e verdadeira, permite ao destinatário reconstituir seu envelope psíquico (…]. Isto assim funciona na amizade, na cura psicanalítica, na leitura literária”. O que Joan introduz nas histórias criadas por Joe é essa coisa viva e verdadeira. Um casamento que poderia ser perfeito, mas que se perde justamente na capacidade masculina de oprimir e se apropriar de tudo que lhe confere poder. O ouro da pena.
Os filhos do casal talvez representem a tensão que sustenta essa trama familiar, filhos que foram afastados do convívio da mãe, que passava horas trancada no escritório produzindo as joias da família. Joan, a certa altura, quando enfim explode o não dito desse grupo, falará sobre isso com muita dor. O filho, David, estupefato, perguntará ao pai como pôde fazer isso à sua mãe, dilapidá-la de tal forma…Joe sofre quando tem que enfrentar a provável ausência de sua sustentação, da farsa que seria enfim denunciada, seu coração não resiste e assina o derradeiro acordo. O espectador atento poderá se perguntar ao final se Joan será capaz de silenciar-se, já que entende que quem escreve o faz como necessidade quase igual a alimentar-se, ter algo a dizer ao mundo não é uma coisa da qual se possa abrir mão. A continuação da história se dará após os créditos na imaginação de cada um que for tocado por essa bela e potente produção.

Você precisa fazer login para comentar.