DOAR PARA GANHAR
É importante ensinar às crianças quais suas necessidades reais de consumo, aprender a olhar a necessidade do outro e ter em mente que esse é um processo de amadurecimento
No começo de uma nova estação do ano, ou antes de datas festivas, quando novas roupas, brinquedos e coisas serão adquiridos, é comum as famílias separarem peças de vestuário, objetos e jogos usados para doar a instituições e, assim, conseguir criar um espaço destinado a guardar as coisas novas e deixar tudo em ordem para o novo período.
Sobre vários aspectos, essa é uma ação importante e louvável. Constitui ato de cidadania que deveria fazer parte da rotina de todas as famílias. Além disso, é uma forma de ensinar às crianças e jovens que objetos que eles já não usam nem precisam podem ser de grande valia para outras pessoas. Um aprendizado de valores e convívio em sociedade.
Tomar consciência de possuir peças repetidas, roupas sem uso, livros que nem foram lidos, brinquedos na caixa que ninguém nem lembra de ter ganhado, ao serem vistos, traz à razão o quanto podemos ser perdulários, consumistas.
É uma boa hora para se refletir sobre um outro lado da questão: podem os pais, sem risco de desrespeitar os filhos como pessoas, dispor das coisas que lhes pertencem, sem os comunicar? Até que ponto essa decisão é dos pais e até onde os filhos devem ser ouvidos? Qual a idade certa para a criança opinar?
Todos lemos objetos, roupas e livros que consideramos especiais, quer porque nos agradam muito, nos foram oferecidos por alguém muito querido, em uma data memorável, ou porque têm um valor simbólico e sentimental inestimável. Por que não pode ser assim para as crianças? Elas devem participar dessa seleção e ter oportunidade para manifestar sua opinião!
É conveniente, antes de tudo, explicar por exemplo que se precisa do espaço para guardar os no vos materiais escolares no lugar dos antigos e até trocar com outras crianças alguns jogos que se tornaram desinteressantes porque elas estão mais amadurecidas. No caso de resistência exagerada, os pais devem ser mais persuasivos e até firmes, pois sempre há aquelas crianças que não se desprendem de nada, não conseguem abrir mão mesmo de coisas pelas quais nunca mostraram interesse. E esse é um aprendizado necessário e formativo para todos, embora possa demorar algum tempo para se tornar uma rotina familiar tranquila.
Mas deixar de atender todos os pedidos dos filhos em favor da manutenção de um brinquedo especial, ou qualquer outro bem de valor sentimental, é uma medida que vai consolidar a ideia de que as coisas estão sendo “roubadas” deles, sem respeito algum pelos seus sentimentos pessoais. E isso vai torná-los mais egoístas, diminuindo ou mesmo fazendo desaparecer o espírito de colaboração social e de desprendimento que se objetivava ensinar.
Talvez algumas estratégias precisem ser adotadas pelos familiares encarregados dessa tarefa em relação aos pequenos. Em primeiro lugar, fazer disso um hábito periódico, para que a criança desde cedo se acostume. Segundo, a arrumação deve começar pelos armários dos próprios adultos e as crianças podem acompanhar a tarefa, ajudando a empacotar e etiquetar, por exemplo. Assim também começam a compreender o que significa doar, o que vai acontecer com as coisas depois que forem separadas e as razões para fazer essa doação. A postura dos adultos nesse momento é decisiva para o sucesso do aprendizado: contar como foi levar as coisas para este ou aquele local, como foi recebido e para que foi utilizado.
Terceiro, antes de retirar as coisas dos armários das crianças é aconselhável explicar o critério que será usado na seleção das coisas dela: brinquedos já muito usados, que perderam o interesse para sua idade, roupas justas, pequenas, livros que não serão mais usados etc. Podem ser colocadas caixas ou sacolas para cada fim.
Ao separar o material, mostrar à criança peça por peça e perguntar o que ela acha que deve ser doado. E estar atento para a sua atitude para poder intervir com sensibilidade e serenidade, antes que os problemas comecem. A doação deve ser pensada e espontânea.
Dar à criança a oportunidade de pensar o que deseja ou precisa guardar é respeitar sua maneira de lidar com perdas e seu grau de maturidade. Por muitas vezes a própria criança acaba por entregar para doação e com grande desprendimento algo que horas antes tanto queria guardar.
A maior lição, entretanto, está justamente no ensinar aos mais jovens que o respeito pelo outro independe de hierarquia, de poder ou de força. O respeito é um exercício de deferência ao direito do próximo e enobrece a imagem de quem, podendo simplesmente dar ordens por ser o mais velho ou ter maior poder, se preocupa verdadeiramente com o outro.
Aliás, a doação não precisa ser apenas de objetos, pode ser de tempo, de atenção aos outros: escrever um bilhete ao amigo doente, doar uma tarde de domingo para ajudar em um mutirão, participar em um bazar beneficente. Tudo depende da idade e interesse da criança: se aos 3 anos já pode opinar sobre os brinquedos e roupas que deseja doar, antes dos 10 anos visitar creches e asilos pode não ser para todas uma boa ideia.
De toda forma, doar tempo, atenção ou objetos faz muito bem a quem doa, pois estimula a empatia e a solidariedade, aumenta a autoestima por ter aprendido a ser generoso e menos consumista.
MARIA IRENE MALUF – é especialista em Psicopedagogia, Educação Especial e Neuroaprendizagem. Foi presidente nacional da Associação Brasileira de Psicopedagogia – ABPp (gestão 2005/07). É autora de artigos e publicações nacionais e internacionais. Coordena cursos de especialização em Neuroaprendizagem. irenemaluf@uol.com.br
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