REMÉDIOS DA FLORESTA
O uso de tecnologia de ponta contribuirá para um melhor aproveitamento da biodiversidade nacional na produção de medicamentos
Quando se contempla, a olho nu, o céu, límpido, à noite, o brilho mais intenso – capaz de sequestrar, inapelavelmente, nossa visão – é o que vem da estrela Sirius. Não por acaso ela chamou a atenção de poetas como o latino Horácio (6.5 a.C. 8a.C.), monumento literário da Antiguidade. Não por acaso ela empresta seu nome ao extraordinário acelerador de partículas que entra em operação em 2020 e constitui um dos mais ambiciosos empreendimentos da ciência brasileira. Com investimentos da ordem de 1,8 bilhão de reais, o Sirius ajudará a jogar luz sobre várias áreas do conhecimento. Suas primeiras aplicações serão no campo da medicina.
Situado em Campinas (SP), no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) – uma organização da sociedade civil que recebe recursos federais -, o Sirius será utilizado para ajudar em quebra-cabeças cuja resolução possibilitará o desenvolvimento de medicamentos com princípios ativos descobertos em meio à biodiversidade brasileira. Para tanto, o projeto Brazilian Biodiversity Molecular Power House (MPH) – batizado em inglês para facilitar sua inserção global – dedica-se a desvendar e analisar a estrutura de moléculas naturais de plantas, ervas etc. oriundas de várias regiões do país. Como fonte da chamada “luz sincrotron”, que permite enxergar substâncias em escala de átomos, o Sirius vai se alinhar entre os mais avançados equipamentos do gênero em todo o planeta – só a Suécia possui hoje algo similar.
A fim de dar curso a pesquisas que possam levar à produção de remédios realmente efetivos contra doenças ainda sem cura, como Alzheimer e Parkinson, o MPH trabalhará com parcerias, como a que firmou com a empresa nacional Phytobios, responsável pela realização de expedições regulares de bioprospeccão a quatro biomas brasileiros: Amazônia, Cerrado, Caatinga e Mata Atlântica. Anualmente entre três e cinco viagens são feitas para a coleta de material. A biblioteca de amostras da empreitada já tem mais de 600 espécies – e a tendência é aumentar. O Brasil, a nação mais biodiversa do mundo, figura como o laboratório vivo com maior potencial para despontar nessa área. Segundo Cristina Ropke, CEO da Phytobios, a opção pelos negócios sustentáveis é um modo estratégico de valorizar a floresta. “Com a extração de recursos naturais de forma controlada e responsável, podemos dar valor à natureza sem desmatar. Em vez de derrubarmos para criar pastos, vamos manejar para encontrar fármacos”, diz ela.
O laboratório farmacêutico nacional Aché foi o primeiro a apostar nos resultados do projeto iluminado pelo Sirius – ainda em 2017 ele firmou um contrato para o desenvolvimento de dois medicamentos. Com investimento inicial de 10 milhões de reais, o grupo espera encontrar resultados positivos para tratamentos oncológicos e para problemas de pele (nesse caso, com a produção de um fármaco ou mesmo de um cosmético). Até que um novo produto chegue ao mercado, o que deve ocorrer em treze anos o investimento poderá alcançar 200 milhões de dólares. De acordo com o diretor de inovação e novos negócios da Aché, Stephani Saverio, são poucas as drogas genuinamente baseadas em matérias-primas nativas do país – cenário que poderá se transformar de modo expressivo a partir das pesquisas com o Sirius. Entre as substâncias já aproveitadas pela indústria farmacêutica está a tubocurarina. um alcaloide venenoso que é o principal constituinte do curare, usado pelos índios sul-americanos em flechas para caça, e apresenta propriedades de relaxante muscular. Outra descoberta brasileira foi o peptídeo bradieinina, isolado do veneno da jararaca, importante para a terapia da hipertensão. Como exemplo se poderia citar ainda a pilocarpina, encontrada no jaborandi e usada para tratamento de glaucoma e de xerostomia, um efeito adverso de boca seca provocado pela radioterapia com pacientes com câncer.
Por enquanto, o MPH vem conduzindo suas pesquisas no Laboratório Nacional de Luz Sincrotron, dentro do CNPEM, valendo-se de uma versão de acelerador anterior ao Sirius, chamada UVX, que está em operação há mais de vinte anos. Uma das diferenças entre as duas gerações desses equipamentos é a qualidade na resolução das imagens obtidas. Com um brilho maior e mais potente, o Sirius permitirá ver, e de forma mais rápida, detalhes que o UVX não tem potência para decodificar.
Para além do uso no desenvolvimento de fármacos, o Sirius será empregado, segundo o diretor-geral do CNPEM, Antônio José Roque da Silva, em áreas tão distintas quanto a exploração de petróleo e a paleontologia. “Temos o melhor instrumento. Para utilizá-lo adequadamente, precisamos de um investimento forte em ciência e tecnologia como política de governo. Sem a formação de cientistas e universidades consolidadas, não teremos as pesquisas de altíssimo nível que farão bom uso do Sirius”, enfatizou Roque da Silva. Nenhum país avança quando fecha os olhos para o firmamento científico.
NA VELOCIDADE DA LUZ
Como funcionará o acelerador de partículas Sirius, que vai entrar em operação em 2020 e, entre outras aplicações, poderá trazer soluções para a criação de remédios extraídos de moléculas de espécies brasileiras
1 – Um canhão libera elétrons – partículas de carga negativa -, que são acelerados linearmente e atingem uma velocidade próxima à da luz. O feixe de elétrons entra em uma trajetória circular e ganha ainda mais velocidade e energia.
2 – Movimentando-se em alta velocidade e com muita energia, os elétrons têm sua trajetória desviada pelos campos magnéticos criados por imãs presentes no acelerador. Forma-se, então, um tipo de radiação de amplo espectro e alto brilho, a chamada luz cincroton.
3 – O feixe de luz sincroton é direcionado para as amostras de cada estação de pesquisas do laboratório, revelando informações sobre o material analisado – no caso de exemplares extraídos de biodiversidade nacional, dados como formato e estrutura das moléculas que agirão como remédios no combate a diferentes tipos de doença.
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