OBSTÁCULOS A SEREM VENCIDOS
Fatores psicológicos na formação de adolescentes e adultos jovens os deixaram mais vulneráveis ao sofrimento e à depressão, e a resiliência pode ser um aspecto esclarecedor para entender esse fenômeno
Nas entrevistas sobre transtornos de humor que concedo a diversos tipos de mídia, uma pergunta quase obrigatória é sobre um suposto aumento da prevalência de depressão em nosso meio. A percepção do aumento do número de casos é quase unânime, mas sabemos que uma percepção não corresponde necessariamente a um fato. Qualquer afirmação que se faça sobre algo tão objetivo quanto a epidemiologia de um transtorno deve estar obrigatoriamente embasada por dados. Minha resposta invariavelmente versava sobre a maior divulgação e o menor grau de preconceito e estigma em relação à depressão.
Apesar de ainda precisarmos avançar muito nesses pontos, há uma compreensão crescente sobre os transtornos psiquiátricos em geral e sobre a depressão em particular, o que leva ao maior reconhecimento dos quadros e a diálogos mais abertos sobre o tema, nos diversos níveis sociais. Isso pode conduzir à percepção de que estamos tratando de um problema da contemporaneidade ou que, no mínimo, recrudesceu em nossos tempos. Esse era meu comentário até o final de 2017, quando um grande estudo populacional norte-americano trouxe dados reveladores. Mais de 600 mil pessoas dos 50 estados e do distrito de Columbia foram seguidas de 2005 a 2015.A prevalência de depressão no último ano subiu de aproximadamente 6,6% para 7,3%. Veja abaixo quadro Evolução na prevalência de depressão no último ano nos EUA de 2005 a 2015.
Tal elevação pode parecer discreta, mas duas coisas chamam a atenção. A primeira é a tendência de alta. A segunda é a análise exploratória que investigou os grupos mais afetados nesse aumento de prevalência. Considerando variáveis socioeconômicas não houve aumento da prevalência preferencial em nenhum grupo, ou seja, o aumento acometeu indistintamente pessoas de diferentes níveis de renda. O mesmo aconteceu com nível de escolaridade, etnia e sexo. O grupo de risco mostrou-se evidente quando a análise separou as faixas etárias. Adultos jovens (18 a 25 anos) e sobretudo adolescentes (12 a 17 anos) foram os grupos responsáveis pelo aumento da prevalência de depressão nos EUA nos últimos 10 anos. Entre adolescentes o aumento foi de quase 6%, ocorrendo sobretudo de 2011 a 2015 e com tendência de alta.
A questão óbvia que se impõe são os motivos para tal aumento, ou, em outras palavras, os motivos para que uma geração inteira tenha se tornado mais vulnerável ao adoecimento por depressão. Em epidemiologia é relativamente fácil constatar que um fenômeno existe, porém quase sempre é difícil atestar as causas desse fenômeno. No caso da depressão, que é um transtorno multifatorial e sem causa única definida, as dificuldades são ainda maiores. É preciso ser prudente em propor causas e explicações para um problema tão complexo. Mais ainda em propor soluções. A dicotomia diátese/estresse é um bom ponto de partida para se pensar nessa evolução na epidemiologia da depressão.
Para o desenvolvimento do transtorno, temos um organismo com vulnerabilidade e predisposição a determinada afecção (diátese) sobre o qual agem fatores ambientais em diferentes níveis (estresse), que podem aumentar as chances de precipitação ou perpetuação do quadro. Quais fatores podem ter mudado tanto e em tão curto intervalo de tempo, de modo a perturbar dessa forma o equilíbrio na balança diátese/estresse da prevalência da depressão? Lembremos que estamos falando de um grupo muito específico: uma geração de adultos jovens e, sobretudo, adolescentes, em um país desenvolvido e com relativa estabilidade institucional, econômica e social. Em um dos pratos dessa balança, o do estresse, seriam impensáveis alterações drásticas, salvo em situações de catástrofes, guerras ou grave crise social. E, ainda assim, tais estressores atingiriam em graus diferentes toda a sociedade, não apenas uma geração ou faixa etária específica. No outro prato da balança temos a diátese ou vulnerabilidade biológica e psicológica. Entre gerações subsequentes é inconcebível uma diferença relevante na vulnerabilidade biológica, contudo, quanto à vulnerabilidade psicológica, pode haver mudanças significantes. Um exemplo marcante foi a comparação entre veteranos norte-americanos da Segunda Guerra Mundial e veteranos da Guerra do Vietnã, que são de gerações subsequentes. Após a guerra, os primeiros foram menos vulneráveis ao transtorno do estresse pós-traumático e ao abuso de substância e tiveram melhor readaptação. Um complicador para a análise desse caso é que o contexto social e a visão do papel histórico desempenhado pelos soldados haviam se transformado muito entre as guerras. Hoje, não temos esse complicador: as gerações vivem o mesmo contexto, mas nem todas demonstraram maior vulnerabilidade ao adoecimento. Fatores psicológicos na formação desses adolescentes e adultos jovens os deixaram mais vulneráveis ao sofrimento e à depressão, e a resiliência pode ser um prisma esclarecedor para analisar esse fenômeno.
O modelo diátese (ou vulnerabilidade) e estresse está historicamente atrelado ao modo de se pensar a pesquisa e a prática clínica em saúde mental. Uma mudança de paradigma seria inverter esse olhar, alternar o foco dos mecanismos que determinam a vulnerabilidade aos problemas de saúde para fatores que estimulem os indivíduos a permanecer saudáveis ou se recuperar rapidamente ao passarem por estressores sérios ao longo da vida. Não se trata de inverter a lógica do discurso sem real mudança do sentido. Ao olharmos para as evidências acumuladas em saúde mental, conhecemos muito mais os fatores de risco que os fatores de proteção. Ações de profilaxia primária são muito restritas e pouco estudadas. A maior parte das ações em saúde mental se dá tratando transtornos já insta lados, minimizando danos e posteriormente promovendo recuperação funcional.
PARADIGMA
A prevenção de recaídas, ou profilaxia secundária, também faz parte do planejamento terapêutico. Contudo, muito pouco ou quase nada é investido em profilaxia primária, que visa evitar o desenvolvimento de doenças em pessoas com ou sem fatores de risco evidentes para tal desenvolvimento. Nesse contexto, o conceito de resiliência poderia ter destaque.
Todas as definições de resiliência propostas se referem a uma adaptação bem-sucedida após a transposição de um estressor grave. Uma definição seria o conjunto de características e recursos de um indivíduo que, sob condições de estresse, o possibilitam manter ou recuperar rapidamente sua homeostase física ou psíquica. Complementando essa definição, é importante pontuar que o exercício da resiliência se dá em um processo dinâmico, interativo e adaptativo com o ambiente. O objetivo desse processo seria minimizar o abalo ao bem-estar, o sofrimento, o risco de adoecimento e o prejuízo da funcionalidade e, em última análise, até mesmo incrementar essa funcionalidade.
Colocada dessa forma, a definição é abrangente e, com adaptações, pode ser usada em diversos contextos, da Psiquiatria ao esporte competitivo, do mundo corporativo ao neurodesenvolvimento e à Pedagogia. Dado meu viés clínico, citei a resiliência como um possível fator protetor quanto ao desenvolvimento de transtornos psiquiátricos. Nos esportes, a resiliência poderia estar relacionada à capacidade diferencial entre os atletas para superar estressares comuns à carreira, como lesões ou transições profissionais, ao atingir uma idade que limita resultados competitivos na modalidade. No mundo corporativo a resiliência pode, por exemplo, estar relacionada ao modo com que diferentes profissionais mantêm a funcionalidade e o bem-estar, diante da competitividade na carreira ou exigências como o cumprimento de metas. Essa adaptabilidade é uma virtude do conceito, mas também pode gerar distorções e maus usos. Certa vez, um amigo sugeriu-me simplesmente deixar de empregar o termo resiliência devido à banalização do seu uso em diversos meios, sendo usado como sinônimo de mera resistência às intempéries da vida. Essa simplificação é muito comum: confundir resiliência com resistência. É dessa confusão que advém uma ideia de que resiliência é uma questão de gerenciamento de estresse ou simplesmente de transpassar de cabeça baixa e com determinação as situações adversas. Mas é muito mais do que apenas atravessar situações, saindo do outro lado ileso ou com o mínimo de dano: antes, pode ser oportunidade de aprendizado e desenvolvimento, como veremos adiante.
DESENVOLVIMENTO
desenvolvimento da resiliência se dá desde a mais tenra idade. Experiências traumáticas durante a infância, por exemplo, são fatores de risco bem conhecidos para vários transtornos psiquiátricos ou comportamentos disfuncionais. Evidências convincentes que se acumulam ao longo do tempo nos estudos epidemiológicos confirmam relação causal entre trauma de infância e vários transtornos psiquiátricos na idade adulta. Contudo, muitas crianças expostas a traumas graves não desenvolvem psicopatologia, mas, ao contrário, adaptam-se com sucesso e recuperam-se rapidamente. Onde estaria o diferencial na formação dessas crianças? Dada a complexidade do conceito de resiliência, não há resposta unívoca para essa pergunta. Mas existe um denominador comum entre os autores dedicados ao tema: o papel do apego seguro.
A primeira fonte importante de resiliência na vida é o apego que a criança desenvolve com o seu cuidador principal nos primeiros anos. Em um relacionamento com apego seguro, o bebê ou a criança aprendem a integrar em uma representação mental suas experiências cognitivas e afetivas. Com base nas experiências desse relacionamento, a criança vai aprender a confiar nos outros, sobretudo no sentido de que estará protegida, no caso de ameaça ou adversidade. Trata-se de um relacionamento de proximidade e conforto, na busca por segurança quando confrontado por alguma situação de estresse. Crianças com apego seguro formam modelos internos nos quais o eu é percebido como digno, os outros são percebidos como disponíveis e confiáveis e ambientes hostis ou desafiadores são percebidos como gerenciáveis com apoio de outros. A base para o anexo seguro é criada desde os primeiros momentos da vida e continua a ser sedimentada junto aos pais ou outros cuidadores primários, ao longo da infância e da adolescência. O apego seguro resulta de uma relação parental de apoio, sensibilidade e responsiva, que está em sintonia com as necessidades e comportamentos da criança. O comportamento do cuidador é determinante. Estudos genéticos comportamentais com gêmeos indicam que o apego é de fato o resultado de influências ambientais apenas.
A formação do apego seguro dá se sobretudo no desenvolvimento dos vínculos primários na primeira infância, contudo ainda pode ser modulado ao longo da vida. Estratégias psicoterapêuticas específicas para aumentar bem-estar psicológico e resiliência devem promover intervenções que levem a uma avaliação positiva do eu, a uma sensação de crescimento e desenvolvimento contínuos e ao senso de pertencimento e posse de relações de qualidade com os outros.
Quanto às emoções positivas e à saúde, as evidências acumuladas fornecem cada vez mais suporte empírico para as teorias populares. As emoções positivas fornecem um antídoto útil para as emoções negativas que surgem nas adversidades e para problemas de saúde. Estudos sugerem que emoções positivas diminuem a experiência de dor e catastrofização relacionada aos estressores e parecem contribuir positivamente aos resultados de saúde em geral. O aumento da emoção positiva, na primeira semana de tratamento farmacológico da depressão, se relacionou com melhora e remissão da depressão em seis semanas. Curiosamente, esse efeito foi independente da diminuição das emoções negativas. Não apenas nos agravos à saúde, mas também na vida cotidiana, a experiência de emoções positivas durante momentos de estresse protege a saúde psicológica, tamponando a reatividade às emoções negativas a eventos estressantes.
A capacidade de gerenciar efetivamente a própria vida e um senso de auto determinação são importantes para a expressão de emoções positivas. Uma visão positiva diante da adversidade não é desenvolver um viés positivo de avaliação da realidade, como uma espécie de síndrome de Poliana aplicada ao momento presente. Diferente disso é conseguir visualizar possibilidades de ação e de autoafirmação, mesmo diante da pior das adversidades; é ter o senso de que coisas importantes estão sob controle e podem ser mobilizadas, mesmo em situações adversas que expõem nossa mais profunda fragilidade. Negar a emoção negativa diante da avaliação honesta de uma realidade adversa seria um “polianismo” infrutífero. Não se trata aqui de negar a emoção negativa, mas de nutrir emoções positivas. E a crença na possibilidade de reação é uma fonte primordial de emoções positivas.
RELIGIÃO OU ESPIRITUALIDADE
A religião, ou a espiritualidade, sempre estará no cerne da questão quando falamos em propósito de vida. Em contraste com contextos momentâneos de prazeres, um senso de propósito de vida opera em um maior nível de experiência global, que é alimentado por valores pessoais e objetivos individuais, ou seja, está inserido na cosmovisão pessoal. Assim, a religião ou a espiritualidade não apenas trazem um propósito ou sentido de vida mais elevado como operam e constroem os alicerces, o conjunto de valores que suportam e elevam tal propósito. A espiritualidade parece favorecer o exercício da resiliência e é fator de proteção para os efeitos das experiências negativas de vida sobre a saúde mental. A espiritualidade, pela sua natureza, fornece um sentido transcendente para as experiências de vida. Porém, tal transcendência não precisa necessariamente ter um sentido espiritual. Um exemplo muito didático vem de um relato de caso do psiquiatra Victor Frankl, sobrevivente de um campo de concentração. Um paciente passava anos a fio por um arrastado luto complicado. Após décadas de um casamento harmonioso e que preenchia de amor e significado sua vida, esse senhor encarava a viuvez e velhice com total falta de sentido e motivação. Frankl encontrou um modo de fazer a reverência e o amor que esse senhor nutria pela esposa continuarem a dar sentido e propósito à sua vida, mesmo que de uma fom1a transcendente. Qual alternativa haveria à situação em que ele vivia, a de suportar a existência sem a pessoa que amou ao longo de toda uma vida? Diante dessa pergunta ele vislumbrou a única alternativa: que ele falecesse antes da esposa. Estaria ela então nesse momento carregando o fardo da saudade. Frankl relata que esse foi o início da resolução do luto. Ele havia encontrado um sentido transcendente para o seu sofrimento.
Foram apresentadas três colunas para o desenvolvimento da resiliência: apego seguro, emoções positivas e sentido de propósito. Qualquer abordagem centrada na resiliência precisa vislumbrar esses três conceitos, seja em ambiente pedagógico, ocupacional, familiar ou terapêutico. Dessas, a única para a qual existe uma janela de oportunidade de desenvolvimento bem definida, na infância e na adolescência, é o apego seguro. Expressão de emoções positivas é um exercício contínuo e o sentido de propósito aguça-se com experiência e maturidade. Mesmo quanto ao apego seguro, há possibilidade de mudanças e desenvolvimento ao longo de toda a vida. Sempre há margem para o fortalecimento das bases que determinam o melhor exercício da resiliência, mas são necessárias disposição, flexibilidade e direção.
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