CONHECENDO ACALCULIA E DISCALCULIA
Os discalcúlicos têm inteligência dentro dos padrões ou até acima da média, mas encontram problemas unicamente com o conhecimento matemático
“Sou uma professora de Matemática atípica, porque só consigo resolver uma equação ou conta usando papel e lápis, ainda faço contas usando os dedos e para gravar qualquer informação eu preciso escrever.” Relato da professora de Matemática Ana Maria. Assim como muitas crianças e adolescentes, a professora teve sérios problemas com o aprendizado matemático por mudar constantemente de escola. Entretanto, essas dificuldades foram passageiras, não impossibilitando a continuidade nos estudos e, principalmente, não interferindo na sua escolha de graduar-se em Matemática.
Hoje, infelizmente, encontram-se muitas crianças que apresentam dificuldades de aprendizagem em Matemática por diversos motivos, como de ordem psicossocial, pedagógica e outras que, infelizmente, possuem um distúrbio neurológico relacionado com a aquisição da linguagem matemática. Esse distúrbio é conhecido por discalculia.
Discalculia vem do grego e significa dis + calculo, ou seja, dificuldade ao calcular. Os discalcúlicos apresentam dificuldades específicas em Matemática, como tempo, medida, resolução de problemas etc. Acomete pessoa de qualquer nível de QI, logo, é importante salientar que o discalcúlico tem uma inteligência normal, ou até acima da média. Seu problema está relacionado unicamente com o conhecimento da Matemática.
Até o momento, não existe uma prevalência maior em meninos ou meninas e acredita-se que cerca de 5% a 7% da população tenham discalculia.
Esse distúrbio não acontece por falha no sistema de ensino, por problemas psicológicos, como, por exemplo, a separação dos pais, perda de um ente querido ou por recorrente mudança de escola/cidade, como ocorreu com a professora Ana Maria.
A discalculia não é oriunda de problema emocional, pedagógico e social, pois nesses casos seria considerada uma dificuldade de aprendizagem em Matemática, algo transitório. Vale destacar, também, que a discalculia não é ocasionada por um dano cerebral, como o acidente vascular cerebral ou alguma outra lesão no cérebro. Em tais casos, a perda das habilidades matemáticas decorrente desses problemas é conhecida como acalculia.
Acalculia é a perda das habilidades que já estavam consolidadas e em desenvolvimento, Segundo Garcia, as lesões estão relacionadas ao hemisfério esquerdo parieto-temporal e parieto-occipital, e afetam o raciocínio lógico. As características da acalculia são o prejuízo na leitura e escrita de números; cálculo mental; disposição espacial dos números, como alinhar os números em uma coluna; dificuldade de saber quantas semanas tem o ano; dificuldade de saber qual número é maior ou menor; dificuldade de ler e escrever os números de complexidades diferentes.
Segundo Rosselli e Ardila, os estudos demonstram associação entre acalculia e afasia. Afasia é a perda da fala ou da articulação das palavras. A acalculia também se torna mais visível em adultos e idosos que sofreram acidente vascular e traumatismo craniano. Nesse caso, a intervenção deverá seguir o mesmo critério que se utiliza para crianças e adolescentes, adaptando as atividades de forma a contemplar a necessidade do indivíduo adulto. Até o momento, não se sabe ao certo o índice de pessoas com acalculia, pois o seu diagnóstico se confunde com outras comorbidades, como afasia, apraxia e síndrome de Gerstmann.
Desse modo, compreender a diferença entre discalculia e acalculia é importante para ajudar a criança e o adolescente de forma eficaz. Assim, a acalculia é uma comorbidade adquirida, diferente da discalculia, cuja definição se baseia em critérios comportamentais e de exclusão, não existindo, ainda, claros marcadores biológicos para o diagnóstico clínico. Contudo, estudos recentes demonstram que um dos fatores tem procedência genética. Cerca de 40% das crianças e adolescentes que têm discalculia podem ter dislexia, porém isso não é uma regra, já que é possível apresentar diversas patologias ao mesmo tempo, como apresentar hiperatividade e discalculia, dislexia e discalculia e assim por diante.
Todavia, discalculia e acalculia vão além de problemas relacionados com a Matemática. São de origem psicossocial, pois a criança que apresenta essas comorbidades tem toda sua vida desestruturada, com prejuízos sociais, emocionais e psicológicos.
Ladislav Kosc teria descoberto a discalculia em 1974. Na época, ele classificou a discalculia em seis tipos:
VERBAL – dificuldades para nomear as quantidades matemáticas, os números, termos, símbolos e as relações;
PRACTOGNÓSTICA – dificuldade para enumerar, comparar e manipular objetos reais ou em imagens, matematicamente;
LÉXICA – dificuldade na leitura dos símbolos matemáticos;
GRÁFICA – dificuldade na escrita de símbolos matemáticos;
IDEOGNÓSTICA – dificuldade em fazer operações mentais e na compreensão de conceitos matemáticos;
OPERACIONAL – dificuldade em fazer cálculos e na execução de operações.
A neurociência nos mostra que vivência, motivação e estímulos ativam as conexões cerebrais, auxiliando o processo de aprendizagem referente à Matemática. Estudos neurocientíficos demonstram que existe uma parte do cérebro especializada em reconhecer números. Esses estudos ainda não foram concluídos, mas os estudos de neuroimagem funcional apontam que as áreas responsáveis podem ser as seguintes: parte inferior esquerda do lobo parietal, que é a área cerebral responsável pela representação de domínio específico de quantidades, das funções verbais, espaciais e do foco de atenção para a resolução de operações de quantidades, grandezas, proporções e números. A primeira rede neural tem a participação do lobo frontal inferior esquerdo e do giro angular bilateral, áreas envolvidas na representação linguística (símbolos numéricos, conceitos e regras), que são ativadas durante tarefas de cálculos exatos e funcionam de suporte no gerenciamento de operações aritméticas sucessivas que envolvem a participação de memória operacional e rotinas de memória verbal. O suco intraparietal bilateral é a estrutura anatômica-chave envolvida na realização de todas as tarefas de natureza numérica, juntamente com outras áreas como o giro angular esquerdo, o córtex frontal medial bilateral e o sistema parietal bilateral póstero-superior.
Não basta só conhecer as áreas cerebrais ou a neurociência, neurobiologia, tudo isso é importante, mas, acima de tudo, é preciso levar em conta que nem todos aprendem da mesma maneira e que existem, segundo Gardner, várias formas de inteligência, como a musical, lógico-matemática, interpessoal, linguística etc. É necessário aceitar que cada pessoa é diferente da outra, respeitar as limitações de cada uma e procurar ajudar essas crianças e adolescentes a terem um aprendizado significativo e de sucesso.
QUANDO SURGE
A discalculia torna-se aparente durante o segundo ou terceiro ano do ensino fundamental. Entretanto, desde a educação infantil a criança já apresenta dificuldades em compreender símbolos numéricos, algarismos arábicos e valores cardinais. Quando associado a um QI elevado, a criança consegue acompanhar o mesmo nível dos seus colegas durante os primeiros anos escolares, e o problema só vai se manifestar após o quinto ano de escolaridade.
Independentemente de ter discalculia, acalculia ou dificuldades de aprendizagem em Matemática, é importante um diagnóstico precoce, que aumenta as chances de sucesso na intervenção e minimiza os efeitos deletérios, como o abandono escolar e a depressão. As dificuldades específicas de cada indivíduo devem ser mapeadas, e torna-se necessário o planejamento de um ensino eficiente e direcionado às dificuldades específicas do discalcúlico, um professor dedicado e uma família acolhedora.
Os critérios de diagnósticos da discalculia são pautados nas dificuldades apresentadas pelas crianças e adolescentes, devendo ser levado em conta se as dificuldades persistem por mais de seis meses; se estiverem substancial e quantitativamente abaixo do esperado para a idade cronológica da pessoa, conforme testes padronizados; se as dificuldades se iniciarem durante os anos escolares, especialmente desde a pré-escola, sendo necessário documentar essas dificuldades. No entanto, o diagnóstico deve ser feito idealmente após o segundo ou terceiro ano do ensino fundamental. Importante lembrar que essas dificuldades não podem ser explicadas por deficiências intelectuais.
O diagnóstico deve ser feito através de uma equipe multidisciplinar (fonoaudiólogo, psicopedagogo, psicólogo, neuropediatra, neurologista, pedagogo e pediatra). Porém, para que esse diagnóstico ocorra é necessário que a criança já tenha sido exposta ao conhecimento matemático.
As crianças com discalculia conseguem entender alguns conceitos matemáticos, mas têm grande dificuldade em trabalhar com números, fórmulas e enunciados. Elas podem reconhecer e compreender símbolos matemáticos, mas vai ser difícil resolver um problema. Algumas dificuldades apresentadas pelo discalcúlicos: visualizar conjuntos de objetos dentro de um conjunto maior; conservar a quantidade, o que a impede de compreender que 1 quilo de café é igual a quatro pacotes de 250 gramas; compreender os sinais de soma, subtração, divisão e multiplicação (+, –, ÷ e x); sequenciar números, como, por exemplo, o que vem antes do 13 e depois do 15 (antecessor e sucessor); classificar números; montar operações; entender os princípios de medida; lembrar as sequências dos passos para realizar as operações matemáticas; estabelecer correspondência um a um, ou seja, não relaciona o número de alunos de uma sala à quantidade de carteiras; dificuldade de compreender os números cardinais e ordinais. Entretanto, pessoas que têm acalculia também apresentam, às vezes, as mesmas características. O que irá fundamentar o diagnóstico são os exames de neuroimagem e os relatos médicos. Até o momento, não existe cura para essas comorbidades, mas a intervenção eficaz, estimulação e reabilitação pedagógica, psicopedagógica e psicológica, com atividades para reaprender ou contornar as dificuldades relacionadas à Matemática, proporcionarão um tratamento adequado, lembrando que devem ser pautadas nas necessidades individuais de cada um.
RECURSOS
A intervenção para discalculia, acalculia e dificuldades de aprendizagem deverá ser pautada em recursos materiais (uso de calculadoras, jogos e atividades lúdicas, caderno quadriculado, imagens, contação de histórias, questões claras e objetivas etc.); recursos metodológicos (métodos, técnicas de ensino organizativas, planejamento, adequação de conteúdos e avaliativas); recurso multiprofissional (fonoaudiólogo, psicopedagogo, psicólogo, neurologista, neuropediatra, pedagogo, psiquiatra, terapeuta etc.).
Sem a intervenção adequada, as crianças podem arrastar, ao longo de sua vida, sérias dificuldades aritméticas, daí a importância e a necessidade da realização de uma intervenção precoce e eficaz. Desse modo, a intervenção deve se pautar nas características peculiares de cada indivíduo, de modo a reabilitar seus comprometimentos aritméticos e potencializar as habilidades já apresentadas.
Não é insistindo na mesma coisa feita em sala de aula e repetindo o conteúdo que a criança irá aprender Matemática. É preciso ensinar a criança a aprender a manipular os números de diferentes perspectivas, evitando procedimentos rotineiros, e um ensino mais prático do sentido do número e com um tempo maior para desenvolver a atividade. O aprendizado acontece de maneira lenta, logo a compreensão sobre as habilidades matemáticas é dificultada, e um novo olhar, uma alteração nas ações em sala de aula podem minimizar tais dificuldades.
Valorizar os conhecimentos e habilidades conquistados durante o processo de aprendizagem, mostrando as barreiras já vencidas, é uma ferramenta para despertar o interesse em aprender, e isso trará de volta a autoestima e bem-estar dessas crianças e adolescentes. É preciso intervir, motivar, estimular e cuidar para que esses alunos não se sintam impotentes diante do aprendizado, criando uma relação afetiva que contribua para o desenvolvimento educacional desses alunos. O professor será um mediador entre a teoria e a prática em sala de aula, e ajudar os colegas a respeitar a individualidade dos alunos com discalculia será a sua tarefa. Os discalcúlicos precisam de apoio, afetividade e socialização.
ALFABETIZAÇÃO
A Matemática é uma linguagem, e como tal a criança precisa ser alfabetizada matematicamente. A criança que compreender a relação da Matemática com a vida não terá medo, e sim desejo de descobri-la. Segundo Luria, é fundamental existir a habilidade visuo- espacial, tanto para o cálculo quanto para o desenvolvimento das operações aritméticas, e ainda para a distinção entre aspectos procedurais (regras/procedimentos) e conceituais (que são compreendidos) envolvidos na Matemática.
Desse modo, crianças e adolescentes com acalculia e discalculia podem e devem utilizar dos recursos visuais para adquirirem as habilidades e competências matemáticas. Por isso, os jogos de tabuleiro e on-line são tão utilizados na intervenção. Aprender com a ludicidade significa construir conhecimentos por meio de vivências prazerosas e potencialmente significativas, tendo o jogo, o brinquedo e a brincadeira como base da aprendizagem. Através dos jogos, é possível reforçar conhecimentos e habilidades conquistados e valorizá-los durante o processo de aprendizagem, mostrando as barreiras já vencidas. É uma ferramenta para despertar o interesse em aprender e isso trará de volta a autoestima e o bem-estar dessas crianças e adolescentes.
Para que crianças aprendam a fazer a leitura do mundo através da Matemática será fundamental compreender os fundamentos do discurso matemático (palavras, sinais, símbolos, procedimentos, habilidades etc.) e como aplicá-los para resolver problemas em uma variedade de situações, entendendo, assim, sua função social.
As crianças que conceituam o número (para tal é necessário trabalhar: correspondência, comparação, sequenciação, classificação, seriação, ordenação, inclusão de classe, conservação e enumeração) não terão dificuldades nos anos advindos. Claro que é preciso levar em conta as experiências, vivências e o meio social que a criança está inserida, pensando se a mesma está sendo estimulada e motivada ao aprendizado.
Isso posto, devemos utilizar o brincar, o lúdico, imagens, jogos e brinquedos, com a finalidade de auxiliar o processo ensino-aprendizagem das crianças e adolescentes, pois quando a criança compreende a função social da Matemática ela acaba desmistificando a fábula de que a Matemática é para poucos e de que não serve para nada.
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