A PSIQUE E AS PSICOLOGIAS

SER MULHER

Na atualidade, com o desenvolvimento do capitalismo, o corpo feminino aparece coisificado, como objeto de consumo

Ser mulher

Pensar a representação social da mulher na contemporaneidade implica o resgate da localização do feminino historicamente. Trata-se de um conceito que tem desenvolvimentos históricos e culturais e que não pode ser encarado como “natural”. A maneira como a mulher e o feminino são representados se modifica através dos tempos. Enquanto recorte histórico é possível partir, por exemplo, de um período que marca rupturas importantes na sociedade, o período da Renascença, período este em que a mulher era destinada a amar e obedecer o marido.

Os estudos do historiador Phillip Arriès enumeram o desenvolvimento do lugar da mulher na sociedade (entre outras temáticas). É possível acompanhar com o autor que historicamente a mulher tem sido desprivilegiada no que concerne aos espaços sociais. Se na Idade Média a mulher era alvo de perseguições religiosas, na Era Moderna existe um discurso amoroso, sem as sublimidades da religião, e ele se adaptará às exigências de uma sociedade de consumo para reforçar a definição da mulher como um objeto precioso possuído por aquele que a ama. Faz-se de suma importância o questionamento sobre esses lugares simbólicos destinados ao feminino, tendo em vista o desafio de pensar em contingência ao tempo atual; ou seja, sem a facilitação do historiador que tem a superação das condições estudadas implícitas em sua pesquisa.

A teoria crítica em Ciências Humanas, principalmente da Escola de Frankfurt, se baseia no marxismo para entender a sociedade, enquanto dividida em classes, e também na teoria psicanalítica para tratar das questões dos sujeitos em diálogo com as questões do social, sem criar rupturas entre ambas as perspectivas. De acordo com Olgária Matos, “essa teoria crítica realiza uma incorporação do pensamento de filósofos tradicionais, colocando-os em tensão com o mundo presente”.

Essa mesma teoria (crítica) também possibilita, enquanto “arma teórica”, a desestabilização do império da lógica capitalista no mundo globalizado e da desmarginalização das discussões de temáticas rechaçadas pelo sistema, sendo esse o papel das Ciências Humanas e Sociais enquanto forma de resistência à ideologia do capitalismo e do patriarcado.

Na atualidade, com o desenvolvimento do capitalismo, e o fetichismo da mercadoria, o próprio corpo da mulher aparece reificado (coisificado), como objeto de consumo. É possível articular esse tema à obra cinematográfica A Pele que Habito, do cineasta espanhol Pedro Almodóvar Caballero.

Apenas para contextualizar, o filme de Almodóvar trata de uma trama trágica no seio de uma família, em que, após o suicídio da esposa e o estupro da filha, o médico cirurgião plástico, dr. Robert Ledgard, decide se vingar do malfeitor (Vicente) transformando-o em uma mulher, o que faz através de inúmeras cirurgias. O médico estava desenvolvendo uma pele artificial, que serviria para amenizar as deformidades da esposa causadas por queimaduras que sofreu e que desfiguraram sua aparência, mas ela se suicida, não dando tempo de ele finalizar suas tentativas. Essa obra abre espaço para o questionamento acerca do feminino e de suas modulações representativas na cultura, bem como da cultura enquanto atrelada a um determinado momento histórico: a contemporaneidade.

Dentre alguns estudos já produzidos sobre a obra de Almodóvar, há o de Cascaes e Martins, que irão destacar o aspecto de dominação masculina representado na obra e que dialoga com um modelo social ainda atuante na visão das autoras. Em uma cena, a filha do médico cirurgião se encontra a sós com Vicente em uma festa, e mesmo tendo no início correspondido às investidas do rapaz a moça passa a resistir e demonstra não querer ir adiante com as preliminares e trocas de carícias, o que é repudiado por Vicente, que considera apenas o seu desejo de consumar o ato sexual. Essa cena assinala uma característica ainda atual, de acordo com as autoras citadas, que ilustra uma sociedade de “binarismos hierarquizados marcados pela dominação patriarcal. Neste contexto, especialmente a mulher sofre variadas formas de discriminação em uma evidente relação de subordinação e controle sobre o diferente”.

Para inserir uma reflexão psicanalítica sobre o filme de Almodóvar dentro do contexto atual, político e social, cabe ainda ressaltar que a Psicanálise, desde Sigmund Freud (1856-1939), seu criador, aborda a questão do feminino pela via política. Freud, ao estabelecer seu método de associação livre no tratamento da histeria do século XX, dá a palavra às mulheres de sua época e privilegia o discurso da singularidade acerca de seus sintomas e desejos. Elabora uma nova teoria sobre a sexualidade, que esbarra na impossibilidade de representar unicamente pela via do falo o que é uma mulher, ou seja, de representá-la pela via do que pode ser compartilhado na cultura de forma genérica (representação social); o falo é uma forma representativa de poder, via de regra masculino, limitado e nomeável. A resolução do complexo de Édipo é, segundo Freud (1924), do lado masculino, a identificação à ordem dos possuidores do falo, enquanto que para o lado feminino o pai da Psicanálise não consegue resolver a equação; ou seja, não determina ao certo qual seria a maneira feminina de resolução do Édipo, apenas de sua entrada (a entrada da menina no Édipo) através do complexo de castração, e em seus estudos deixa a questão do feminino em aberto.

Freud tentou transpor essa explicação [a do complexo de Édipo, grifo do autor] para o lado feminino, não sem deparar com muitas surpresas e desmentidos. É importante assinalar, entretanto, que, no final, reconheceu o fracasso de sua tentativa. Seu famoso O que Quer uma Mulher? confessa isso, no final, e poderia traduzir-se assim: o Édipo produz o homem, não produz a mulher.

 CONSTRUÇÃO DO FEMININO

Essa afirmação de que o complexo de Édipo não produz a mulher, do ponto de vista da estruturação social, quer dizer ainda que a mulher não se constrói apenas pela via da identificação social (relação triangular: pai, mãe, criança etc.). No filme de Almodóvar é possível sublinhar algumas tentativas de construção do feminino que são fadadas ao fracasso, por se tratarem justamente de uma construção que vem do Outro. O dr. Robert tenta transformar Vicente em uma mulher, não apenas através das inúmeras cirurgias e procedimentos aos quais o submete, mas também busca que Vicente assuma uma posição feminina para com ele, e, apesar de o desfecho da trama parecer bastante enigmático, é evidente que Vicente resiste. “Sei que respiro’’ é a frase que ele escreve nas paredes de seu quarto. Respirar é o que o mantém na posição ética de seu desejo e de sua existência enquanto não determinada pelo outro (o médico), é o único espaço que possui enquanto ação, inclusive de seu corpo, que o coloca na posição de assumir o controle e não de ser controlado.

Seria Vicente com toda sua resistência uma metáfora da própria posição da mulher na sociedade? Uma vez que a mulher não pode ser construída apenas pela via da identificação e que ela não pode ser apenas construída ou pensada pelos elementos simbólicos da cultura, Vicente, ao ser obrigado a estar nessa posição, metaforiza a resistência feminina aos saberes e lugares estabelecidos pela sociedade para a mulher ainda hoje? Cabe uma reflexão.

Talvez um dos elementos mais valiosos da arte, e da oitava arte em consequência – a de que se trata aqui – seja justamente a possibilidade de levantar questionamentos e enigmas a serem refletidos. A Psicanálise, de maneira muito parecida, também se interessa por reflexões e enigmas acerca do humano. Freud inicia o questionamento sobre o feminino, mas não chega a concluir a teoria sobre o tema, ele o introduz na cena de seus estudos clínicos e, logo, dá espaço para estudá-lo cientificamente, mas não tem tempo de finalizá-lo. Outros psicanalistas deram continuidade aos estudos freudianos. Um desses psicanalistas que vão se atentar bastante aos estudos do feminino e do que é ser uma mulher é o francês Jacques Lacan (1901-1981).

DEMANDA DE AMOR

De acordo com a psicanalista Collete Soler, Freud enfatizava a demanda de amor como propriamente feminina. Lacan (…) ressalta que, na relação dos desejos sexuados, a falta fálica da mulher vê-se convertida no benefício de ser o falo, isto é, aquilo que falta ao Outro. Para Lacan, de acordo com Soler, a falta feminina já está positivada. Em outras palavras, a falta fálica, ou como mencionado a impossibilidade de ser simbolizada e localizada apenas pela via fálica, potencializa a mulher, dizer que ela tem sua falta positivada é afirmar que sua falta possibilita a criação e a construção singular de sua posição. É um signo cultural o quanto a mulher se coloca sempre na tentativa de ser única, essa é a sua falta positivada.

É possível pensar em situações banais, nas quais o feminino alcança destaque justamente pela via da singularidade, enquanto o masculino pela via da generalização. Um bom exemplo, talvez um pouco batido mas útil, é o de uma festa onde as mulheres tentam estar o máximo possível diferentes e singulares em relação a suas vestimentas, enquanto os homens procuram estar o mais parecidos e discretos. Qualquer detalhe extra, como a cor da roupa ou acessório, chama a atenção e fragiliza a masculinidade. Eis aqui um fator limitante e também opressor para aqueles que estão do lado masculino na sociedade.

A partir do exposto é possível articular a problemática das representações sociais do feminino na contemporaneidade, com a posição da Psicanálise acerca da posição feminina e do que é ser uma mulher, uma vez que esta última coloca a resposta na via de uma construção idiossincrática; ou seja, ser uma mulher é para a Psicanálise, desde sempre, o enfrentamento político aos discursos já reinantes e aos lugares simbólicos já estabelecidos (representações sociais).

O filme A Pele que Habito traz à tona o questionamento sobre o que é ser uma mulher, os enfrentamentos de estar na posição feminina e os desdobramentos sociais que enfatizam desde períodos como a época medieval ou a Renascença, citados anteriormente, até a atualidade, onde é possível perceber os determinantes sociais masculinos e a indispensável resistência feminina que aponta para a construção de seu próprio lugar e espaço, enquanto enfrenta a desconstrução desses outros lugares e espaços predeterminados pela cultura.

 

LUCIANA MOUTINHO – é psicanalista, psicóloga de formação e mestre em Psicologia Social pela PUC-SP. Atende em consultório particular e organiza cursos livres de Psicanálise.  Professora e supervisora universitária na faculdade Anhanguera e supervisora clínica na Faculdade de Medicina do ABC – Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica.

Publicidade

Autor: Vocacionados

Sou evangélico, casado, presbítero, professor, palestrante, tenho 4 filhos sendo 02 homens (Rafael e Rodrigo) e 2 mulheres (Jéssica e Emanuelle), sou um profundo estudioso das escrituras e de tudo o que se relacione ao Criador.

FELICISSES

UM POUCO SOBRE LIVROS, FILMES, SÉRIES E ASSUNTOS ALEATÓRIOS

kampungmanisku

menjelajah dunia seni tanpa meninggalkan sains

Blog O Cristão Pentecostal

"Tão certo como eu vivo, diz o Senhor Deus, não tenho prazer na morte do ímpio, mas em que o ímpio se converta do seu caminho e viva. Convertam-se! Convertam-se dos seus maus caminhos!" Ezequiel 33:11b

Agayana

Tek ve Yek

Envision Eden

All Things Are Possible Within The Light Of Love

4000 Wu Otto

Drink the fuel!

Ms. C. Loves

If music be the food of love, play on✨

troca de óleo automotivo do mané

Venda e prestação de serviço automotivo

darkblack78

Siyah neden gökkuşağında olmak istesin ki gece tamamıyla ona aittken 💫

Babysitting all right

Serviço babysitting todos os dias, também serviços com outras componentes educacionais complementares em diversas disciplinas.

Bella Jane

Beleza & saúde Bella jane

M.A aka Hellion's BookNook

Interviews, reviews, marketing for writers and artists across the globe

Gaveta de notas

Guardando idéias, pensamentos e opiniões...

%d blogueiros gostam disto: