BORDANDO MEMÓRIAS
O ato de produzir, quando se refere à população feminina, apresenta um significado peculiar, colocando em discussão o movimento que leva à busca das próprias raízes e a importância das práticas manuais
O principal objetivo deste trabalho é estimular uma reflexão a partir dos dois indicadores de saúde mental assinalados por Freud: a capacidade de amar e a de produzir (Freud, 1930). É oportuno se debruçar, em primeira instância, sobre o significado de produzir na atualidade no que tange à população feminina. A atenção surge em virtude do crescente interesse que as atividades manuais têm instigado, decorrendo na criação de inúmeros espaços destinados ao seu ensino.
Nas últimas décadas tem sido expressivo o movimento em busca das próprias raízes e a ressignificação das práticas manuais, que contribuem para um agrupamento humano afetivo. Essas artes tornaram-se objeto de pesquisa e tema de várias publicações, dissertações de mestrado, exposições etc. Em 2014, a Unicamp, atenta a essa nova tendência, abriu suas portas para acolher artistas e pesquisadores de todo o país no 1º Seminário Nacional de Bordado.
UMA DELICADA TEXTURA
O mundo cada vez mais dominado pela tecnologia, onde as pessoas se tornam invisíveis e o contato humano escasseia e no qual se contemplam valores fundamentais como ética, respeito e solidariedade serem desconsiderados, foram importantes estímulos para a elaboração deste texto. Hoje, preponderam a pressa, a superficialidade, as relações epidérmicas; os indivíduos são tratados como objetos que, após serem utilizados, não têm mais serventia e são descartados. Basta mencionar o tratamento concedido aos idosos, marginalizados em sua maioria, sem interlocutores com os quais estabelecerem diálogo nem ouvintes para acolher suas histórias. Situação análoga à vivida pelas mulheres que, ao longo dos séculos, travaram árduas lutas para obter o direito à livre expressão de seus desejos, anseios e sonhos.
No passado as feminices eram guardadas a sete chaves, apenas segredadas entre amigas. Um vasto universo glorificado por uns e menosprezado por outros, mas que exerce fascínio inegável na imaginação de poetas e pesquisa- dores. Até mesmo Freud, hábil investigador das almas, se perguntou estarrecido, na obra Vida e Obra de Sigmund Freud: afinal, o que quer uma mulher?
A partir da Revolução Industrial, as mulheres, convocadas a ingressar num mercado sobejamente masculino, passaram a ocupar posições de destaque em diversos campos, tanto do conhecimento como em profissões antes desempenhadas apenas pelos homens. Diferente deles, contudo, à jornada diária de trabalho acresciam-se as atividades de âmbito doméstico. Grandes conquistas foram obtidas, sem dúvida. Entretanto, o acúmulo de responsabilidades ocasionou o abandono e a depreciação das habilidades manuais, executadas com maestria pelas gerações anteriores. Com isso, perdeu-se um importante espaço de convívio, quando as conversas fluíam entre fios de cumplicidade e as cores de amorosos diálogos. A casa, hoje, como bem diz Rachel Jardim (2005): “…virou um lugar de passagem. As próprias tarefas chamadas femininas não existem mais. A comida é industrializada, congelada, as roupas de cama e mesa são sintéticas. A mulher foi expulsa pela sociedade de consumo do seu próprio universo, como Eva do Paraíso” (O Penhoar Chinês, p. 252-253).
Em decorrência da hipervalorização do desempenho profissional, observou-se curioso fenômeno: as mulheres que optavam por se afastar temporariamente do mercado de trabalho para cuidar de seus filhos passaram a ser vistas quase como uma aberração e a se deparar com inúmeras dificuldades ao reingressarem num mercado altamente competitivo. Aquelas poucas que ousaram desafiar o conceito vigente e privilegiaram esse espaço sagrado da casa, cultivando o silêncio e a troca informal de conhecimento, foram estigmatizadas e vistas como alienadas.
No último decênio, gradualmente instalou-se uma interessante modificação proveniente – sob essa óptica – da necessidade de constituir locais mais humanos de convivência. O bordado, como outras práticas manuais, alcançou um lugar destacado em virtude de favorecer uma lenta e gradual inserção num universo onde a pressa cede lugar ao tempo das memórias, espaço favorável à expressão da criatividade.
A indagação de Freud foi o fio condutor dessa reflexão, motivando algumas considerações sobre o que instigaria, hoje, a busca de tantas mulheres por esses ambientes de compartilhamento de experiências.
Atualmente, as mãos que gerenciam empresas, governam o país ou discutem os rumos da economia são as mesmas que fiam, tricotam, pintam e bordam, levando à indagação: o que produzem essas modernas Penélopes quando se dedicam, em suas horas de lazer, a elaborar delicadas produções artesanais? Qual o conteúdo subjacente às cores e texturas com os quais matizam os tecidos?
A nosso ver, o que elas transpõem para o pano é um resumo da própria história, recortes de lembranças essenciais, recuperação das raízes, registro da ancestralidade. Nessa teia subjetiva, as linhas são o veículo com o qual fixam sua narrativa.
O SER E O FAZER
Essa indagação parece a chave para se esboçarem algumas considerações. Em primeiro lugar, o sistema vigente é o maior responsável por essa busca, uma vez que o processo produtivo gera uma dissociação no sujeito: a repetição mecânica das tarefas requer um distanciamento de si mesmo para preservação da saúde. Tal ruptura embrutece e pode ocasionar graves enfermidades psíquicas.
Vale ressaltar que a óptica do sistema capitalista recai numa relação quantitativa visando à obtenção do lucro. A atividade recorrente de uma produção em massa destitui o indivíduo de sua subjetividade, tal como representado na célebre cena do filme Tempos Modernos, onde o ator aperta parafusos numa linha de produção até o momento em que, sem parafuso algum, ele repete o gesto como um robô. A cena condensa exemplarmente, em termos de adoecimento, o que uma ação sem sentido pode originar, uma vez que, segundo José Bleger: “Toda conduta refere-se sempre a outro. A relação com as coisas é sempre um derivado da relação com as pessoas, das relações interpessoais; os objetos são sempre mediadores que se carregam das relações humanas” (A Psicologia da Conduta, p. 80).
Portanto, é possível trabalhar com a suposição de que um vínculo exploratório dessa natureza impossibilita os laços interpessoais e a relação com as coisas são unicamente moduladas em função da renda a ser aferida para os detentores do poder. Bleger enfatiza aqui a importância da conexão entre a coisa e o sujeito, a relevância dos relacionamentos interpessoais que valorizam as tarefas desempenhadas, ao passo que, no sistema capitalista, prepondera uma proposta inversa.
Num nível mais sofisticado, essa cisão também pode ser verificada, pois nos altos escalões das empresas a pressão pelo desempenho e a competitividade são de tal ordem que exigem o abandono da vida pessoal. O indivíduo, por mais especializado que seja, não pode vacilar, sob o risco de ser imediatamente substituído pelo descumprimento das metas estabelecidas.
Sob essa égide, todas as demais produções humanas que não se enquadrem nesse parâmetro são tidas como inúteis ou sequer são reconhecidas como tal – o ser e o fazer permanecem dissociados ou, em outras palavras, os indivíduos são avaliados por aquilo que produzem e gera lucro. E aqui retornamos à questão a respeito de qual seria o agente mobilizador das atividades manuais, uma vez que, em sua grande maioria, as produções são criadas apenas para o próprio deleite, estendendo-se, quando muito, para o ambiente familiar.
Surge o questionamento acerca da importância que o olhar do outro representa em termos de reconhecimento subjetivo da verdadeira essência. Winnicott ressalta, em seus postulados, a relevância de uma companhia viva e real responsável pelo desenvolvimento saudável do sujeito. O olhar do outro legitima e endossa a potencialidade ali existente e cria condições favoráveis para a expressão do verdadeiro self.
Nesse momento, porém, é imprescindível distinguir dois tipos de espaço: aqueles que se destinam unicamente ao ensino e os outros que, orientados por um profissional qualificado, visam acolher e dar sentido às experiências ali vivenciadas.
ATIVIDADE CRIATIVA
No primeiro caso, pode-se facilmente resvalar para um aprendizado destituído de criatividade, no qual o aluno apenas reproduz os pontos ensinados. Esse tipo de produção em muito se assemelha ao que foi mencionado anteriormente. Embora não esteja subordinada ao capital, evidencia-se, de todo modo, uma sujeição análoga.
De acordo com Winnicott, a atividade criativa que se dá no contexto da submissão torna-se “doentia para a vida”. Nesse enfoque, nem sempre uma obra de arte é expressão genuína de criatividade, ao contrário, pode ser resultante de uma profunda dissociação.
Na segunda proposta, contudo, de acordo com as formulações de Benjamim (1936/1996), trata-se de favorecer a instauração de um espaço adequado a um precioso compartilhamento de experiências. O analista procura fornecer uma ambiência suficientemente boa equivalente à ofertada pela mãe nos primórdios do desenvolvimento emocional, consoante a formulação de Winnicott de que “…o ser humano se encontra em processo de contínuo amadurecimento…” (1945). A apresentação de todo o material – tecidos, linhas e até mesmo dos pontos – visa facilitar a expressão de aspectos significativos do self do indivíduo. Cabe ao especialista o acompanhamento do processo pautado pela compreensão de que “qualquer criação, seja ela uma escultura, um poema ou um trabalho científico, relaciona-se ao sentimento de estar vivo e sentir-se real”.
O traço distintivo dessa conduta profissional é o oferecimento de materialidades mediadoras, conjugado a um modo peculiar do terapeuta presentificar-se, fundamentado no manejo do setting. Esse procedimento é norteado por um uso não interpretativo do método psicanalítico.
O analista baseia-se fundamentalmente nessa modalidade na concepção genial winnicottiana de apresentação de objeto ao bebê pela mãe. A apresentação de objetos mediadores transposta para um encontro humano num enquadre diferenciado responde às necessidades subjetivas mais expressivas e favorece o surgimento de efeitos terapêuticos. Essa linha investigativa conduziu à elaboração de alguns trabalhos nos quais procuramos abordar, à luz da psicanálise winnicottiana, as várias falhas do suprimento ambiental entremeadas a relatos de acontecimentos clínicos. É bom lembrar a compreensão de Politzer acerca do método psicanalítico como método clínico interpretativo, desde que assentado no pressuposto de que toda conduta humana tem sentido – associando-se, todavia, nessa abordagem, à busca do sentido emocional do fenômeno humano. Distingue-se, portanto, do preceito positivista, experimentalista etc. Nesse enfoque, o enquadre diferenciado é uma das alternativas de concretização do método psicanalítico. O terapeuta, segundo essa concepção, é aquele que permanece ao lado, acompanhando, mas verdadeiramente presente, respeitando os ensinamentos de Winnicott de que nem mesmo a mais douta técnica materna substitui a presença viva da mãe. Isso implica em poder tolerar até mesmo o caos, sem a necessidade de organizá-lo rapidamente. Privilegia-se, aqui, o próprio acontecer, tal como preconizado por Winnicott quando afirmava: “Seja o que for que aconteça, é o acontecer que é importante”.
O resultado estético, sem dúvida, tem relevância, mas não deve jamais, nesse caso, ocupar o primeiro plano.
À luz das formulações de Safra (1996), as criações de cada aluna, derivadas de autênticas expressões emocionais, podem ser configuradas como produção cultural que, de acordo com o autor, adquirem o contorno de objetos de self, presentificando expressivos aspectos do ser, a forma singular de sentir ou existir. Sob essa óptica, todo o processo é compreendido como experiência estética, pois descreve um denso sentimento de comunhão evocado por um objeto que a religa a aspectos fundamentais do próprio self. Embora o sentido global dessa experiência seja inapreensível, constituindo tarefa para toda uma existência, pode-se certamente apreender fragmentos relevantes nesse tipo de produção, como demonstram os relatos a seguir, demonstrativos de reencontro tanto com a linhagem biográfica como com o resgate de expressões inéditas da criatividade de duas alunas.
No quadro Estudos de casos é possível conhecer alguns trabalhos realizados durante meses que resultaram nos bordados apresentados. Esperamos que eles possam corroborar nossa hipótese de como o uso de materialidades mediadoras, conjugado a uma ambiência adequada, favorece a expressão de aspectos genuínos de self e possibilita a integração de aspectos dissociados da personalidade.
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