O PERIGO DA GAIOLA DOURADA
Ao contrário do que muitos pensam, nem sempre o conforto é um aliado. Às vezes ele pode ser nosso pior inimigo
Apesar do desejo, já na infância, de ser psicóloga, demorei um pouco para me dar esse presente, de forma que a Psicologia foi minha segunda (e não primeira, como haveria de se esperar) graduação. Quando entrei no curso já era mãe de dois filhos, com aluguel e mensalidade da faculdade para pagar, vivendo a realidade de muitos brasileiros que, após um longo dia de trabalho, frequentam os cursos noturnos. Chocolate, roupa, tupperware… fazia de tudo para conseguir uma renda extra que me ajudasse a viabilizar meu sonho. Foi com sacrifício que terminei a graduação e já no ano seguinte estava matriculada numa pós, envolvida com produção científica, congressos etc.
Foi quando conheci a Ana. Bem nascida, elegante, família rica… em suma, o oposto de mim. Ficamos amigas logo de cara. Embora fosse mais reservada nas aulas do que eu, percebi que Ana era inteligente, que tinha algo a dizer e por isso não me conformava com sua resistência em acompanhar meu ritmo de escrever artigos, fazer resenhas para a revista da faculdade, apresentar trabalhos na sessão de pôster dos congressos. Incentivava-a a participar e, cada vez mais frustrada, observava suas reticências, seu pouco entusiasmo.
Um dia, após ouvir mais um dos meus sermões de engajamento, ela me disse que o fato de sermos ambas inteligentes não era suficiente para suplantar a profunda diferença que havia entre nós: escolhas. “Você é uma aluna brilhante porque não tem escolha”, disse-me Ana com uma dureza quase elegante. “Nunca lhe ocorreu que o conforto pode também ser uma maldição? Uma gaiola dourada que nos impede de alçar voos?” Não. Tendo crescido em uma família de recursos limitados, eu nunca havia pensado no conforto nesses termos, de forma que aquela frase me trouxe uma nova perspectiva. Continuamos amigas até o final do curso, e depois disso nossas vidas tomaram rumos diferentes. Nunca mais soube da Ana. Porém, dia desses, ao refletir sobre o cenário de crise econômica que temos enfrentado, algo me fez resgatar essa história de mais de vinte anos. E isso tem a ver com a gaiola dourada. Estabilidade econômica gera gaiolas douradas. Que fique claro que não se trata de fazermos, aqui, a apologia da crise. Todos os esforços para a promoção do crescimento econômico podem e devem ser empreendidos. Mas às vezes, a despeito dos esforços, a crise nos pega de jeito: menos clientes, menos trabalho, desemprego. Tempos sombrios que trazem tristeza, medo, ansiedade, e tantas outras legítimas emoções desagradáveis de sentir, sobre as quais não pretendo me deter neste texto. O perigo é que o sofrimento nos paralise e nos torne cegos para as oportunidades que a crise é capaz de trazer.
Consideremos a questão do tempo. Vivemos reclamando não ter tempo para fazer o que gostaríamos: escrever um livro, fazer jardinagem ou um trabalho voluntário. De repente os clientes rareiam, o volume de trabalho diminui ou, por causa de uma demissão, vai a zero. E então o que fazemos? Passamos parte do tempo tentando resgatar os clientes e o trabalho, é claro! Mas ainda assim, enquanto eles não vêm, nos sobra tempo. E o que fazemos com ele? Nada.
Mas felizmente há aqueles que, compulsoriamente expulsos da gaiola dourada, ousam o voo.
De acordo com o levantamento da Associação Brasileira de Startups, o número de startups no Brasil teve um crescimento de 40% no período de junho de 2015 a junho de 2016 e, de acordo com a mesma entidade, esse número não para de crescer. Isso porque, felizmente, existem aqueles que, diante da perda de um emprego, preferem, ao invés de se jogar pela janela (sim, há aqueles que, literalmente, o fazem), se jogar no mercado, aproveitando o que minha amiga Ana talvez chamasse de “falta de escolhas” para ir atrás de seus sonhos. Sim, até mesmo a crise tem seu lado positivo e percebê-lo pode ser, mais do que uma questão de sobrevivência, uma oportunidade para a realização.
LILIAN GRAZIANO – é psicóloga e doutora em Psicologia pela USP, com curso de extensão em Virtudes e Forças Pessoais pelo VIA Institute on Character, EUA. É professora universitária e diretora do Instituto de Psicologia Positiva e Comportamento, onde oferece atendimento clínico, consultoria empresarial e cursos na área. graziano@psicologiapositiva.com.br
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