ESPELHO, ESPELHO MEU…
A era da busca pelo hedonismo, frequentemente, do narcisismo nas redes sociais e da dependência pela tecnologia traz uma percepção de felicidade baseada na avaliação de terceiros sobre nós. Que felicidade é essa?
Trago hoje provocações ancoradas em uma série televisiva que tem íntima relação com esta coluna. Muitos devem estar familiarizados com o nome Black Mirror. Para os que não conhecem, trata-se de uma série que traz a temática tecnológica e suas reverberações, em alguns momentos, trágicas. O nome Black Mirror, traduzido livremente como “espelho negro”, pode ser compreendido, no sentido literal, como a forma que enxergamos o nosso aparelho celular, televisor, computador, ou seja, uma tela que está em standby. São esses milhões de espelhos que estão ao nosso redor e, como debatido em diversos outros textos nesta coluna, permitimos que eles se tornassem papel central nos lares, nos locais de trabalhos, nas escolas, nas faculdades, nas ruas, nos ambientes culturais, nos momentos de lazer, no trânsito e em diversas outras circunstâncias.
A temática de Black Mirror se refere a uma sociedade que utiliza amplamente os recursos eletrônicos, com diversas temáticas: uso de mídia, tecnologia na força militar, realidade virtual, crimes virtuais etc. A série é rica na abertura de possibilidade de debates no campo da Psicologia, porém irei me deter apenas no primeiro capítulo da terceira temporada, intitulado “Nosedive”. Nesse mundo futurístico (será que tão distante de nós?), as pessoas avaliam qualquer outra pessoa (do funcionário de uma loja de sorvete até o colega de trabalho) por meio de um aparelho que se assemelha a um celular. Mas o que isso realmente implica no cotidiano? Em tudo. As nossas estrelas, assim como no conhecido Uber, que compreende uma escala de um a cinco, servem como referência para que possamos ser convidados a postos maiores de trabalho, viajar de avião com melhores possibilidades de horários e conforto, alugar um carro, comprar uma casa mais bonita, entre diversas outras situações que são avaliadas pelo aparelho. Pensemos: se é por meio da avaliação digital de terceiros e com essa nota que obtemos deles, quais serão os comportamentos que desenvolveríamos para sempre alcançarmos altas notas? Será que seríamos transparentes ou iríamos vestir diversas máscaras sociais para que possamos estar sempre no topo? Infelizmente isso já está sendo feito – há um bom tempo! A reação de alguns alunos ao assistir a esse capítulo é de que esse futuro não irá ocorrer, que não iremos permitir que simples avaliações guiem nossa vida. Porém, será que não devemos nos preocupar? Diversos aplicativos geram nota para os usuários, desde os de transporte até os de paquera. O número de curtidas em uma foto também não retrata, de forma indireta, a necessidade de estarmos sendo sempre vistos e validados?
Temas que são discutidos neste capítulo são: a necessidade de estarmos em redes sociais virtuais constantemente; a avaliação de terceiros sobre nossos hábitos, corpo e gostos; a busca pelo hedonismo frequentemente; o narcisismo; a dependência e, por fim, a percepção de que essa mídia não nos traz felicidade.
Em relação ao primeiro ponto: quantas vezes você percebe que está no looping “WhatsApp-Facebook-Instagram”? O mecanismo é simples: visualizamos quais recados chegaram no Whatsapp, os respondemos, entramos no Facebook para ler o feed de notícias, aguardamos as mensagens do WhatsApp fazendo hora no Instagram e então voltamos ao primeiro aplicativo (isso não é novidade alguma, concorda?). Esse tipo de sistema é descrito apenas para três redes sociais, porém atendo pacientes que usam entre 12 e 16 redes no mesmo celular. Precisamos estar on-line o tempo todo? Se sim, por qual motivo? Se não, então o uso se refere a quê? Escapismo? Dois outros tópicos igualmente importantes se referem à busca do prazer, de ser avaliado positivamente pelo próximo, e a relação com nossos traços narcisistas. Imaginemos que você alcance um número absurdamente alto de curtidas em sua foto. O que ocorre após? Manter o número alto de curtidas o tempo inteiro o torna natural ou será que vai precisar adaptar suas fotos e mensagens para que elas sejam divulgadas no molde que a sociedade as valida? A dependência tecnológica, tema que enfatizo em diversos momentos, não será discutida nesse momento, mas sim em um último ponto: a felicidade. Certamente avaliamos e interpretamos conceitos sobre o que é felicidade de forma distinta. Mas tentemos nos aproximar de uma interseção: qual a relação da felicidade com o uso de tecnologia? Se sente feliz, realizado(a), acolhido(a) nas redes sociais? A felicidade, em definitivo, não está nas redes sociais. Ela se relaciona a realizações pessoais muito mais nobres e subjetivas que, mesmo variando de sujeito para sujeito, sabemos que é alcançada apenas de forma momentânea. Nossa sorte é exatamente essa, a busca pela felicidade permanente (e encontrada na internet) na verdade nos tornaria mortos-vivos-digitais acomodados diante dessa tela, que, quando olham diretamente para ela, a única coisa que enxergam é o seu reflexo morto. Os eletrônicos são fantásticos, mas eles são apenas um dos diversos recursos que existem em nossa vida. Momento de sair do piloto automático. Desafio aceito?
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