O QUE HÁ POR TRÁS DA DISLEXIA?
Um transtorno específico de leitura, que traz dificuldades na aprendizagem ou desenvolvimento dessa habilidade. Não se trata de um problema comportamental ou educacional, ainda que esses possam dificultar a identificação e melhora
Dislexia é um transtorno específico de leitura, e disortografia um transtorno específico de escrita. A dislexia vem acompanhada da disortografia, mas essa última pode vir sozinha (ou seja, problema de escrita, mas com leitura adequada). Não se trata de uma dificuldade comportamental, apesar de ser possível que coexista ou apareça em consequência de suas dificuldades escolares. É importante também destacar que, para ser considerado dislexia, o nível de leitura não pode ser compatível nem com o nível de leitura de seus colegas que tiveram as mesmas oportunidades educacionais nem com o nível do seu próprio desenvolvimento em outras áreas, como potencial cognitivo, por exemplo. Não custa reforçar que não se trata de um déficit intelectual. O potencial para aprender está totalmente intacto.
As pessoas com dislexia têm consciência das dificuldades que apresentam, mas não necessariamente do diagnóstico. E sofrem muito por isso. A dúvida do que têm, do porquê dessa aparente limitação, fora as pressões externas, que fazem com que ele próprio questione suas possibilidades, impacta muito sua autoestima. Não é incomum serem chamados de pouco inteligentes ou pouco esforçados, o que se reflete diretamente na motivação e em sua autoimagem.
Talvez por essa razão existam vários estudos internacionais mostrando que a população com transtornos de aprendizagem que não tem apoio terapêutico, familiar e/ou educacional torna-se mais vulnerável à criminalidade, provavelmente pela saída mais precoce do sistema escolar ou pela menor possibilidade de emprego. Em compensação, aqueles bem estimulados, com ambiente favorável e/ou resilientes, apresentam todas as possibilidades de desenvolvimento e sucesso, apesar de um certo esforço inicial.
A questão passa a ser a seguinte: se é um déficit específico, por que esses estudantes apresentam outras dificuldades? A leitura, há anos, vem sendo a base do ensino formal. Ela é boa parte do acesso à informação, e sua limitação pode atrapalhar o rendimento em outras matérias. Vale lembrar que não há uma dificuldade para aprender. O problema é que se o único caminho para o conteúdo for a leitura, ela pode servir como um gargalo ou funil, limitando o acesso. Além disso, o erro na leitura de enunciados pode provocar respostas aparentemente sem nexo, o que não aconteceria na linguagem oral. Outro exemplo são os problemas matemáticos, que podem ser um grande desafio, mesmo quando não há dificuldade em cálculo, pois é necessário ler e interpretar a questão. A escrita também pode ser um limitador, visto que nem tudo o que pensa, o que é elaborado mentalmente, consegue ser explicitado através desse instrumento. Como se fala no dia a dia: fica difícil colocar as ideias no papel.
DÉFICIT LINGUÍSTICO
A dislexia, definitivamente, não tem origem na má qualidade da educação. Mesmo em países em que a educação apresenta altos índices de sucesso a dislexia existe, e apresenta a mesma porcentagem de países onde estes não são uma realidade. Trata-se de um déficit linguístico, fortemente associado a uma tendência familiar. O processamento fonológico está prejudicado, bem como sua relação com o processamento visual. Mas é claro que uma má qualidade da educação prejudica. Ela pode ou potencializar as dificuldades dos disléxicos ou causar dificuldades de aprendizagem de outra ordem (que podem até parecer em um primeiro momento, mas não são casos de dislexia realmente).
Exatamente por essa razão, os manuais diagnósticos mais modernos, como o DSM-5, propõem que, para um diagnóstico seguro de dislexia, haja um teste terapêutico ou proposta de resposta à intervenção (RTI). O que, em um país de tanta diversidade como o nosso, torna-se ainda mais importante. A proposta é a seguinte: estratégias na escola para que todas as crianças consigam aprender (camada 1), estimulações em pequenos grupos para aquelas que estão apresentando dificuldades (camada 2). Então, será possível observar dois grupos: aquele das crianças que superaram as dificuldades iniciais (podem ser descartados diagnósticos como dislexia) e aquele com dificuldades persistentes, o que pode se confirmar como dislexia, e deve seguir para atendimento especializado (Veja quadro esquema simplificado de RTI).
CONFIRMAÇÃO
Para confirmar a presença da dislexia ou dificuldades similares são necessárias avaliações clínicas, mas é possível desconfiar através de alguns sinais. Tanto na leitura quanto na escrita há impasses que fazem parte do processo. Mas a persistência deles pode indicar dificuldade.
No caso da leitura, por exemplo, ler sob esforço no início é comum, mas manter um ritmo muito devagar por um tempo prolongado não é esperado.
Crianças sem dificuldade vão ganhando fluência progressivamente, o que não acontece com quem tem dislexia. O estalo, ou o clique, como alguns chamam, não acontece sem uma ajuda adicional. E tem mais: a leitura laboriosa prejudica secundariamente a compreensão do texto lido, mesmo que a compreensão oral seja boa. Isso acontece porque a criança lê em pedaços, segmentando muito, e no final não consegue mais lembrar do que leu. É possível imaginar melhor vendo o quadro Diferença de leitura.
ESCRITA
Na escrita há algumas trocas que, mesmo precocemente, são sinais de alerta. Não que indiquem 100% uma dislexia ou disortografia, mas, em alta porcentagem, sim. E são trocas raras para a maior parte dos escolares. Como exemplo há a substituição entre letras que representam os fonemas homorgânicos, como P/B, T/D, K/G, F/V, S/Z, X/J. Mesmo em palavras regulares, ou seja, que se escrevem exatamente como se fala, as primeiras a serem dominadas, os erros se mantêm. As inversões nas sequências das letras também são comuns, especialmente em sílabas mais longas (cravo para carvo, por exemplo).
As regras ortográficas, que são dominadas progressivamente por todos os escolares, tornam-se um grande desafio para quem tem dislexia. Para ilustrar, é possível falar de M antes de P e B, S – ou R – RR entre duas vogais ou G e C antes de A, O e U, que têm som diferente de quando colocado antes de E e I. A dificuldade do disléxico não é entender as regras, e sim aplicá-las, pois é necessário prever o som que vem depois, antes de optar pelo que vem antes. Então, ele consegue completar lacunas para completar M ou N antes das consoantes, já que as visualiza e conhece a regra. Mas na hora de escrever ele deve recuperar a letra que vem depois, para optar pela que vai colocar antes.
Já fazer opções que explicitam dificuldades ortográficas do português, sem nenhuma regra que explique (um som com várias possibilidades de grafia), como X ou CH, por exemplo, demanda um tempo ainda maior. Essa demora se dá, pois é necessária experiência de leitura para que se estruture o tal vocabulário mental que foi explicado acima, o léxico. Mas continuar errando ao longo da escolaridade, sem que isso nem cause ao menos alguma estranheza, pode ser um sinal.
Além das questões ortográficas, sempre considerando que apenas a persistência em padrões anteriores é problemática, podem existir falhas no nível da frase, truncadas, sem pontuação ou sem letra maiúscula iniciando, ou ainda no nível do texto, que parece restrito se compararmos com o potencial de linguagem oral e tempo de escolarização.
A seguir é possível observar um texto, na versão digitada, de uma menina de 10 anos, filha de professores. É relevante lembrar que o perfil pode ser bastante heterogêneo, portanto, nem todos apresentarão exatamente os mesmos tipos de erros:
“Mamãe agetou (ajeitou) a cossinha (cozinha) e o cão pagunsol (bagunçou) A a mamãe gegou (chegou) na cosinha (cozinha) e viu duto (tudo) Bagusado (bagunçado) e viu o cão ali Bagusado (bagunçando) a mamãe não codou (acordou) e Pegol (pegou) o cão E pretel (prendeu) o cão mais (mas) o cão coziquil (conseguiu) fugir e vodo (voltou) Para a cossinha (cozinha) mais (mas) como a mamãe esdava (estava) na cozinha ele não gozegel (conseguiu) fim”.
PROVIDÊNCIAS
Valorizar os pontos fortes do aluno com dislexia (raciocínio científico, habilidade matemática ou dom artístico, por exemplo) e evitar colocá-lo em evidência em suas fragilidades, como ler alto diante do grupo ou colocar sua produção de texto em um mural, são orientações que parecem ser de senso comum. Mas, além disso, há condutas importantes tanto no que se trata do sistema de avaliação quanto das estratégias para favorecer a aprendizagem na escola. Em sala de aula muitos são os recursos que o professor pode lançar mão. A realização de gráficos ou organogramas para auxiliar na compreensão de textos ou na organização da informação, o uso frequente de recursos visuais, o acesso à informação para além da leitura. Recursos que a família também pode usar em casa. Além desses, os horários fora da escola podem ser aproveitados para visita a museus, para assistir a filmes e documentários, além de animações sobre os assuntos tratados na escola.
Adaptações das avaliações escolares devem ser consideradas, e minimizadas, à medida que a criança vai evoluindo. Por exemplo, em um primeiro momento, um ledor (alguém que leia a prova para ele) é útil. Mais à frente, ela já poderá ler sua própria prova (se ouvindo, de preferência), pedindo auxílio quando necessário, e com mais tempo para sua realização, tendo em vista que sua leitura é mais lenta. Depois, apenas um prazo mais flexível de prova pode ser suficiente. No que diz respeito à escrita, deve-se considerar o que é o mais importante para aquela avaliação específica: o conteúdo ou a forma. Não parece justo um aluno com dislexia, que acerte uma resposta, perder pontos superiores ao valor de uma questão, que acertou, por conta de falhas na ortografia. Às vezes, a prova oral pode ser mais eficiente como forma de medir a aprendizagem de alguns, em determinadas disciplinas. Ou seja, por mais que existam orientações gerais, essas adaptações são sob medida. Elas não servem para favorecer um escolar com dislexia, mas para lhe dar as mesmas oportunidades de seu colega em determinada fase do seu desenvolvimento.
DIFERENÇA DE LEITURA
mesma frase pode ser lida de forma diferente por dois escolares. No primeiro caso a criança tem que recuperar sete informações, sendo várias delas palavras com significado, o que facilita muito a memória: A segunda, em contrapartida, tem que tentar lembrar quase do dobro, sendo que esses 13 segmentos não têm significado: Isso sobrecarrega o que se chama de memória de trabalho, aquela de curto prazo, mas que é indispensável para o sucesso de algumas tarefas. E fica realmente difícil interpretar uma informação que simplesmente não pode ser lembrada. Quando pessoas com dislexia conseguem melhorar esse padrão, elas passam a entender o que leem quando ouvem, pois o canal auditivo ainda é necessário para intermediar esse processo. A leitura silenciosa exige um acesso direto ao léxico, nosso dicionário mental. É quando conseguimos ler de forma automática, reconhecendo globalmente as palavras escritas.
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