INVISIBILIDADE MATERNA
Além da intensa felicidade proporcionada pela maternidade, a missão de ser mãe traz como consequência aspectos biopsicossociais envolvidos na perda da identidade da mulher após o nascimento do bebê
Há anos, acredita-se que a “maternidade” é um dom inato à mulher. Que há uma imensidão de afeto na relação materna, não se pode negar. Contudo, sócio- historicamente, sabe-se que nem sempre essa relação se deu dessa forma. A partir de uma compreensão sociológica, pode-se dizer que “amor materno” é conquistado e construído.
Dois grandes autores e historiadores, Elizabeth Badinter e Philippe Ariès, vão apresentar em suas obras, Um Amor Conquistado: o Mito do Amor Materno e História Social da Criança e da Família, respectivamente, a concepção de que o amor materno não é inato e que a infância é uma construção recente. Para ambos, o “sentimento de infância” surge em meados do século XVIII, momento em que a criança passa a ser incluída na cena e convívio familiar e seus cuidados – antes delegados a amas de leite – tornam-se função da família, mais diretamente da mãe. Para Ariès, as famílias não se apegavam afetivamente às crianças e tampouco lhes dispensavam maiores cuidados, uma vez que o índice de mortalidade infantil era muito alto. Já para Badinter, a mortalidade infantil seria justamente reflexo desse distanciamento e ausência de cuidados familiares efetivos. Um dos objetivos principais desses estudos é apontar que naturalizamos algo que foi socialmente construído – infância e maternidade. Quais os reflexos dessa concepção para as mães na atualidade? Ora, vejamos: a concepção de amor materno, inclusive propagado como “instintivo”, lança na maternidade uma enorme expectativa do exercício de funções e características balizadas por um ideal social e cultural.
Dentre as transformações sociais, não se pode esquecer os avanços tecnológicos e medicinais que propiciaram à mãe e ao bebê receber tratamentos responsáveis por diminuir os riscos e mortes materno-fetais. Sendo assim, se antes gravidez e parto significavam também possibilidade de risco e morte, um novo cenário obstétrico e neonatal trouxe um oposto positivo de vida, mas não menos complexo e por vezes ainda doloroso.
Ao engravidar, a mulher se vê diante de mudanças físicas e biológicas comuns às mamíferas, contudo, ao mesmo tempo, essa mesma mulher passa a ocupar um papel social investido de uma série de valores e concepções que a engessam em um “modelo” no qual só lhe resta se adequar. Essa adequação, porém, é custosa em muitos sentidos, uma vez que o social pode, em certa medida, ser o pano de fundo da vivência materna; entretanto, no campo subjetivo e emocional, cada mulher vai vivenciá-la de modo singular. A gravidez, portanto, deixou de pertencer somente ao campo do orgânico e a maternidade passou a ser compreendida por diferentes campos do saber, inclusive pela Psicologia, que tem buscado o entendimento acerca dos principais fenômenos psíquicos correlacionados ao ciclo gravídico-puerperal. Dentre os fenômenos psicossociais observáveis nesse ciclo, destacamos um – a “invisibilidade e perda da identidade materna”.
PADECIMENTO
A “invisibilidade e perda de identidade” das mulheres diante da vivência materna se trata de um fenômeno a ser compreendido sob um prisma também social. Consideram-se aspectos individuais da mulher nesse processo de apagamento. Contudo, não recai sobre ela a total responsabilidade pelo fato. Pelo contrário, por vezes as mães sequer reconhecem tal padecimento. Frequentemente, ouve-se das mães a menção de alguns chavões, reclamações e queixas de sintomas físicos e emocionais que, muitas vezes, caem em descrédito por serem já tão comuns à ideia que se tem da figura materna e, por isso, passam a ser naturalizados ou, pior, banalizados.
A crescente valorização da infância, como explicitado nos estudos de Àries, também contribui de modo complexo na dinâmica de esmaecimento da mulher e, nesse caso, dentre as personagens da cena da vida materna, o bebê é quem ganha maior destaque e importância social. Sendo assim, uma vez grávida, a mulher perde seu status individual – ela não só deixa de falar em nome próprio como tampouco é ouvida como um indivíduo para além da sua condição gravídica. Em geral, quando a sociedade se preocupa com essa mulher é para obter acesso e informações acerca do bebê em detrimento do indivíduo que o carrega.
Tomando isso como premissa, a ideia não é desqualificar os cuidados neonatais, mas agregar a compreensão de que, sendo essencial a presença da mãe tanto para os cuidados físicos como para o acolhimento e estabelecimento da saúde emocional do bebê, uma vez que ela “desapareça”, a quem ou a que recorre esse bebê?
E como as mães desaparecem? Há um preditivo? Ela recebe algum tipo de ameaça de um “rapto” social e identitário? Ela sequer deixa um bilhete de socorro ou de volto logo? Não!
Toda a cena materna tem se investido de um primado de beleza. Ao longo da gravidez, a mulher “tem que” ganhar cada vez menos peso e curvas e, quando inevitavelmente a barriga ganha contorno e total expansividade, “coitada” da mulher que ganhar as linhas das temíveis estrias. Se, ainda assim, com sobrepeso, ela não “desaparecer”, que ao menos esconda as estrias. O mesmo vale para a recuperação do peso e forma física no pós-parto. “Fique linda para seu parceiro e seu bebê, afinal quem vai querer uma esposa ou uma mãe toda largada?” Muitas mulheres ouviram isso, internalizaram e acreditam ser delas mesmas essa cobrança estética – e, claro que é delas, mas para atingir um padrão e expectativa que a precede! A partir da idealização estética feminina, não desaparece somente o “belo corpo feminino”, com a tal concepção se esvai também a autoestima da mulher.
É no parto em que, atualmente, mais pode ser visto o “desaparecimento” da mulher. Com os avanços da Medicina obstétrica, as mulheres têm sido submetidas a procedimentos que antes eram delegados ao corpo que naturalmente cumpria sua função durante o trabalho departo, como, por exemplo, as “cesáreas eletivas”. A cirurgia cesárea – que, segundo a História, foi praticada pela primeira vez no ano de 1500 por um homem simples que, em um ato de coragem, salvou mãe e bebê durante um trabalho de parto complicado, cortando a barriga da mãe com uma lâmina de barbeiro – teve sua prática ampliada e exclusiva ao uso médico obstétrico somente no século XVIII. Entretanto, só se tornou rotineira no século XX. Anteriormente, o procedimento apresentava altíssimas taxas de mortalidade materno-fetal e só era considerado quando realmente todas as alternativas para um parto normal vaginal não tivessem obtido sucesso.
A cirurgia cesárea salva vidas de mulheres e bebês e quando bem sugerida evita danos e traumas maiores para todos. Contudo, o cenário atual apresenta uma realidade no mínimo alarmante. Em julho de 2016, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) publicou dados do Mapa Assistencial e constatou que o Brasil apresenta taxas de cesarianas três vezes superior à média de países como EUA, Espanha, Alemanha, França, entre outros que compõem a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Segundo esses dados, a cada 100 nascimentos no Brasil 84,6 foram de partos cesáreos. Em contrapartida, a taxa média dentre os 34 países que compõem a OCDE foi de 27,6.
REALIDADE ALARMANTE
Com toda certeza, as mulheres no Brasil não são anatomicamente diferentes das outras mulheres do mundo. Então, o que realmente acontece, para que as cesáreas no Brasil sejam a primeira alternativa de parto para médicos e mulheres?
Uma das hipóteses, inclusive que baseou novas medidas por parte da ANS, era de que o parto normal, por sua imprevisibilidade e longa duração, tornava-se desvantajoso economicamente para os médicos. Como uma das medidas para diminuir o número de cesáreas previamente agendadas, baseadas nesses motivos, a ANS, desde 2015, determinou que os médicos recebessem três vezes mais pelo atendimento ao parto normal.
É curioso que, mesmo nesse texto, ao se falar de parto, logo se faz alusão à cena médica hospitalar, taxas, modelos de parto, esforço e, por último, fala-se da escolha da mulher. Diniz e Duarte observaram em seus estudos, a partir de evidências científicas a respeito do modelo médico intervencionista nos partos no Brasil, que as equipes médicas e hospitalares passaram a ter domínio sobre o corpo da mulher, que, por sua vez, deixou de ser protagonista ativa no momento do parto e passou a ser “paciente” dependente das escolhas e condutas médicas.
“Nesse modelo tradicional considera-se o corpo feminino sempre dependente da tecnologia, frágil e potencialmente perigoso para o bebê. Isso é o que muitos pesquisadores chamam de viés de gênero, um olhar preconcebido sobre a mulher, em que seu corpo é por definição imperfeito e ameaçador, e não potencialmente adequado e saudável”.
Muitas mulheres sequer arriscam entrar em trabalho de parto. Temem a dor e possivelmente uma nova frustração ou constatação de uma “fraqueza”, pois infelizmente é essa a cultura que começa a permear o cenário do parto. Muitas mulheres que conseguiram ter seus partos normal, natural e humanizado, por vezes, passam a desqualificar as que não tiveram e as provocações do lado oposto também acontecem. Lamentavelmente, dos dois lados, quem acaba perdendo é a mulher que, informada ou não, empoderada ou não, fez ou foi induzida a uma escolha. E não esqueçamos as mulheres que nem escolhas tiveram ou, pior, que sofreram diversas violências obstétricas.
HUMANIZAÇÃO
Contrapondo tais cenários é que uma rede de profissionais se uniu em 1993 em prol da humanização do parto e nascimento. A ReHuNa concentra profissionais de diferentes partes do Brasil e busca disseminar conhecimento baseado em evidências científicas e, dessa forma, promover impacto e mudanças no modelo obstétrico tradicional, implementando o que hoje já nomeia-se como “parto humanizado”. Esse movimento de “humanização” busca promover os cuidados à mulher e ao bebê, respeitando o protagonismo feminino em seus aspectos emocionais, sociais, naturais e fisiológicos, diminuindo, assim, a quantidade de intervenções médicas, já comprova- das cientificamente desnecessárias e por vezes danosas e letais para mãe e bebê, como é o caso da manobra de Kristeller, hoje totalmente desaconselhada no parto, mas ainda muito utilizada no Brasil (Diniz; Duarte, 2004).
Com o parto humanizado, a mulher tem a possibilidade de retomar seu lugar de protagonismo ativo tanto na sua gravidez como parto e, consequentemente, no exercício da maternidade. As informações e acompanhamento que a mulher deve receber no modelo humanizado priorizam as evidências científicas em detrimento da opinião médica, que, por vezes, poderia ser enviesada. Em conjunto, equipe e a mulher podem discutir o “plano de parto” dela e, juntas, optarem pelas melhores alternativas. Desse modo, o médico, com toda sua expertise, fica a serviço da mulher e não o contrário.
Contudo, não é somente pelo parto que a mulher vai travar batalhas para impedir seu “desaparecimento”, pois são diversas as situações que facilitam que o mesmo aconteça ao longo da gravidez, puerpério e maternidade. Um dos raptos mais recorrentes é o da dignidade e independência financeira. Muitas mulheres, ao se verem grávidas, perdem o “rumo profissional”, pois comumente a licença maternidade não é bem-vista no mundo corporativo. Se empreender ou administrar a própria empresa, a mulher irá se desdobrar mais uma vez finanças de seu negócio. Por isso, muitas mulheres não conseguem conceber trabalho e maternidade em um mesmo plano de vida e carreira.
DESIGUALDADE
Não se pode esquecer, inclusive, que o mercado de trabalho já é desfavorável para as brasileiras. Como é possível constatar em pesquisas mais recentes do IBGE (outubro, 2015), as mulheres foram as mais afetadas pelo aumento do desemprego no Brasil. De acordo com a Pesquisa Nacional de Domicílios (Pnad/IBGE 2015), 4,6 milhões de brasileiras estão desempregadas, o que representa 52% do total de desocupados no país e, dentre os que estão empregados, a mulher recebe um salário médio inferior ao salário médio de homens ocupando a mesma função e cargo (Mulheres – R$ 1.567 e Homens – R$ 2.058).
Ao perder a colocação no mercado de trabalho, ou mesmo ao receber um salário inferior, a mulher deixa de ter potência financeira e, para algumas famílias, isso significa a perda de uma renda fundamental. A estabilidade financeira ameaçada pode deflagrar situações de estresse não só para mulher, mas para todo conjunto familiar.
Então, em algum momento a mulher se depara com uma temida decisão: retornar ao mercado formal ou informal de trabalho. Contudo, essa escolha pressupõe perdas, pois, se optar por estar mais próxima do filho, perde a possibilidade de renda e, optando por ter renda e trabalhar, terá que delegar os cuidados do filho a terceiros. Feita uma das escolhas, a mulher poderia seguir cuidando a seu modo da sua própria vida e filho. Mas não. Mediante as cobranças sociais, a mãe não pode sentir que fez a escolha certa em nenhuma das hipóteses. Se permanecer em casa, não tem ambição suficiente para um crescimento profissional e financeiro; o que fica nas entrelinhas é que “nasceu para ser dona de casa”, entendendo tal atividade de modo depreciativo. Caso ela reassuma o cargo, “fez o filho para os outros ou o governo criar”. A essa altura, o “desaparecimento” já passa a ser considerado boa alternativa.
O cenário apresentado, acrescido de um cinismo ao final, resulta da junção inclusive de diferentes momentos e construções históricas. O apego e a importância da função materna na estruturação psíquica do sujeito passaram a ser mais amplamente estudados no final do século XIX com Freud teorizando o Complexo de Édipo.
ESTRUTURA PSÍQUICA
As teorias freudianas, embora desenvolvidas em conformidade com as características fundamentais da família burguesa, ainda ressoam suas constatações para a compreensão da maternidade contemporânea que, em muitos momentos, refletem os aspectos tipicamente burgueses. Sendo assim, é preciso comparar e contrastar também os valores atuais com os da sociedade vitoriana na qual Freud teorizou. Se antes a mulher apenas cuidava dos filhos, hoje ela está no mercado de trabalho e acumula funções. Se por um lado ela é cobrada para competir de igual para igual com os homens, profissionalmente falando, por outro, ela segue ganhando menos e ainda tendo funções extras – ditas como próprias “da mulher” (tarefas domésticas, cuidado com os filhos etc.). As mulheres da época de Freud eram responsáveis principais pela educação e criação dos filhos. No entanto, se atualmente, como já mencionado, as funções e papéis da mulher na sociedade mudaram, nem por isso a teoria freudiana deixou de ter sua importância para a compreensão da psique humana.
Alguns autores pós-freudianos, como Lacan, também vão teorizar sobre a mulher e a maternidade e sua importância na constituição psíquica do sujeito. Lacan, em seu texto “Nota sobre a criança”, vai ressaltar a importância da função materna, relacionando tal função aos cuidados marcados por um interesse particularizado da mãe pelo bebê, dando a ele um lugar específico em seu desejo e interesse. Para além de todos os cuidados físicos essenciais para a sobrevivência do bebê, como alimentação, higiene etc., a mãe terá que prover outras necessidades de ordem psíquica, para que o bebê possa advir como sujeito. Tais necessidades devem ser ao mesmo tempo articuladas ao campo simbólico, o campo da linguagem. Para Lacan (1960), é por meio da linguagem que o grito da criança pode adquirir um significado, isso através da significação dada pela mãe para esse grito. Ao decodificar o choro do bebê, por exemplo, a mãe vai ocupar o lugar de interlocutor ou intérprete desse bebê, e é nesse sentido que Lacan refere-se à mãe como o Outro primordial. Esse “‘banho de linguagem” impõe à criança uma condição de assujeitamento, ou seja, para ter suas necessidades atendidas, a criança totalmente dependente precisa que seus gritos, balbucios e choros sejam interpretados por esse Outro materno. A função materna não termina aqui, mas já é possível perceber, a partir dessa pequena explanação, a tamanha importância e implicação psíquica de uma mãe diante do desenvolvimento físico e emocional de seu bebê.
Os recortes históricos, sociais e psicológicos feitos para este artigo buscaram dar visibilidade à importância e complexidade que recaem sobre a mulher que figura a maternidade contemporânea. O termo “figurar” foi propositalmente escolhido, pois, de fato, pouco se sabe dessa mulher, já que, uma vez “mãe”, ela só agregou para si mais funções, estereótipos, demandas e expectativas internas e externas a que vemos sucumbir seus desejos, necessidades e essência, que não deixaram de existir, mas podem estar timidamente ou sufocadamente pedindo por socorro. Resgatemos essas mulheres!
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