SOBRE O CONSENTIMENTO
Logo que as acusações mútuas entre Neymar Júnior e Najila Trindade adentraram a cena pública, qual a conclusão que elas autorizavam? Nenhuma. A suspensão do juízo é a única atitude cognitiva e política responsável nessa hora, até que as investigações avancem, sejam feitas as oitivas, colhidas e analisadas eventuais evidências e se possa reunir um conjunto de informações capaz de fundamentar um juízo mais seguro.
Ou nem isso, já que não existe a prova material definitiva, um vídeo que mostrasse claramente o que houve na noite em que o estupro ou a agressão teria acontecido. E, pode-se ainda acrescentar, em alguns casos, mesmo tal prova material seria incapaz de provar definitivamente um ponto, pois a dúvida retornaria na interpretação do fato.
Contudo, nem toda essa espessa névoa de ceticismo impediu que se cavassem trincheiras. O velho machismo acionou o modo turbo e chafurdou em memes zombando da “piranha”, vídeos pornôs que supostamente provariam que a acusadora era uma “piranha” (e que na verdade eram vídeos de outras “piranhas”), toda uma linguagem reproduzindo o machismo de manual, dos termos às premissas.
Como o preconceito está em alta nos Poderes de Brasília, não faltaram deputados defendendo abertamente o craque da Seleção. Um deles chegou a protocolar na Câmara um projeto de lei com a proposta de agravar a pena de denúncia caluniosa de crime sexual. O PL foi batizado informalmente de Lei Neymar da Penha, num gesto histriônico de falsa simetria (pois nada foi provado a favor de Neymar, ao contrário do que aconteceu com a Maria que viria a dar nome à lei tão fundamental). Last, but not least, o presidente da República não perdeu a chance de reafirmar seu compromisso com o preconceito e saiu em defesa do “garoto” Ney.
Do outro lado, o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher anunciou a desfiliação da advogada Maíra Fernandes, em razão de ela ter entrado para a defesa de Neyrnar. A premissa em jogo aqui é que uma mulher deve se alinhar, a priori, a outra mulher. Ora, a justiça é incompatível com esse pleito de incondicionalidade. Fazer justiça implica precisamente condicionar determinadas premissas, regras e perspectivas às circunstâncias de um caso particular.
Quem subscreve a máxima “a vítima tem sempre razão” (uma evidente petição de princípio) se filia automaticamente ao partido da justiça feminista. Em nome de um combate estrutural justo – a histórica desqualificação da palavra das mulheres – aceita-se passar por cima de direitos individuais, incorrendo com isso em potenciais injustiças.
O caso Najila versus Neymar deve, portanto, ser posto em suspensão. O mais produtivo é aproveitar sua mobilização para aprofundar o debate público sobre o problema que está em sua origem: o consentimento.
“Não é não” é o imperativo propagado pelo feminismo há décadas. Ele determina que a declaração de não consentimento deve ser incondicionalmente respeitada. Sua estrutura formal tautológica revela na verdade uma falsa platitude, pois ele se dirige a um traço forte do machismo: a ideia de que urna mulher, ao dizer não, está no fundo dizendo talvez, e, ao dizer talvez, está na verdade dizendo sim. Essa ideia é o álibi que autoriza homens a cometerem abusos sexuais. “Não é não” significa, portanto, dar um fim a essa construção ideológica cuja consequência é produzir abordagens de insistência abusiva e justificá-las.
Faz parte da construção tradicional da masculinidade ignorar e até anular completamente o desejo da mulher. Se o desejo da mulher não conta, como pode sua manifestação – consentir ou recusar – ser corretamente compreendida e acatada? Diariamente, a manifestação do desejo das mulheres, de forma verbal ou corporal, é ignorada por homens. Isso se traduz em pequenos ou grandes abusos. Dadas a extensão e profundidade do machismo, no debate sobre consentimento a ênfase deve ser posta na reafirmação do “Não é não”. Não vou me deter mais nesse ponto justamente porque ele é categórico.
Mas a questão do consentimento também abrange zonas cinzentas, e é importante pensá-las. A vida sexual dos sujeitos, de ambos os gêneros, nem sempre é íntegra, orientada por desejos e manifestações claros, unívocos, inequívocos.
Não são incomuns as situações em que homens e mulheres se encontram em interações heterossexuais hesitantes, truncadas, ambíguas.
Situações desse tipo foram objeto da literatura e de conflitos sociais recentes. O conto “Cat Person”, de Kristen Roupenian, que ficou mundialmente conhecido, narra uma relação sexual desencontrada. A mulher consente o sexo, apesar de seu desejo estar dividido, e após sua realização sente que alguma coisa errada aconteceu. A questão que o conto coloca é esta: o consentimento foi legítimo?
A mesma questão foi mobilizada numa acusação de abuso sexual sofrida por Aziz Ansari, conhecido comediante de origem indiana radicado nos Estados Unidos. Assim como no conto de Roupenian, houve uma relação sexual “consentida”, mas interpretada pela mulher como abusiva. Ela em nenhum momento diz não; em nenhum momento Ansari a força a alguma coisa. E, entretanto, sua experiência foi de que tampouco em qualquer momento ela disse sim. O que está em jogo em situações como essas? A meu ver, duas instâncias. Em primeiro lugar, há um traço do papel do gênero feminino em sociedades patriarcais que dificulta que a mulher reconheça e manifeste claramente seu consentimento. Esse traço é certa educação para a aquiescência da mulher ao desejo do homem. Existe uma pressão social de gênero que obscurece o desejo da mulher. Tanto a personagem de “Cat Person” quanto a mulher que acusou Ansari de abuso podem ter se sentido incapacitadas de manifestar explicitamente sua recusa sexual por causa dessa pressão patriarcal de ceder ao movimento do desejo masculino.
Mas há também uma outra dimensão, irredutível ao gênero. Todo sujeito tem o psiquismo dividido. É muito comum que em interações sexuais o id queira seguir adiante e o superego queira interromper o processo. Imaginemos por exemplo um sujeito casado, que vive sob acordo monogâmico, mas está prestes a ter uma relação sexual com outra pessoa. Ou duas pessoas querendo muito transar, mas ninguém tem preservativo. Em situações como essas, às vezes a relação sexual acaba se consumando de forma subjetivamente dividida. O rescaldo é o sentimento de culpa, que pode levar a uma dúvida retrospectiva sobre o consentimento.
Que encaminhamentos teóricos e políticos devem ser retirados das observações acima? A meu ver, em primeiro lugar.
Assim, é importante que todo homem reconheça a pressão de gênero do patriarcado sobre o desejo da mulher, tornando difícil tanto que o homem o compreenda e acate quanto que a mulher o esclareça e explicite. É responsabilidade de todo homem desconstruir as dimensões tóxicas de sua masculinidade e procurar ler os signos de consentimento emitidos por uma mulher. Na dúvida, é recomendável perguntar ou parar.
Por outro lado, não é justo atribuir a um homem particular a culpa por uma pressão social estrutural. Nesse sentido, em meu entender, tanto o personagem de “Cat Person” quanto o ator Aziz Ansari não cometeram abuso sexual. Não foram eles que agiram de modo a incapacitar manifestações de recusa de consentimento. É importante ainda que todo sujeito reconheça sua divisão psíquica e não ceda à tentação de transformar seu sentimento de culpa em uma acusação para livrar-se dele.
Como todo liberal consequente, considero que cada um pode fazer o que bem entender de sua vida, desde que não viole a liberdade alheia. Em matéria sexual, sob consentimento, vale tudo.
Práticas violentas, porém, como desferir tapas, configuram uma zona especialmente delicada. Quando de comum acordo, elas atravessam, subvertendo seu sentido, a cena tradicional da assimetria brutal de gêneros. Mas estar no terreno da violência exige que o consentimento seja absolutamente claro, inequívoco e renovado a cada momento – sob pena de o exercício da liberdade recair no velho, vil e abjeto exercício do poder.
FRANCISCO BOSCO – Ensaista, doutor em teoria da literatura e autor de ‘a vítima tem sempre razão?’ (todavia)
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