DESAFIOS DA COMUNICAÇÃO
O papel da linguagem influencia na forma como nos relacionamos e enxergamos o mundo, e o seu exercício envolve capacidades que não são esquecidas
Não foi a necessidade de aprender sofisticadas fórmulas matemáticas ou de construir espaçonaves que obrigou a evolução a nos privilegiar com um cérebro tão complexo. Foi a necessidade de conviver e de interagir com tantas mentes diferentes da nossa. A natureza sabiamente poupou espécies mais individualistas ou que vivem em grupos pequenos de carregar o peso de um cérebro volumoso e que consome tanta energia. E nos diferenciou com um equipamento biológico que permite criar vínculos e resolver conflitos, ao custo de incontáveis desafios psicológicos, como ansiedade, solidão, perdas afetivas e rejeição.
Com a ajuda de uma nova tecnologia, conhecida como agent based modeling, foi finalmente possível comprovar que espécies que vivem em grupos precisam de cérebros maiores e as que vivem em grupos muito grandes e complexos precisam de um que comporte recursos altamente sofisticados, como a linguagem. A investigação foi feita por pesquisadores da Universidade de Oxford para avaliar a demanda cognitiva das decisões sociais, simuladas por uma ferramenta que reproduz situações com muitas variáveis e que não podem ser explicadas com a precisão de uma fórmula.
Nossa extraordinária habilidade de comunicação, resultado de uma necessidade vital de conexão, é um dos aspectos mais fundamentais daquilo que nos faz humanos. A linguagem, assim como a capacidade de interpretar a mente do outro, partindo dos mais sutis e inconscientes sinais, é uma derivação da nossa interdependência, da busca pelo amor, aceitação e aprovação.
A comunicação representa a busca fundamental pelo conforto de termos testemunhas da nossa experiência nesse mundo. Mas mesmo com toda a sua complexidade, transforma apenas uma pequena parte desse filme mental caótico e subjetivo em informações que podem ser compartilhadas e que façam sentido aos outros. Muitos dos nossos pensamentos e sentimentos continuam desordenados, incomunicáveis e, muitas vezes, indecifráveis. Outros são desfigurados por uma comunicação não apenas incompleta, mas suscetível a inúmeras falhas, sendo que muitas delas estão fora do nosso controle e jamais serão esclarecidas.
A linguagem pode não nos salvar da condição solitária de perceber o mundo de uma perspectiva única. Mas nos oferece o alívio de compreender e ser compreendido em um nível que, mesmo dando acesso à beirada do mar de percepções da nossa mente, favorece conexões profundas e significativas.
Além disso, ao tornar mais nítido aquilo que percebemos e sentimos, nos permite ter um maior domínio sobre as emoções e ações. Sobre esse poder das palavras, a psicóloga e escritora americana Tara Brach, uma das mais populares professoras de mindfulness no Ocidente, ensina, em uma de suas meditações guiadas: “Aquilo que você nomeia passa a ter menos controle sobre você. Nomeie um medo e será mais forte que ele. Dê nome a uma reflexão e você sairá do meio da nuvem de pensamento e estará aberto a algo maior”.
Ao ganharmos familiaridade com determinados conceitos, eles passam a fazer parte da forma como operamos. Se integram aos pensamentos, oferecem novas formas de interpretar o mundo e modificam ou formam os padrões de expectativas que temos em relação aos outros e a nós mesmos. Somam-se à nossa própria essência, que a fluidez da língua tem o poder de remodelar. “(…) as palavras têm por característica fundamental serem um reflexo generalizado do mundo. Este aspecto da palavra conduz-nos ao limiar de um tema muito mais profundo e mais vasto – problema geral da consciência. As palavras desempenham um papel fundamental, não só no desenvolvimento do pensamento, mas também no desenvolvimento histórico da consciência como um todo. Cada palavra é um microcosmos da consciência humana”, coloca Vygotsky em Linguagem e Pensamento.
Passamos a enxergar injustiças e desigualdades, a identificar melhor sentimentos como mágoa e remorso e a entender comportamentos movidos pelo orgulho ou ganância depois que esses conceitos são incorporados ao nosso vocabulário. Essa compreensão não ocorre de uma forma restrita e dentro de um tempo limitado. Depende de conhecimentos dominados em níveis variados – mesmo dentro de uma mesma faixa etária e contexto cultural – e aprimorados no decorrer de toda a vida, nas diversificadas formas de interação social e troca de informações. E por não se reduzirem a um conjunto de regras que podem ser transmitidas por meio de métodos sistemáticos, com resultados facilmente medidos, acabam trabalha- dos no meio acadêmico apenas de forma indireta e não planejada.
A educação formal, em geral, espera que estudantes ganhem naturalmente a capacidade de compreensão necessária para assimilar uma quantidade de informações crescente em volume e complexidade. Desconsidera que a comunicação, com suas possibilidades ilimitadas, representa um desafio para muitos e envolve capacidades que podem ser exercitadas no ambiente escolar. Práticas que estimulam o desenvolvimento das habilidades verbais são fundamentais na superação de dificuldades acadêmicas. Mais que isso, ajudam na formação do pensamento crítico e da consciência da intenção por trás dos discursos. E, mesmo entre aqueles que não se intimidam com a flexibilidade que a linguagem exige, exercem um grande impacto na forma como se relacionam com o mundo.
MICHELE MÜLLER – é especialista em Neurociências e Neuropsicologia da Educação. Pesquisa e cria ferramentas para o desenvolvimento da linguagem. É autora do blog www.leituraesentido.blogspot.com
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