INSTRUMENTOS DE DESENVOLVIMENTO ORGANIZACIONAL
Ações para o desenvolvimento humano têm seu tempo próprio e devem se fundamentar teoricamente para garantir bons alicerces.
Preocupa-me muito a interface entre teoria e prática, a interface entre ciência e fazer na Psicologia. Desde os tempos de estudante de Psicologia, talvez por ter tido uma experiência profissional anterior à graduação, como empregado de uma grande instituição financeira, e estar estudando Psicologia em uma universidade pública focada na construção científica, questiono o quão difícil é a interface entre ciência e prática profissional. Não obstante, ao atuar inicialmente na área de Psicologia Organizacional e Recursos Humanos, sentia que o ardor do dia a dia, a correria para atender prazos, muitas vezes, dificultavam a mim e a colegas a adequada atualização científico-teórica para embasar as atividades em recursos humanos. Mais de 25 anos decorreram entre minha formação e o momento atual, o dinâmico percurso profissional levou-me ao magistério do ensino superior em Administração de Empresas e Psicologia, possibilitando-me ensinar Psicologia para administradores e Administração para psicólogos, sem, contudo, deixar de lado o exercício prático da profissão de psicólogo organizacional.
Esse percurso profissional promoveu a construção de um olhar crítico e capaz de, sempre, buscar a interface teórico-prática, o que me levou à criação e publicação de instrumentos de avaliação e intervenção, como o Baralho dos Valores e Atitudes Profissionais (Sinopsys, 2015) e o Baralho dos Comportamentos de Liderança (Sinopsys, 2017), e esse olhar crítico balizará minhas palavras sobre avaliação psicológica no contexto organizacional.
Para falar sobre avaliação psicológica nas organizações é preciso começar, sem dúvida, falando da identidade do psicólogo organizacional. Há tempos, Wanderlei Codo cunhou a expressão “lobo mau da Psicologia” ao se referir, simbolicamente, a como era vista a atuação do psicólogo organizacional. Tal expressão tornou-se clássica dado o conteúdo identitário que ela encerra. Será que somos vistos como “lobo mau” pelos nossos pares e clientes? Somos vistos como aquele que engana os clientes (candidatos, funcionários etc.) para alcançar o nosso objetivo? Para quem o psicólogo organizacional trabalha? Para o capital ou para a Psicologia? Res pondo dizendo que para ambos, sim, é possível trabalhar para os dois sem perder a identidade de psicólogo que nos constrói e possibilitando a construção de uma sociedade capitalista e biopsicossocialmente saudável.
Vamos começar falando da avaliação psicológica. No que nós, psicólogos organizacionais, no exercício corrido da profissão nas organizações, nos baseamos para emitir pareceres psicológicos e psicoprofissionais? Há inúmeros instrumentos publicados pela internet, de acesso rápido e que não são considerados, oficialmente pelo Conselho Federal de Psicologia, como testes psicológicos. Não vou nomeálos, mas sei que no meio de RH muitos os utilizam, dada a sua praticidade e acesso por qualquer profissional, uma vez que não são restritos a psicólogos. Porém, qual a confiabilidade que tais instrumentos proporcionam e seus parâmetros psicométricos?
PROJETO
Certa vez, fui convidado a ingressar em um projeto de desenvolvimento profissional que já estava em curso e os participantes, executivos de uma grande empresa, já haviam passado por uma suposta “avaliação psicoprofissional”, da qual eu não havia participado, e nessa avaliação foram utilizados dois desses instrumentos. Ao começar o trabalho com os executivos, alguns me disseram que eles mesmos não confiavam no resultado de suas avaliações, porque haviam respondido parte na sala de embarque do aeroporto e parte enquanto seus colegas se organizavam para começar uma reunião, já que a resposta ao instrumento era via internet. Como posso eu, profissional, confiar nos resultados dessa avaliação se o próprio avaliado sabe que ela não é confiável? Desse exemplo observo um problema que tem se expandido com a onda do coach. Muitas avaliações, ditas psicológicas, têm sido feitas com instrumentos sem base teórica confiável, sem parâmetros e estudos prévios adequados que sejam capazes de proporcionar fidedignidade aos resultados obtidos, distanciando, cada vez mais, os profissionais de RH e Psicologia Organizacional dos parâmetros científicos que balizam a profissão.
Dentro da Psicologia, somos regidos pelo Código de Ética e Normativas do Conselho Federal de Psicologia (CFP), e estas são bem claras de que ao realizar uma avaliação psicológica com uso de testes, é necessário que sejam utilizados os testes com parecer favorável para o uso, parecer emitido pelo Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos – Satepsi. O Satepsi, trabalhando com parâmetros internacionais de confiabilidade de testes psicológicos, garante que o instrumento com parecer favorável cumpre, em sua estrutura, as condições de confiabilidade dos resultados. Mas não basta a garantia do Satepsi ao instrumento, a forma como este será utilizado pode interferir diretamente nos resultados, ocasionando viés na interpretação.
Toda avaliação psicológica deve ser realizada em condições controladas, apresentadas nos manuais dos instrumentos. A não garantia dessas condições no momento da avaliação pode prejudicar os resultados. Não se pode responder a um teste psicológico na sala de embarque de um aeroporto enquanto se espera um voo, por exemplo.
FERRAMENTAS
Outro ponto de extrema importância diz respeito à escolha do instrumento, e aqui a interface entre o conhecimento psicológico amplo e a prática se mostra muito presente. Deve-se fazer sempre as seguintes perguntas: O que preciso avaliar? Para que estou fazendo a avaliação? O que vou fazer com os resultados da avaliação? A resposta a essas perguntas, em função de uma reflexão ampla que parte do conhecimento em Psicologia, possibilita a escolha dos instrumentos mais adequados, garantindo confiabilidade nos resultados. Após a avaliação, é direito do indivíduo avaliado receber uma devolutiva, e aí, como esta deve ser feita? Por experiência digo que a devolutiva pode tanto proporcionar crescimento como estagnação, cristalização e, por que não, destruição. É fato que muitos dados que obtemos em uma avalição psicológica podem não ser de conhecimento do indivíduo avaliado e, ao devolver esses resultados, é preciso muito cuidado.
Devolutivas em avaliação psicológica consistem em uma das atividades do psicólogo, e ao psicólogo cabe promover o desenvolvimento da pessoa humana em seu contexto biopsicossocial. Portanto, aqui reside uma grande oportunidade de exercício de nossa “missão” profissional. Assim, os dados a serem devolvidos ao indivíduo avaliado devem estar organizados de forma contextual, possibilitando uma discussão crítica destes no universo vivencial do indivíduo, pontuando necessidades e potenciais e dando direções para suprir as necessidades. A devolutiva deve, antes demais nada, ser um ato de construção do indivíduo enquanto pessoa.
O fato é que vivemos hoje em uma sociedade complexa, vivemos a modernidade líquida no sentido do termo cunhado pelo sociólogo Zygmunt Bauman. Há pressa, há urgência que levam a uma avidez e voracidade por resultados práticos, o que não combinam muitas vezes, com o rigor científico, e leva os profissionais a cometerem equívocos que poderiam, facilmente, ser evitados.
O exercício da consultoria em Psicologia Organizacional está marcado por essas características de pressa por resultados e é possível obter resulta dos relativamente rápidos sem deixar de lado a base científica. Em minha prática profissional, vivi duas outras situações nas quais eu precisava promover o desenvolvimento de habilidades específicas detectadas nos indivíduos que avaliei, isso por meio de uma devolutiva. Foi aí que, fundamentado na teoria cognitiva, desenvolvi dois instrumentos que possibilitavam, de modo lúdico, o desenvolvimento das habilidades que eu precisava desenvolver em meus clientes.
O primeiro deles foi o Baralho dos Valores e Atitudes Profissionais, no qual fundamentei-me na teoria da dissonância cognitiva, de Leon Festinger. Esse baralho, composto por diversas cartas coloridas, parte da identificação de três habilidades que estão sendo valorizadas pelo indivíduo no exercício de sua profissão e três que estão sendo desvalorizadas, isso num universo de 20 habilidades comuns ao exercício profissional atual. Após a escolha inicia-se um processo, por etapas de reflexão, do por que está valorizando ou não, de onde, na história pessoal do indivíduo, vem o motivo dessa valorização ou desvalorização. Reflete-se quanto às consequências e, finalmente, decide-se o que deve ser feito, tudo isso feito de modo organizado por meio de cartas. O Baralho dos Valores e Atitudes Profissionais possibilita que o indivíduo reflita sobre suas habilidades mais e menos desenvolvidas e, provocado por uma dissonância em suas cognições, repense a forma como está exercendo tais habilidades no cotidiano de seu trabalho, proporcionando desenvolvimento ao mesmo.
Já o Baralho dos Comportamentos de Liderança fundamenta-se na teoria da ação racional, de Fishbein e Ajzen, e preconiza que as ações de um líder devem ser pensadas em função do grupo com o qual trabalha e dos objetivos que deseja alcançar. Por meio de cartas que simulam situações envolvendo habilidades, como de comunicação, assertividade, negociação e empatia, entre outras, o indivíduo deve identificar que tipo de comportamento teria na situação e o que espera obter com este. Esse jogo proporciona uma reflexão sobre os comportamentos que estão sendo emitidos pelos indivíduos no exercício da liderança. Ao jogar o baralho, a forma como as cartas devem ser organizadas leva a uma reflexão da ação que está sendo adotada ao exercer cada uma das habilidades de liderança e o quão eficientes estão sendo essas ações, possibilitando um redirecionamento mais positivo e eficaz destas.
Tanto um baralho como o outro são instrumentos complementares a uma avaliação psicológica, não são testes psicológicos, mas instrumentos que auxiliam, de modo construtivo, na devolutiva psicológica e no desenvolvimento individual no campo organizacional.
Enfim, a modernidade está líquida mesmo, a modernidade cobra urgência, gera voracidade, mas, ainda, qualquer ação para desenvolvimento humano, organizacional ou de um país, tem seu tempo próprio e deve fundamentar-se teoricamente para garantir bons alicerces ao desenvolvimento humano.
A CARTA NA MANGA PARA UM GRANDE LÍDER
Embora seja perpetuada a ideia de que uma pessoa é um “líder por natureza” e nasceu com essa característica, a liderança pode ser desenvolvida. O Baralho de Comportamentos de Liderança explica os principais comportamentos de um líder, trazendo à reflexão e o autoconhecimento para empresas e profissionais. Em forma de jogo de cartas, foca nas seis habilidades principais para a atuação de um líder: comunicação interpessoal, empatia, assertividade, abordagem e condução, negociação e tolerância ao estresse. “O baralho constitui-se em uma importante ferramenta para trabalhos de desenvolvimento de liderança por meio de treinamentos, atendimentos individuais e trabalhos de coaching”, explica Benzoni. A iniciativa possibilita que atuais líderes pratiquem uma análise de suas atitudes durante o trabalho, quais seriam as melhores formas de resolver alguma situação, além das consequências que isso traz na equipe.
TEORIA DA DISSONÂNCIA COGNITIVA
O Psicólogo nova-iorquino, Leon Festinger (1919-1989) se tornou famoso pelo desenvolvimento da teoria da dissonância cognitiva. Festinger também elaborou e propagou a teoria da comparação social, na qual as pessoas avaliam seus desejos e opiniões por intermédio da comparação com outros indivíduos. Tornou-se bacharel em Ciência pelo City College, de Nova Iorque, em 1939. Após completar os estudos de graduação, ingressou na Universidade de Iowa e recebeu o título de PhD em 1942.