MEDO E MODERNIDADE LÍQUIDA
Durante a maior parte de nossa vida estamos submetidos a algum sofrimento e o tempo todo tememos a dor e o desconforto emocional que podem advir das ameaças permanentes; liberdade e segurança são e sempre serão inconciliáveis

Parece que medo e modernidade são irmãos gêmeos, até siameses, de um tipo que nenhum cirurgião, ainda que hábil e equipado com a última palavra em tecnologia, poderia separar sem colocar em risco a sobrevivência de ambos. Existem, e sempre existiram em todas as épocas, três razões para ter medo. Uma delas era (e continuará a ser) a ignorância: não saber o que vai acontecer em seguida, o quanto somos vulneráveis a infortúnios, que tipo de infortúnios serão esses e de onde provêm. A segunda era (e continuará a ser) a impotência: suspeita-se que não há nada ou quase nada a fazer para evitar um infortúnio ou se desviar dele, quando vier. A terceira era (e continuará a ser) a humilhação, ou um derivado das outras duas: a ameaça apavorante a nossa autoestima e autoconfiança quando se revela que não fizemos tudo que poderia ser feito, que nossa própria desatenção aos sinais, nossa indevida procrastinação, preguiça ou falta de vontade são em grande parte responsáveis pela devastação causada pelo infortúnio.
Como é totalmente improvável que se venha a atingir o conhecimento pleno do que está porvir, e como as ferramentas disponíveis para prevenir essa chegada dificilmente podem ser consideradas seguras, certo grau de ignorância e impotência tende a acompanhar os seres humanos em todos os seus empreendimentos. Falando claramente, o medo veio para ficar. Os seres humanos sabem disso desde os tempos imemoriais. A visão do medo como perturbação temporária – a ser afastada do caminho e eliminada de uma vez por todas pelas tropas avançadas da razão-foi apenas um episódio singular, mais ou menos curto, no segmento moderno da história humana. Esse episódio, como você observou, agora está quase encerrado.
Sigmund Freud escreveu em 1929, e ninguém o contradisse seriamente desde então: “Somos feitos de modo a só podermos derivar prazer intenso do contraste, e muito pouco de determinado estado de coisas”. Em O mal-estar na civilização, ele citou a advertência de Goethe, de que “nada é mais difícil de suportar que uma sucessão de dias lindos”, em apoio a sua própria opinião, apenas com a ligeira ressalva de que isso talvez fosse “um exagero”. Enquanto o sofrimento pode ser uma condição duradoura e ininterrupta, a felicidade, esse “prazer intenso”, só pode ser uma experiência momentânea, transitória – vivida num flash, quando o sofrimento é interrompido. “A infelicidade”, sugere Freud, “é muito menos difícil de experimentar.”
A maior parte do tempo, então, nós sofremos, e o tempo todo tememos o sofrimento que pode advir das ameaças permanentes pairando sobre nosso bem-estar. Há três direções das quais tememos que o sofrimento advenha: do poder superior da natureza, da fragilidade de nossos corpos e dos outros seres humanos. Dado que acreditamos mais na possibilidade de reformar e aperfeiçoar as relações humanas que em subjugar a natureza e por fim a fraqueza do corpo humano, temos medo da inadequação das regras que ajustam as relações mútuas dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade. Sendo o sofrimento, ou o horror que ele provoca, um acessório per manente da vida , não admira que o “processo da civilização ” (essa longa e talvez interminável marcha em direção a um modo de ser e estar num mundo mais hospitaleiro e menos perigoso) se concentre em localizar e bloquear essas três fontes da infelicidade humana.
A guerra declarada ao desconforto humano em todas as suas variedades é travada em três frentes. Enquanto muitas batalhas vitoriosas têm se dado nas duas primeiras frentes, e um número crescente de forças inimigas esteja sendo desarmado e posto fora de ação, na terceira linha de batalha o destino da guerra continua indefinido, e não parece que as hostilidades irão chegar ao fim. Para libertar os seres humanos de seus medos, a sociedade deve impor restrições a seus membros, enquanto, para continuar em sua busca da felicidade, homens e mulheres precisam rebelar-se contra essas restrições. A terceira das três fontes do sofrimento humano não pode ser eliminada por decreto. A interface entre a busca da felicidade individual e as inelutáveis condições da vida em comum será sempre um local de conflito. Os impulsos instintivos dos seres humanos tendem a se chocar com as demandas de uma civilização inclinada a enfrentar e vencer as causas do sofrimento humano.
Por esse motivo, a civilização, insiste Freud, é uma permuta: para ganhar alguma coisa dela, os seres humanos devem dar algo em troca. Tanto o que se ganha quanto o que se dá é muito valorizado e desejado; cada fórmula de troca, portanto, não passa de um acordo temporário, produto de um compromisso jamais satisfatório para nenhum dos dois lados desse antagonismo sempre latente. A hostilidade terminaria se desejos individuais e demandas sociais pudessem ser atendidos simultaneamente.
Mas não é assim. A liberdade de agir de acordo com suas compulsões, inclinações, impulsos e desejos, bem como as restrições impostas a ela por motivos de segurança, são altamente necessárias para uma vida satisfatória – na verdade, suportável e sustentável; segurança sem liberdade equivale a escravidão, enquanto liberdade sem segurança significaria caos, desorientação, eterna incerteza e, em última instância, incapacidade de agir tendo em vista um propósito. Liberdade e segurança são e sempre serão mutuamente inconciliáveis. Tendo insinuado isso, Freud chegou à conclusão de que os desconfortos e aflições psicológicos surgem sobretudo quando se cede muito da liberdade em troca de uma melhoria (parcial) da segurança. A liberdade truncada e restrita é a principal baixa do “processo civilizador”, a maior e mais generalizada insatisfação, endêmica em uma vida civilizada. Foi esse o veredicto pronunciado por Freud em 1929. Imagino se ele emergiria intacto caso Freud o elaborasse hoje, mais de oitenta anos depois. Duvido. Embora suas premissas se mantivessem (as demandas da vida civilizada e também o equipamento instintivo humano, transmitido pela evolução da espécie, têm permanecido fixos por muito tempo, e presume-se que sejam imunes aos caprichos da história), o veredicto provavelmente seria invertido.
Sim, Freud repetiria que a civilização é uma questão de permuta: você ganha alguma coisa, porém cede outra. Mas ele poderia ter situado as raízes dos desconfortos psicológicos e dos descontentamentos que ele engendra no lado oposto do espectro de valor. Poderia ter concluído que, no período atual, a insatisfação dos seres humanos com a situação geral provém sobretudo de ceder muita segurança em troca de uma expansão sem precedentes dos domínios da liberdade.
Freud escrevia em alemão. Para traduzir o significado do conceito que ele usou, Sicherheit, são necessárias três palavras: certeza, segurança e proteção. A Sicherheit que em grande parte cedemos contém: a certeza sobre o que o futuro vai trazer e os efeitos (se é que haverá algum) que nossas ações irão produzir; a segurança em nossa posição socialmente atribuída e em nossas tarefas existenciais; e a proteção contra os ataques a nossos corpos e suas extensões, nossas posses. Abdicar da Sicherheit resulta na Unsicherheit, condição que não se submete tão facilmente a dissecação e a investigação anatômica. As três partes constituintes contribuem para sofrimentos, ansiedades e medos, e é difícil apontar as verdadeiras causas do desconforto vivenciado.
A ansiedade pode ser imputada à causa errada, circunstância a que os políticos atuais em busca de apoio eleitoral podem recorrer, e com frequência o fazem, em benefício próprio – mesmo que não necessariamente em proveito dos eleitores. Claro, eles preferem atribuir o sofrimento de seus eleitores a causas que podem combater, e ser vistos combatendo (como quando propõem endurecer a política de imigração e de asilo ou a deportação de estrangeiros indesejáveis), a admitir a verdadeira origem da incerteza, que nunca tiveram a capacidade ou a disposição de enfrentar nem uma esperança realista de vencer: a instabilidade no emprego; a flexibilidade dos mercados de trabalho; a ameaça de redundância; a expectativa de redução do orçamento familiar; um nível incontrolável de dívida; uma renovada preocupação com as garantias para a velhice; ou a fragilidade geral dos vínculos e parcerias humanos. Viver em condições de incerteza prolongada e em aparência incurável provoca duas sensações humilhantes: ignorância (não saber o que o futuro trata) e impotência (ser incapaz de influenciar em seu curso). Elas são humilhantes de verdade. Em nossa sociedade altamente individualizada, em que se presume que cada indivíduo seja responsável por seu próprio destino na vida, essas condições implicam a inadequação do sofredor para tarefas que outras pessoas, mais exitosas, parecem desempenhar graças à maior capacidade e ao maior esforço. Inadequação sugere inferioridade, e ser inferior, ser visto como tal, é um golpe doloroso contra a autoestima, a dignidade pessoal e a coragem da autoafirmação. A depressão é agora a doença psicológica mais comum. Ela atormenta um número crescente de pessoas que receberam a designação coletiva de “precariado”, expressão cunhada a partir do conceito de “precariedade”, denotando a incerteza existencial.
Uma centena de anos atrás, a história humana era representada como um relato do progresso da liberdade. Isso implicava, como outros relatos populares, que a história fosse guiada na mesma e inalterada direção. As recentes reviravoltas na disposição do público sugerem outra coisa. O “progresso histórico” parece lembrar mais um pêndulo que uma linha reta. No tempo em que Freud escrevia, a queixa comum era um déficit de liberdade. Seus contemporâneos estavam preparados para abrir mão de grande parte de sua segurança em troca da retirada das restrições impostas a sua liberdade. E acabaram conseguindo isso. Agora, porém, multiplicam-se os sinais de que cada vez mais pessoas não se preocupariam em abrir mão de uma parte de sua liberdade em troca de se emancipar do espectro assustador da insegurança existencial. Estaremos testemunhando outro giro do pêndulo? Se isso está acontecendo, que consequências pode produzir? O medo é parte da condição humana. Podemos até eliminar, uma a uma, as ameaças causadoras do medo (Sigmund Freud definiu a civilização como um arranjo das questões humanas inclinado a fazer exatamente isso: limitar e por vezes eliminar as ameaças de danos causadas pela aleatoriedade da natureza, pelas fraquezas do corpo e pela inimizade do próximo). Mas até agora nossa capacidade não está nem perto de eliminar a “mãe de todos os medos”, o “medo dos medos”, aquele medo-mestre exalado pela consciência de nossa mortalidade e da impossibilidade de escapar da morte. Podemos viver hoje numa “cultura do medo”, mas nosso conhecimento da inevitabilidade da morte é a razão básica de termos uma cultura, é a fonte e o motor principal da cultura de toda e qualquer cultura. Esta pode ser definida como um esforço permanente, sempre incompleto e em princípio interminável para tornar suportável a vida mortal. Ou podemos tentar avançar mais um passo e concluir que é nosso conhecimento da mortalidade e, portanto, nosso eterno medo da morte, que torna humano nosso modo de ser e estar no mundo, que faz de nós seres humanos.
A cultura é o sedimento da tentativa de tomar suportável a vida com a consciência da mortalidade. Se por algum motivo nos tornássemos imortais, como algumas vezes (tolamente) sonhamos, a cultura interromperia seu curso, como descobriu Joseph Cartaphilus, de Esmirna, personagem de Jorge Luís Borges, que procurava infatigavelmente a Cidade dos Imortais, ou Daniel 25, clonado e destinado a ser eternamente reclonado, o herói de A possibilidade de uma ilha, de Michel Houellebecq. Como Cartaphilus testemunhou: tendo percebido sua própria imortalidade, e sabendo que, “num espaço de tempo infinitamente longo, todas as coisas acontecem a todos os homens”, pelo mesmo motivo, seria “impossível que a Odisseia não fosse composta ao menos uma vez”, e então Homero deveria reverter ao estágio de troglodita. E, como Daniel 25 descobriu, uma vez eliminada a expectativa do fim dos tempos e assegurada a infinitude do ser, “o simples fato de existir já era um infortúnio”, e a tentação de abrir mão voluntariamente do direito de continuar a ser reclonado e partir para “o nada absoluto, a simples ausência de conteúdo” se tornava algo impossível de resistir.
Foi o conhecimento de que tinham da morte, da brevidade inegociável do tempo, da possibilidade de as visões permanecerem irrealizadas, de os projetos não serem concluídos e as coisas não feitas que instigaram os seres humanos à ação e fizeram sua imaginação voar. Foi esse conhecimento que tornou a criação cultural uma necessidade e transformou os seres humanos em criaturas da cultura. Desde os primórdios da cultura, e através de sua longa história, seu motor tem sido a necessidade de preencher o abismo que separa transitoriedade e eterno, finitude e infinito, vida mortal e imortalidade, ou o ímpeto de construir uma ponte que permita a passagem de uma extremidade à outra, ou o impulso de capacitar os mortais para imprimir na eternidade sua presença contínua, nela deixando a marca de nossa visita, ainda que breve.
Nada disso significa, evidentemente, que as fontes do medo, o lugar que ele ocupa na fórmula da vida e os focos das respostas que ele evoca sejam imutáveis. Pelo contrário, cada tipo de sociedade e cada era histórica têm seus próprios medos – específicos em relação à época e à sociedade. Embora seja bastante desaconselhável imaginar a possibilidade de uma alternativa “livre do medo”, é fundamental expor as características distintivas do medo específico de nossa época e sociedade em favor da clareza de nosso propósito e do realismo de nossas propostas.
Quando tinham sede, nossos ancestrais tomavam sua dose diária de água em riachos, rios e fontes – e às vezes em poças – próximos. Nós compramos uma garrafa de plástico cheia de água numa loja vizinha e a levamos conosco o dia inteiro, a todos os lugares, bebendo um gole de vez em quando. Ora, essa é uma “diferença que faz diferença”. Disparidade semelhante aparta os medos contemporâneos daqueles de nossos ancestrais. Em ambos os casos, o que faz a diferença é sua comercialização. O medo, tal como a água, foi transformado em mercadoria de consumo e submetido à lógica e às regras do mercado. Além disso, o medo tem sido uma mercadoria política, uma moeda usada na condução do jogo do poder. O volume e a intensidade do medo nas sociedades humanas não refletem mais a gravidade objetiva ou a iminência de ameaça; são, em vez disso, subprodutos da totalidade das ofertas de mercado e da magnitude da promoção (ou propaganda) comercial.
Vejamos em primeiro lugar os usos comerciais do medo. Sabe-se muito bem que a lógica de marketing de uma economia “desenvolvida” (compulsiva, obsessiva e viciosamente em desenvolvimento) não é governada pelo compromisso de satisfazer necessidades existentes, mas de expandir as necessidades até o nível da oferta e suplementá-las com desejos só de longe relacionados a necessidades, embora correlacionados às técnicas de tentação e sedução do marketing. Este dedica-se à descoberta ou à invenção de perguntas cujas respostas os produtos recém-apresentados parecem oferecer, e então a induzir o maior número possível de potenciais clientes a fazer essa pergunta com frequência cada vez maior.
Como todas as outras, a necessidade de proteção contra ameaças tende a ser amplificada e adquire um ímpeto auto propelente e auto acelerante. Uma vez no jogo da proteção contra o perigo, nenhuma das defesas já adquiridas parece suficiente, e está assegurado o potencial de sedução e tentação das “novas e aperfeiçoadas” engenhocas e geringonças. Por outro lado, quanto mais profundo o engajamento em defesas que sempre se reforçam e se enrijecem, mais profundo e agudo é o medo da ameaça: a imagem desta última cresce em horripilância e capacidade de aterrorizar proporcionalmente a intensificação das preocupações com segurança e a visibilidade e intrusividade das medidas para garanti-la. De fato, se estabelece um círculo vicioso, ou um raro caso de moto – perpétuo “autossustentável”, que não precisa mais receber energia de fora, extraindo-a de seu próprio impulso. As obsessões com segurança só inexauríveis e insaciáveis, uma vez deixadas à solta, não há como pará-las. São auto propelentes e auto exacerbantes; quando ganham novo impulso, não precisam mais do reforço de fatores externos – produzem, numa escala sempre crescente, suas próprias razões, explicações e justificativas. A febre acesa e aquecida pela introdução, o fortalecimento, a utilização e o enrijecimento das “medidas de segurança” torna-se o único reforço necessário para que medos, ansiedades e tensões de insegurança e incerteza se autorreproduzam, cresçam e proliferem. Radicais que sejam, os estratagemas e dispositivos planejados, obtidos e postos a funcionar para fins de segurança dificilmente se mostrarão radicais o bastante para acalmar os medos – não por muito tempo, de qualquer modo. Qualquer um deles pode ser ultrapassado, abandonado e tornado obsoleto em função de conspiradores traiçoeiros que aprendem a contorná-los ou ignorá-los, superando assim cada obstáculo erguido em seu caminho. Moazzam Begg, islamita britânico preso em janeiro de 2002 e solto sem acusações após três anos nas prisões de Bagram e da baía de Guantánamo, assinala corretamente em seu livro Enemy combatant (2006) que o efeito geral de uma vida levada sob alertas de segurança incessantes – beligerância, justificativas para tortura, prisão arbitrária e terror- é “ter tornado o mundo muito pior”. E, acrescentaria eu, nem um pouco mais seguro. Sem dúvida alguma, o mundo se sente bem menos seguro hoje que uma ou duas décadas atrás. E como se o principal efeito das profusas e custosas medidas extraordinárias de segurança tomadas no último decênio fosse um aprofundamento da sensação de perigo, da densidade dos riscos e da insegurança. Disseminar as sementes do medo resulta em grandes colheitas em matéria de política e comércio. O fascínio de uma safra opulenta inspira os que estão em busca de ganhos políticos e comerciais a forçar continuamente a abertura de novas terras para plantar o medo.
Em suma, talvez o efeito mais pernicioso, seminal e prolongado da obsessão com segurança (o “dano colateral” que ela produz) seja solapar a confiança mútua, plantar e cultivar a suspeita recíproca. Com a falta de confiança, traçam-se fronteiras; com a suspeita, elas são fortificadas, ocasionando prejuízos mútuos, e transformadas em linhas de frente. Um déficit de confiança leva a uma quebra da comunicação; com a retração da comunicação e a falta de interesse em sua renovação, o “estranhamento” dos estrangeiros tende a se aprofundar e adquirir tons cada vez mais sombrios e sinistros, o que por sua vez os desqualifica ainda mais como potenciais parceiros de um diálogo e na negociação de um modo de coexistência mutuamente seguro e agradável.
O tratamento dos estrangeiros como simples “problema de segurança” é subjacente a uma das causas do verdadeiro “moto-perpétuo” nos padrões de interação humana. A desconfiança em relação aos estrangeiros e a tendência a estereotipar todos eles, ou algumas categorias selecionadas, como bombas-relógios prontas a explodir crescem em intensidade a partir de uma lógica e, de um ímpeto próprios, sem necessidade de apresentar novas provas de sua adequação nem estímulos adicionais provenientes de atos de hostilidade por parte do pretenso adversário (ou seja, eles mesmos produzem provas e estímulos em pro fusão). Em geral, o principal efeito da obsessão com a segurança é o rápido crescimento (e não a redução) da sensação de insegurança, com todos os acessórios de pânico, ansiedade, hostilidade, agressão, mais o esvaziamento ou supressão dos impulsos morais.
Tudo isso não significa que a segurança e a ética sejam inconciliáveis e devam permanecer as sim. Apenas assinala as armadilhas que a obsessão com segurança tende a espalhar pela estrada que leva a uma coexistência pacífica, mutuamente lucrativa e segura (na verdade, uma cooperação) de etnias, credos e culturas em nosso globalizado mundo de diásporas. Com o aprofundamento e a consolidação das diferenças humanas em quase todos os ambientes e vizinhanças, um diálogo respeitoso e simpático entre as diásporas se torna condição cada vez mais importante, na verdade crucial, para a sobrevivência planetária comum. No entanto, por infortúnio, pelos motivos que tentei relacionar, ele está cada vez mais difícil de atingir e de defender das contingências presentes e futuras. Ser difícil, contudo, significa apenas uma coisa: a necessidade de muita boa vontade, dedicação, disposição para o acordo, respeito mútuo e aversão a todas as formas de humilhação humana; e, evidentemente, a firme determinação de restaurar o equilíbrio perdido entre o valor da segurança e o da adequação ética. Cumpridas todas essas condições, e só dessa maneira, o diálogo e o acordo (a “fusão de horizontes” de Hans Gadamer) podem (apenas podem), por sua vez, se transformar no novo “moto-perpétuo” predominante nos padrões de coexistência humana. Essa mudança não fará vítimas, só beneficiários. Isso me leva a trazer a nossa consideração mais um estímulo que alimenta, exacerba e intensifica as obsessões com segurança, ao mesmo tempo que torna as nuvens do medo ainda mais densas e sombrias: a necessidade de legitimação do Estado na era da globalização. A incerteza e a vulnerabilidade humanas são os alicerces de todo poder político: é desses acessórios gêmeos da condição humana, amplamente abominados, embora constantes, assim como do medo e da ansiedade que eles tendem a gerar, que o Estado moderno prometeu proteger seus súditos; e é sobretudo a partir dessa promessa que ele extrai sua razão de ser, assim como a obediência e o apoio eleitoral de seus cidadãos.
Numa sociedade moderna “normal”, a vulnerabilidade e a insegurança existencial, assim como a necessidade de viver e agir em condições de incerteza profunda e desesperadora, são garantidas pela exposição das ocupações da vida às forças do mercado, sabidamente voláteis e imprevisíveis. Com exceção da tarefa de criar e proteger as condições legais para o exercício das liberdades de mercado, não há necessidade de que o poder político contribua para a produção de incerteza e o consequente estado de insegurança existencial. Os caprichos do mercado são suficientes para erodir os alicerces da segurança existencial e manter pairando sobre a maioria dos membros da sociedade o espectro da degradação, humilhação e exclusão sociais.
Ao exigir de seus súditos obediência e observância à lei, o Estado pode basear sua legitimidade na promessa de reduzir a amplitude da vulnerabilidade e da fragilidade que caracterizam a atual condição de seus cidadãos: limitar os danos e prejuízos produzidos pelo livre jogo das forças do mercado, blindar os vulneráveis em relação aos infortúnios dolorosos e garantir os inseguros contra os riscos que a livre competição produz. Esse tipo de legitimação encontrou sua expressão máxima na auto definição da moderna forma de governança como um “État-providence”, uma comunidade que toma para si mesma, para sua administração e seu gerenciamento, a obrigação e a promessa que costumavam ser atribuídas à divina Providência – proteger os fiéis das inclementes vicissitudes do destino, ajudá-los na ocorrência de infortúnios pessoais e prestar-lhes socorro em suas aflições.
Essa fórmula de poder político (sua missão, tarefa e função) está recuando para o passado. Instituições do “Estado previdenciário”, voltadas para encarnar e substituir as práticas correspondentes da divina Providência, um pouco menos abrangentes, além de frustrantes e confusamente irregulares, agora são esfaceladas, desmontadas ou eliminadas, enquanto se removem as restrições antes impostas às atividades comerciais e ao livre jogo da competição do mercado e suas consequências. As funções protetoras do Estado estão limitadas e “enxugadas”, reduzidas à cobertura de uma pequena minoria dos não empregáveis e dos inválidos, embora mesmo essa minoria tenda a ser reclassificada, passo a passo, de preocupação em termos de proteção social para uma questão de lei e ordem.
A incapacidade de o indivíduo se engajar no jogo do mercado segundo suas regras estatutárias, usando seus próprios recursos e por sua própria conta e risco, tende a ser cada vez mais criminalizada, reclassificada como sintoma de intenção criminosa ou pelo menos de potencial para o crime. O Estado lava as mãos quanto à vulnerabilidade e à incerteza provenientes da lógica (da falta de logica) do livre mercado. A deletéria fragilidade da condição social agora é redefinida como assunto privado – uma questão com que os indivíduos devem lidar e se confrontar usando seus próprios recursos. Como disse Ulrich Beck, agora se espera que os indivíduos procurem soluções biográficas para contradições sistêmicas.
Essas novas tendências têm um efeito colateral: solapam os alicerces sobre os quais o poder de Estado se sustentou durante a maior parte da era moderna, quando afirmava desempenhar papel crucial na luta contra a vulnerabilidade e a incerteza que assolavam seus súditos. O crescimento da apatia política, a perda do interesse e do compromisso políticos (“não há mais salvação pela sociedade”, como Peter Drucker proclamou, numa expressão famosa}, e uma ampla retirada da população no que se refere a participar da política institucionalizada são testemunhos do esfacelamento dos alicerces remanescentes do poder de Estado.
Suspendendo a antiga interferência programática sobre a incerteza e insegurança existenciais produzidas pelo mercado, e proclamando, pelo contrário, que eliminar uma a uma as restrições residuais a atividades lucrativas é a principal tarefa de todo poder político que cuide do bem estar de seus súditos, o Estado contemporâneo precisa procurar outras variedades, não econômicas, de vulnerabilidade e incerteza para sustentar sua legitimidade. Essa alternativa parece se situar (em primeiro lugar e de modo mais espetacular, embora absolutamente não exclusivo, no caso do governo dos Estados Unidos) na questão da segurança pessoal: os medos atuais ou previstos, abertos ou ocultos, reais ou supostos, de ameaças aos corpos, propriedades e hábitats humanos, quer venham de dietas ou estilos de vida pandêmicos e nocivos à saúde, quer de atividades criminosas, de condutas antissociais da “subclasse” ou, mais recentemente, do terrorismo global.
Ao contrário da insegurança existencial proveniente do mercado, evidente demais para ser questionada e negada a sério, além de abundante e óbvia demais para permitir uma acomodação, essa insegurança alternativa, destinada a restaurar o monopólio perdido do Estado sobre as oportunidades de redenção, deve ser artificialmente alimentada; ou pelo menos altamente dramatizada, a fim de inspirar um volume suficiente de medo e ao mesmo tempo superar, ofuscar e relegar a posição secundária a insegurança economicamente gerada, sobre a qual a administração do Estado quase nada pode fazer, sendo seu maior desejo não fazer nada. Em oposição ao caso das ameaças à subsistência e ao bem-estar geradas pelo mercado, a gravidade e a extensão dos perigos à segurança pessoal devem ser apresentadas com as cores mais sombrias, de tal modo que a não materialização das ameaças divulgadas e dos infortúnios e sofrimentos previstos (com efeito, qualquer coisa que represente menos que os desastres prenunciados) possa ser aplaudida como uma grande vitória da razão governamental sobre o destino hostil, como resultado da vigilância, do cuidado e da boa vontade louváveis dos órgãos do Estado.
Há uma condição de alerta permanente: perigos que se diz estar à espreita bem ali na esquina, fluindo e vazando de acampamentos terroristas disfarçados em escolas e congregações religiosas islâmicas; de subúrbios habitados por imigrantes; de ruas perigosas infestadas de membros da subclasse; de “distritos turbulentos”, incuravelmente contaminados pela violência; de áreas de acesso proibido em grandes cidades. Perigos representados por pedófilos e outros delinquentes sexuais à solta, mendigos agressivos, gangues juvenis sedentas de sangue, vagabundos e stalkers (os caminhantes furtivos). As razões para ter medo são muitas. Já que é impossível calcular seu verdadeiro número e intensidade a partir da limitada perspectiva da experiência pessoal, acrescenta-se outra razão, possivelmente mais poderosa, para ter medo: não há como saber onde e quando as palavras de advertência irão se fazer carne.
ZVGMUNT BAUMAN – é sociólogo, professor emérito das universidades de Varsóvia e Leeds. Criador do conceito de “liquidez contemporânea”, tem mais de 30 livros publicados no Brasil pela Zahar. Este texto foi publicado originalmente em seu livro mais recente, Cegueira moral – A perda da sensibilidade na modernidade líquida (Zahar, 2014), escrito em parceria com o filósofo Leonidas Donskis, e reproduzido com autorização da editora e do autor.